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segunda-feira, 10 de outubro de 2005

O jangadeiro (Nilto Maciel)



Para Edinardo, às vésperas do primeiro
ano de sua partida.

Arrodeio a superesfera
na minha jangada amiga,
rindo de quem me espera,
chorando à moda antiga.


De quantos paus ela é feita
só dizem os jangadeiros
velhos e companheiros,
fugidos da rota estreita.

Não rio por palhaçada

nem choro angustiado;
já me bastava a maçada
de ansiar o desejado.


Levo comigo a coroa
dos filhos da Eternidade,
relendo Fernando Pessoa
frente a toda realidade.


Passeio as nebulosas,
os astros, o espaço sem fim,
saudadoso das carinhosas
meninas do Otávio Bonfim.


De dois velhos meus criadores,
meu primeiro e doce abrigo,
de duas pequenas flores,
em quem pensando prossigo.


De uma soidade que amei
e que na Bahia deixei,
de sete meus germanos
deixados a fazer planos.


Dos pareceiros risonhos
do pobre Amadeu Furtado,
esses bebedores bisonhos
de fel, cachaça e melado.


Mergulho a atmosfera
montado em cavalo-de-pau,
zombando da besta-fera,
lembrando o primeiro mau.


Conduzo comigo um poema
jamais publicado em papel
para reler na suprema
corte do mais alto céu.


Vasculho os tempos perdidos
no carro dos deuses gregos,
tristonho de ver iludidos
os que ficaram aos pregos.


De recordar os pileques
que com meu mano bebi,
choroso de ver os moleques
famintos do que comi.


Cavalgo o cavalo das eras
na mais incrível carreira,
carregando uma flor de parreira
para o homem e para as feras.


Na minha ida desejei
deixar o que sempre sonhei:
projetos de muito amar
para a terra e para o mar.


O mundo que nos aguarda
não tem regulamentos nem leis,
é o país do povo sem guarda,
não tem um, nem dois, nem três,


tem milhões de seres iguais,
é a utopia dos pensadores,
o sonho dos ancestrais,
a terra só dos amores.


Comigo navegam poetas,
revolucionários e santos,
partimos no rumo das metas,
dos fins, começos e cantos.

(19.2.80)

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