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segunda-feira, 10 de outubro de 2005

Ave-marias (Nilto Maciel)




- I -

Coronel Isidoro ronda a sala, vermelho, peru enraivecido. Valsa entre as cadeiras, limitado pelas paredes, pronto a saltar sobre Gracinha. Bufa, sua, o grito estancado na fumaça da boca.

— Escute bem o que vou lhe dizer.

Caminha na direção da rua, empurra a porta, prende-se mais. Mágico, fecha as duas janelas a um passo.

Cabeça pregada ao colo, a moça treme, geme, chora a uma cadeira.

Quietos, mudos, sérios, personagens sacros e profanos misturam-se no painel desbotado da parede às suas costas: o coração de Jesus sangra, Isidoro bigodudo e Zulmira branca unem-se, Virgem Maria lastima-se, crianças vestidas de primeira comunhão arregalam os olhos, São José...

— Mas pai...

Na quase escuridão, os olhos do homem luzem como faróis e avançam para a filha.

— Nem um pio.

O gato se retorce no sofá velho, estica as pernas, afunda a cabeça na maciez do assento, grunhe.

— De hoje em diante não quero mais nem ouvir o nome daquele moleque.

Olhos grudados nas palmas das mãos, Gracinha soluça, coberta de cabelos. O pai marcha, pés duros pilando o chão, buracos da cara soltando fumaça. A moça ergue a cabeça, funga, levanta a ponta da saia para enxugar o choro. Nas mãos e na roupa ensopadas refletem-se as duas estrelas que pingam.

- II -

Pela 7 de Setembro, Isidoro cavalga o jipe a toda. Esporeia, chicoteia, upa, upa, bicho danado. À porta do Café Portuguez, uma rodinha ri, gesticula, cabriola em redor do Dr. Pinheiro.
— Safado.
Um cachorro atravessa a rua imprudentemente, mostrando os dentes, tirando fina no carro saltitante. O coronel urra um nome feio. À calçada, duas mulheres que conversam voltam-se para a zoada.
— Carro mais doido.
Isidoro da Paixão, empapado de suor, passa o lenço sujo na testa, no rosto, no pescoço cabeludo.
— Pensei que fosse um menino.
Pela Dom Bosco o jipe pula, relincha, peida, em tempo de voar.
— Mato aquela sem-vergonha.

- III -

Gracinha afaga o gato com as mãos úmidas, pequeninas. Murmura, materna.
— Não fique com medo, não, viu?
O animal espoja-se todo no sofá, arreganha os dentes, estica-se, agarra, dengoso, as mãos da moça.

***
Livro aberto diante dos olhos parados, Carlinhos coça o queixo. “Abriram-se os braços do guerreiro adormecido e seus lábios; o nome da virgem ressoou docemente”.
O calor queimava o chão do terreiro, as paredes e o telhado do cabaré, o mundo, os olhos do filho do Dr. Pinheiro. Na cama, afogueada, irritada, Mariinha revolta-se, como se se assasse na fogueira.
— Puta que pariu.
Os olhos do rapaz fulguram no fim da tarde, trespassam as folhas da lenda.

***
O bichano esfrega a cabeça no sofá, desembainha as unhas, abre as pernas, faz de conta que morde as mãos de Gracinha, mia fino.
— Safadinho.

***
Os pés de Carlinhos tremem no chão luzidio da sala, as mãos agarram o livro antigo. “A juriti, que divaga pela floresta, ouve o terno arrulho do companheiro.”
Maria retirou, de supetão, o último pano que vestia e estendeu pernas e braços ao longo da cama, crucificando-se. Banhada de suor, fechou os olhos, agonizando no horto de todo dia.
A porta rangeu e se foi escancarando, zunindo como um besouro.
— Dormindo, minha santa?
Carlinhos fita o texto, que dança entre seus dedos.

***
Pé ante pé, D. Zulmira aparece às costas da filha.
— Ele saiu?
Gracinha larga o gato e desata a chorar. O bicho assusta-se e, de um pulo, foge para o interior da casa.
— Que é que eu vou fazer agora, mamãe?

***
Uma mosca pousa no meio da folha do livro e Carlinhos assopra com fúria. “Em suas faces incendidas rutilava o primeiro sorriso da esposa, aurora do fruído amor”.
Mariinha encolheu-se toda, escondendo a nudez que a cobria e mandou que Zefa fechasse a porta logo.
A visitante riu e sentou-se à beira da cama, enquanto a outra falava que tinha vontade de sair correndo como uma doida, meter-se num rio ou possuir um ventilador bem grande e ficar ali deitada, porta aberta para o vento, uma perna aqui, outra acolá.
— Deixa que eu te abano.
O estudante remexe-se na cadeira, suspira, o livro morto em suas mãos.

***
Mãe e filha fungam, olhos pregados na porta da rua, xifopagamente abraçadas.
— Vá tomar banho.
Gracinha desprende-se a custo de D. Zulmira e levanta-se. As mãos ainda permanecem grudadas por um minuto.
— Vá.

***
Mão metida entre as calças, Carlinhos curva-se para a história estendida sobre as coxas.
— Menino estudioso. Sua mãe está aí?
Ajeita-se, gagueja, fixa os olhos nas palavras. “Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras”.
A mulher entra, arrastando os chinelos, aos berros.
— Oi de casa.
Zefa tirou o vestido, ajoelhou-se entre as pernas de Maria e pôs-se a sacudir a roupa sobre o corpo da amiga.
— Está maluca?
Carlinhos inquieta-se, passa os dedos no nariz, na boca, leva e traz a mão entre o livro e o passado.

***
No banheiro, nua, Gracinha abre a torneira e a água pinga pesada no cimento.
— Ai.
Uma barata corre pelo canto da parede na direção do vaso sanitário.
— Ui.

***
Carlinhos fecha o livro e o deita às pernas.
Zefa derreou-se sobre Maria, beijando-lhe os seios, amassando-lhe o ventre, vigorosa.
— Deixa, Mariinha, deixa.

- IV -

Pára o jipe quase dentro da bodega, salta, fecha a porta a um empurrão e pede uma cerveja, aos berros.
O bodegueiro inquieta-se, mexe e remexe a geladeira, saltita, curva-se.
— Sim, senhor, sim, senhor, coronel.
As mãos procuram o abridor, vasculham os bolsos, ferem o balcão, derramam feijão, blasfemam.
— Tem muito cabra de peia aqui, Seu Expedito.
Um tamborete surge às costas de Isidoro, alisado, experimentado, reverenciado.
Esvazia o primeiro copo, espumante, esfrega as costas da mão na boca, acende um cigarro.
A sombra arrastava-se como cobra à plena luz do dia e se aproximava do coronel.
— Essa alma quer reza.
Ficou rondando, feito menino desconfiado querendo bombom.
— Alguma coisa comigo?
— Um particular, coronel.
Chupa o cigarro com força e a fumaça sai, aos borbotões, pelas ventas entupidas de cabelo.
— Desembuche, homem.
O caboclo esfregou as mãos, olhou para os lados, abaixou a cabeça enrugada.
— Estão dizendo que aquela sua rapa...
Isidoro suspirou, descruzou os braços, fitou o enredeiro, que deu um passo atrás e calou-se.
— Não venha com safadeza, cabra. Sua o quê?
O homenzinho pedia desculpas, engasgava-se, encolhia-se, só queria ajudar o coronel, mas sabia que aquilo era história furada.
— E eu sou homem de ouvir história furada, seu sem-vergonha?
Vira o copo goela a dentro, arrota, avermelha-se, incha.
— Meu coronel, eu quero dizer que é calúnia dos inimigos do senhor.
Urrou, ergueu-se, mão na cintura, pronto a sujigar o cabra, os inimigos, o mundo.
— De quem?
— Do filho do Dr. Pinheiro.
Esmurra a mesa, cospe o cigarro, levanta-se, chuta o tamborete.
— Quanto foi a despesa?

- V -

À porta do cabaré, um moleque fala a Ana Souto.
— Está sozinho?
O menino coça o pixaim, cutuca o chão com os dedos do pé. A dona da casa interessa-se pela notícia, pergunta e especula, lenço vermelho em volta da cabeleira loura, seios bojudos dançando no decote.
— E vem para cá?

***
Carlinhos sorri, solta os dedos de Gracinha e dá um pontapé leve na parede.
— Até.
A moça continua debruçada à janela, olhos voltados para o namorado que caminha no rumo da Matriz.

***
Montado no jipe, Isidoro escramuça pelos becos do Potiú. A poeira vermelha o persegue. Ele arrota, peida e brada.
— Porra.
A cachorrada esquelética disputa aos moleques seminus o privilégio da vaia alegre à novidade do entardecer.

***
Abraça e beija demoradamente a mãe e diz que vai conversar com uma amiga. Explicando-se, inventa um nome.
E o cheiro de rosas de Gracinha invade a rua, ladeira abaixo.
— Volte logo.

***
Ana Souto exige explicações, fuma, gesticula, irrita-se, cheia de pulseiras, rodeada de dobras da saia.
— Por acaso ele é o capeta, meninas?
Maria choraminga, impacienta-se, tropica nas palavras. Zefa corre para os fundos, debaixo dos insultos da colega.
— Ela tomou teu homem?

***
Antes de dobrar a esquina para a direita, Carlinhos olha mais uma vez para trás. Caras espantadas o espionam das janelas. Sua sombra toma a calçada de três casas. Arranca, esticando as pernas.
— Não tenho culpa de ter visto.

***
Diante do cabaré, o coronel pára o carro e salta ligeiro. A ponta do cigarro bate na parede e faíscas em estilhaço festejam sua chegada. Chuta a porta do jipe, pigarra, olha em volta. Às janelas, olhos enormes paralisados. Um casal de vira-latas trepa no meio da rua.
— Maria.

***
Quase correndo, Gracinha pisa-não-pisa a própria sombra. Vai que vai à pressa. Dobra à esquerda para as bandas das Lajes.

- VI -

Numa cadeira de palha, Ana Souto balança-se. Entre seus dedos o longo cigarro marcado a batom. A fumaça faz piruetas na sala.
— Quede aquela puta da Maria?
Alvoraçadas, como em noites de cu-de-boi, as mulheres desembestam casa a fora, gritando e chorando.
— Valei-me meu São Francisco de Canindé.
No centro da sala, Isidoro ruge diante da dona da casa, que fuma e fala, levanta-se e tremelica, pisca e cala.
— O que foi que aconteceu, Coronel Isidoro da Paixão?

***
Do lado de dentro do cercado, metido mo mato, Carlinhos olha para o rio que passa cantando à sua esquerda.
Adiante, a filha do coronel esbarra nas pedras, jeito de menina perdida.
— Psiu.

***
Aos gritos de Maria, Maria, Maria, o pai de Gracinha embarafusta pelo cabaré, escancarando portas, esmurrando paredes, quebrando jarros.
— Aparece, cadela.
No seu calcanhar, Ana Souto chora, agarra-se aos santos, suplica ao coronel.

***
Coberto de carrapichos, Carlinhos força os arames da cerca para que a moça passe. Agachada, mete-se entre os fios. Uma farpa enfia-se em seu vestido.
— Calma, calma, que eu te desengancho.
Abaixada, Gracinha diz que não agüenta mais, está cansada, vai rasgar as vestes.
— É o jeito.

***
No quintal, escondida detrás de um pote velho, Maria bate o queixo, mija-se, encolhe-se. E diante de seus olhos, que quase beijam o chão, duas botas pretas enormes param. Abaixa-se mais, achata-se, enterra a cabeça entre as pernas, pede clemência, perdão. Mas a mão pesada, calosa, ardente do coronel enfia-se no meio de seus belos cabelos castanhos e a puxam para o céu, furiosamente.
— Puta de puta.

***
Escuro como breu, o rio desliza, os grilos cricrilam, os sapos coaxam, Gracinha e Carlinhos se lambuzam no meio das muriçocas, debaixo de uma mangueira.

***
Isidoro e Mariinha tomam conta do quintal, volteiam, quase abraçados, passos soberbos de dança primitiva, ele, a mão-tacape indo e vindo, ela, vestes esfarrapadas, ensangüentada, inchada. Sapateia o par nas ave-marias.
— Rapariga do diabo.

***
Geme Gracinha no chão verde. Geme Carlinhos sobre o corpo róseo dela. Os sinos da Matriz badalam seis vezes.
— Ave-Maria, meu amor.
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