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segunda-feira, 17 de outubro de 2005

Socorro Trindad: misturando o joio e o trigo (Nilto Maciel)

Até onde somos sempre outros? A pergunta vem a propósito do livro Cada Cabeça uma Sentença, de Socorro Trindad. Nas metáforas do conto “J.D.” se lobriga um característico “paranéico”. Se se fizer uma leitura do livro, partindo-se da narrativa mencionada, passando-se por “Dever de Casa”, “A Tocha” e “O Elevador”, e atingindo-se relatos substancial e formalmente políticos, como o que dá título ao volume, chegar-se-á, por associação de idéias, à seguinte conclusão: Socorro Trindad percebeu, ou ideou, que a realidade objetiva não é senão a concretização da grande tragédia de viver.

Mas quem poderá querer separar o joio do trigo? Bem diz Aguinaldo Silva, no prefácio: Socorro Trindad tem por objetivo “guiar o leitor, através do labirinto da palavra, até o reconhecimento do universo de violência e repressão em que ele vive”.Assim, metáforas como “A Tocha” e “O Elevador” não terão aquela mesma força sugestiva de O Processo, de Kafka, no qual muitos vêem o pecado original, enquanto outros vislumbram apenas um cru relato dos tempos de tirania.

Dois outros contos do livro, semelhantes na forma, dão melhor idéia dessa simbiose realidade-irrealidade. “O Massacre no Mangue” é uma crônica atualíssima de sabor página policial, até estilisticamente, e também à maneira do romance gótico. E aqui se manifesta o nó da questão. Como desconhecer o fantástico dentro da realidade? Veja-se o papangu das festas populares. O segundo conto, “A Casa dos Papangoos”, mais parece crônica de colonizador. A contista justifica a inovação introduzida no documento: “a falta de datas nos levou a uma montagem arbitrária, deixando-se de lado a ordem cronológica e levando-se em conta apenas o fato em si”. Os papangoos existem? São homens como os demais ou apenas animais (povo degenerado) disfarçados de homens? Usam traje e corte da cabeleira diferentes dos homens. Ou dos demais homens. A alegoria é exuberante, como nos desfiles carnavalescos, em que os carros alegóricos conduzem figuras de reis, papangus, arlequins e outros coleópteros. Frise-se: um dos sinônimos de papangu é bobo. E pode ser até bobo da corte.

Não sabemos se a metáfora tende a se aprimorar em tempos difíceis. No entanto, uma alegoria como esta dos papangoos tem o condão de sacudir o leitor do que uma narrativa nos moldes tradicionais.

“João, Metralha, Maria” pareceu-nos o relato mais parecido com conto, sem ser mais um conto sobre o marginal do morro. Ao seu lado está “A Tarefa”, embora também ao estilo crônica de colonizador.

Socorro Trindad tem duas virtudes essenciais: o poder de misturar o joio e o trigo e uma esplêndida cultura literária. Leia-se “Bodas de Ouro”, história de trancoso tão extraordinária como as do arco-da-velha.
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