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quarta-feira, 16 de novembro de 2005

A lenta metamorfose de Menito Bonino (Nilto Maciel)




Menita Bonina habita as ruas, não tem razão nem memória, come lixo, às vezes ri, às vezes chora. Serve de palhaço aos mais divertidos, tem por companheiros cães vadios e perdidos, é motivo de reportagens escandalosas.

— Quantos anos você tem, Menita?

— Não sei, não. Me deixe em paz. Vou dormir e tomar banho. Mamãe está me chamando.

— Você veio de onde? Nasceu aqui mesmo? 

— A cegonha me trouxe do céu.

— Você vive nessa vida desde quando?

— É a primeira vez que converso assim. Eu gostava muito de homens e bebida. Agora dei para conversar.

Menita carrega um mundo de doenças. Bebe álcool, fuma, cheira cola. Sobretudo, passa muita fome. E sonha com fantasmas. Pai, mãe, irmãos, lobisomens, cegonhas, satanases, deuses, sereias.

Bonina era ainda um botão quando caiu na vida. Entregava-se a todos os tipos de homens: jovens e velhos, magros e gordos, solteiros e casados, gentlemans e brutamontes, sádicos e masoquistas, ébrios e sóbrios, perfumados e fedorentos, ricos e pobres... Nos bordéis construiu sua existência, seus sonhos esfarrapados, suas quimeras impossíveis, seus dias amargos.

O pai de Menita filosofava. Admiravam-no vizinhos, parentes, amigos, companheiros de trabalho. E dizia para sua filha: “cuidado, muito cuidado, com os homens, minha filhinha. Não se aproxime deles. São uns falcões. Fique sempre em casa e estará livre deles”. Bonina nada dizia, nada perguntava, nada contestava. Tinha medo, muito medo. Aprendera a ouvir apenas, a não falar, a não perguntar nunca.

— Minha filha, não faça isso, vá se sentar, vá brincar. Não precisa trabalhar. Menina não precisa trabalhar. Trabalho é para homem.

O professor perguntou ao filósofo se a menina não iria estudar. “Não. Mulher não precisa estudar. Mulher é para viver em casa. Depois casa. E continua em casa”.

Menita nada fazia sozinha. Banhava-a o pai. Vestia-a a babá. Alimentava-a a mãe. Sempre ajudada ou assistida pelo pai, pela mãe, pela babá, pelas tias... “Mãe, ‘tá na hora de me banhar?” “Pai, vem me vestir”.

Assim até sair de casa.

— Fora, imediatamente, cadela, puta, sem-vergonha. Antes que eu te mate. Rua! Rua!

— Mas, pai, não fiz nada demais.

Apesar de tudo, inquietava-se:

— Mãe, como nasci?

— A cegonha trouxe você no bico.

Conselhos não lhe faltavam:

— Minha filha, ande sempre vestida. Nunca fique nua. O diabo pega menina que anda nua.

Menos no banheiro. Assim mesmo, longe dos olhos dos outros. Mas enquanto você for pequena, nós podemos ver você nua. Só nós.

Ainda brincava com bonecas, quando conheceu o príncipe encantado.

— Meu anjinho, minha rosa, minha menina bonita, eu te amo muito. Vem, sem medo. Vou ser teu primeiro e único homem.

O berço de Bonina era um luxo. Feito com exclusividade, custou uma fortuna ao filósofo.

— Qual o nome do nosso filho, querido?

— Menito Bonino.

— E se for mulher, que Deus nos livre?!!!

– Não há de ser. Se for, será um castigo. Prefiro que nasça morta.

— Não será pecado isso?

— Pecado será se não nascer menino. De mim só há de sair filho macho.
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