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quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

A arca (Nilto Maciel)




De longe, avistei a aglomeração, e a curiosidade me arrastou para ela. Talvez algum mágico estivesse a encantar a pequena multidão. Podia tratar-se de comício, também. Avancei mais curioso, atento aos aplausos e modos daquela gente. Não, ninguém engabelava ninguém, e todos vestiam trapos sujos. Um cheiro de lixo mandou-me dar meia volta e volver. Porém, meus olhos queriam inventar o mágico ou o político, e me grudaram às costas do último molambudo.

Luís Martins da Silva: a fertilidade da poesia (Nilto Maciel)


Alguém afirmou ser impossível fazer poesia em Brasília. Para outro, os poetas candangos imitam os modernistas de 1922, como se o Brasil tivesse sido criado no século XX. Luís Martins da Silva publicou quatro livros e uma latinha de poemas. Entretanto, se escapou às garras daqueles críticos, caiu nas malhas de outro: em vez de imitar o pessoal de 22, seguiu a trilha de Nicholas Behr, famoso por ter sido processado na Justiça comum, sob a acusação de editar e divulgar livretes mimeografados, considerados atentatórios à moral e aos bons costumes dos censores do pós-l964.

terça-feira, 13 de dezembro de 2005

Eles têm olhos azuis? (Nilto Maciel)

(Para Carlos Studart Filho)

Eu lia Jorge Garstman, quando ouvi gritos vindos da rua. Preocupado, fechei o livro e, enquanto me dirigia à janela, repetia o nome de Jacó Rabbi, como se do outro lado da parede ele estivesse sendo assassinado. O doido Manuel açoitava o tempo com os braços, pregando à pequena multidão de moleques e vagabundos do bairro.

— Os holandeses vão chegar. Já estão nas proximidades de Jacaúna – bradava o orador.

Dimas Macedo: Poemas das lavras de um poeta (Nilto Maciel)


A Distância de Todas as Coisas, de Dimas Macedo, é composto, quase todo, de poemas dedicados à sua cidade natal, a pequena Lavras da Mangabeira. Aliás, uma das cinco partes do livro tem o título de “Poemas de Lavras”. No entanto, Lavras é apenas um ponto geográfico e o poeta se serve dele para cantar e recriar sua infância. Assim, nas outras partes também se encontram poemas cujos temas são o passado, a cidadezinha, o sertão, como “O Poeta e o Salgado”, “O Menino e o Salgado”, “Rua da Praia” e "Lavras”, nos quais o poeta canta o Rio Salgado, que banha Lavras, uma das ruas da cidade e a própria terra natal.

segunda-feira, 12 de dezembro de 2005

Til Ananias e seus Policarpos (Nilto Maciel)


Afagado pela língua de um cão, Policarpo misturava nos olhos imagens antigas ao furor do patrão. Por acaso estais duvidando da fama de Til Ananias, autor de autos e farsas, relações e epopéias, e mil outras maneiras de inventar a vida de sanchos como tu? Como ousas afirmar a negação? Incompetente, cego e maneta, como é possível não me encontrares neste cosmos gutenberguiano?

Policarpo recordava os primeiros passos em busca do afamado autor. Depois a angústia maior. Na calçada, meninos brincavam, surdos às palmas tímidas e frias. Talvez não houvesse ninguém no casarão do velho Ananias. Batia e escutava o eco das palmas cantadas. E, quando ia bater novas palmas, uma bola de meia atingiu-lhe o rosto. Ao mesmo tempo, um rosto de bola abria meia porta, devagarinho e assustado.

— Que deseja?

Atarantado, Policarpo não sabia se devia se voltar para os moleques ou fugir daquela voz de mofo e sono. Preferiu fechar os ouvidos às molecagens da rua. E pôs-se a gaguejar. Um escritor muito atarefado, acho que é este o endereço, a cabeça muito cheia de pesadelos, andava perdido no meio das letras de hebdomadários e resenhas, as mãos trôpegas, colunas sociais e linguísticas, necessita de um ledor, digo, de um secretário, ativo, inteligente, que saiba ler as cento e tantas, não sei, línguas faladas e escritas, para recortar o seu nome, deixe ver, Til Ananias, escritor famoso, autor de pasquins e outras inutilidades.

Os moleques ouviram, calados e tristes, a bola esquecida entre as patas de um cão sonolento, o tímido falar de Policarpo.

Quando o sono desembolou-se das patas do cão, os dois senhores entraram a tratar dos detalhes do ofício de recortar periódicos.

Uma hora depois, a mesma fatídica bola de meia molhada acertou a outra face de Policarpo. Mais uma vez nada reclamou. Já contratado, precisava ir logo à banca de jornais.

Ainda aturdido, Policarpo regressou ao casarão. Sobraçava alguns quilos de jornais e revistas. Na calçada, os garotos riam e gargalhavam. Um homenzinho amarelo batia palmas diante do portão de Til Ananias.

— Palmas para o campeão das palmas! – conclamava um dos moleques.

A rua inteira se encheu de sons de palmas. Mulheres de todos os gêneros acorreram às janelas, aflitas. E gritavam: parem com isso!

A porta se abriu e o velho meteu a língua no ouvido esquerdo do novo Policarpo. Não precisava mais do primeiro. Fosse atrás de outro emprego.

— Trouxe o anúncio?

O rapaz estendeu a senha amassada.

— Comece a pesquisa a partir de 31 de março de 1917.

O novo empregado não se assustou, mas teve a ousadia de fazer uma pergunta.

— Porque esta é a data de meu nascimento.

E meteram-se os dois entre os jornais.

— Já encontrou alguma coisa?

— Nada, senhor escritor.

E se enfurnaram tempo a fundo. Til Ananias pelas edições futuras, Policarpo pelas passadas – útero letrado.

— Em que data você está?

— 30 de janeiro de 1945.

De repente, um grito. Policarpo tremeu e parou. Ameaçavam-no garras homicidas de manchetes. Sufocavam-no mãos negras de notícias terríveis. Desmaiou e, inconsciente, se viu caminhando de encontro ao velho escritor.

— Senhor, achei uma mentira.

Til Ananias iniciava o século XXI, carregado de cãs e suores, pendurado num caibro podre.

— Diz que faleceu hoje, vítima de um choque elétrico, o fracassado escritor...

— Continue.

— Til Ananias.

Sufocado pela fumaça que vinha da sala onde estavam depositados os jornais da década de 20, o novo Policarpo acordou. Buscou fugir do passado. O fogo devorava, célere, os anos, reduzindo-os a cinza. Apavorado, o rapaz correu e, pisando as letras, alcançou a rua. Diante de si, o primeiro Policarpo ainda chorava o emprego perdido, alheio aos moleques que gritavam: vamos chamar os bombeiros para apagar a História. E mais gritaram quando viram o milagre acontecer — a fusão dos dois Policarpos.
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Salomão Sousa: A lógica do pessimismo (Nilto Maciel)




O Susto de Viver e A Moenda dos Dias, de Salomão Sousa, foram reunidos num só volume. No primeiro, o poeta, impossibilitado de conter as palavras, a poesia, anuncia o seu drama: a cidade, que o chamou do campo (e esse tema estará mais presente em outros poemas), o assusta, o persegue, o amedronta, como se ele fosse um cão vadio. Não sabe se se quede como árvore em descampado açoitada pelo vento que passa – a vida a fluir – ou se vá, sem rumo, embora. Constata: “Sua sina, menino,/ é de árvore/ em descampado”. O silêncio fala ao seu redor, amedrontador. O poeta pára, enquanto tudo se movimenta, corre. O poeta se assusta da própria imobilidade: “Estendo os olhos/ e há o pedido de não ver”. A cidade (a vida) estende-se como um rumo, caminho sem fim. Mas cadê coragem de enfrentá-la? “A valentia/ conhecida de mim/ arrefeceu”. Mais do que perigoso, o existir ofende. É o medo de viver. O título esconde a palavra e a constatação mais comprometedora. No entanto, não sendo possível escamotear a alma no poema, a confissão sai clara: “Compromete/ olhar sobre os muros”. Do outro lado podem estar escondidos o fruto proibido, a serpente enroscada na árvore, Eva desnuda. Os terrores infantis, ainda recentes, não se apagam facilmente. Por mais que tente trair o próprio medo, ainda assim será fatal o susto. Amarra-se para segurar-se: “Teço a corda com a própria pele”. O corpo (o ser) serve de prisão, de degredo. O mundo é um perigo, abismo onde se precipitam os seres. É preciso fechar-se em si, caramujo. Qualquer impulso irracional leva à queda, como se nunca houvesse dado um passo. Todo passo será falso: “Atiro-me às escondidas/ e os charcos/ me atiçam as quedas”.

Na segunda parte – “Dados” – a mesma relação de forças: a pedra (o ser) que gira é atirada, sem destino. A vida é um jogo: o impossível esconde-se detrás das facetas do dado. O azar dorme nos esconsos do cubo. Em si mesmo o dado não fica, não se imobiliza: “A pedra/ atirada/ soa a queda”. É patente o sinal concreto da construção desses poemas, concretismo por metáforas: jogo-vida, pedra-ser.

O segundo livro, antes publicado separadamente. também se divide em duas partes. Numa – “Ladainha da Cidade Dura” – o poeta, de forma mais objetiva do que nos poemas já focalizados, individualiza a cidade, dá-lhe nomes: Ceilândia, Brasília. Ocorre uma inversão ótica: em vez do indivíduo perdido nos meandros da cidade, agora a humanidade e a cidade aparecem na pintura poética ampliadas, obscurecendo o indivíduo. O pintor sobe aos céus e de cima vê o todo, e não mais o indivíduo apenas. Ainda assim, o mesmo medo de abrir os olhos, olhar sobre os muros, correr, soltar-se: “Resisto à vontade/ de soltar fora os sapatos,/ de soltar fora os cachorros,/ de soltar fora as ruas.

Na segunda parte – “O Ser ao Ser”– o lado oposto dessa cidade de medo: o campo de onde proveio o menino assustado, em busca de si mesmo. Entretanto, apenas um reflexo do passado, porque são as ruas por onde passa que lhe despertam a necessidade de escrever. Nasce em seus ouvidos aquele silêncio antes visto nos outros. O silêncio das coisas é uma auréola protetora. Para onde o poeta for conduzirá consigo o silêncio.

A cronologia sentimental de Salomão Sousa obedece a uma lógica do pessimismo. O universo pode ser desigual no tempo e no espaço, porém o indivíduo é apenas um dado, “pedra atirada dentro do rio”. Se antes “entendia cada silêncio que estivesse por perto”, agora “é impossível passar ileso por qualquer despensa do vazio ou do silêncio”. Se antes conservava “um medo leve”, agora “o gume da tristeza não fende o medo”.

A linguagem pode mudar, porque mudam o tempo e o espaço, todavia ao personagem nenhum historiador poderá transfigurar. Passa o vento, não a arvore. Passam os dias, os dentes da moenda, não o homem triturado pela vida. Passam as nuvens, os pássaros e o rio, não o menino a quem o bicho-papão fez estremecer.

E finalmente: tudo passa, menos o homem e a sua poesia.
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domingo, 11 de dezembro de 2005

Mistério doloroso (Nilto Maciel)


1 - Desgraceira



Ora se isso tem cabimento! Se fosse ao menos outra! E por que ele não fez uma carta dessas pro Mundico? Todo mundo sabe que aquele é corno no duro. Mas escrever pro prefeito, que até meu amigo é! Eu nunca esperava uma coisa dessas. Logo agora que eu estava me aprumando na vida! Só pode ser caiporismo. Como tem gente ruim neste mundo. É, ele queria que o prefeito se intrigasse comigo e deixasse de empreitar meus serviços. Assim, ele fica com o bolo inteiro. Ganância, pura ganância. Mas ele vai me pagar. Vou mostrar com quantos paus se faz uma canoa. Meto uma bala na cara lá dele e acabo com tudo. Gente ruim não merece viver.

E se eu for embora? Evito uma desgraça. Vou tentar a vida longe daqui. Começar tudo de novo. Outra cidade, outras amizades. Não, assim ele vai ficar se pabulando, me chamando de cabra safado e covarde. Não, aqui é o meu lugar. Aqui comecei, aqui vou ficar. Fico e tiro aquele trambolho do meu caminho. Desce daí, filho de quenga. Vem, que eu quero mostrar quem é o covarde. Pei, bufo. Aí fujo pros cafundós de judas, deixo a mulher, os filhos, os cafiotes, me desgraço de uma vez. Desgraça pouca pra mim é tiquinho. Ou vou logo pra cadeia ou me matam por aí.

Não, não vou fazer nada disso. O prefeito já deve saber a verdade. O melhor é deixar a coisa como está. Agüentar tudo calado. Mas aí vem uma bala doida e... adeus vidinha. Não, essa não. Vamos, homem, deixa de paleio. Decide logo a porcaria dessa atitude. Acaba com aquele loroteiro de uma figa e foge pro oco do mundo. Você vai sofrer que só couro de pisar fumo, mas homem nasceu foi pra sofrer mesmo. Você não é mais menino. Conheceu a vida, constituiu família, fez de tudo. Até demais. Elegeu até um prefeito. Não fosse esse cabo-eleitoral-velho-de-guerra aqui, a situação hoje seria bem diferente.

Pensando bem, é melhor deixar tudo como está. Quem mexe em casa de maribondo... Eu nunca fui de fazer confusão. Nunca mesmo. Homem pacífico, ordeiro, respeitador está aqui. Porém aquele sujeito precisa aprender a respeitar homem. Pensa que sou o quê? Vagabundo, velhaco, vadio? Vou mostrar quem sou. Vai ser uma desgraceira danada, eu sei, mas tem que ser assim. Ele vai aprender comigo a não mexer com quem está queto. Meto uma bala no meio da testa lá dele, e pronto. Depois fujo, sou preso, a família vai passar dificuldades. É o jeito. O povo já sabe da futrica toda. Se eu não fizer nada, vão me chamar de covarde e acreditar nessa história furada.

E se eu metesse o relho-cru nos lombos daquele futriqueiro, nas vistas de todo mundo, pra ele deixar de ser sem-vergonha? Não, não ia dar certo. É melhor mesmo acabar logo com essa história, porque o safado não vale um tostão furado. E se eu errar o tiro? Ele me mata em cima das buchas. Não, minha pontaria não falha nunca. Vou. Me deu na veneta, agora vou mesmo. Se não, ele vai ficar fazendo mangofa de mim. Chego lá, não quero conversa, mando ele descer do andaime, se estiver trepado. Ou mando se virar, se estiver de costas. Porque homem não mata nem cachorro a traição. Vim mostrar a carta que você escreveu em meu nome, bandido. Digo assim mesmo, porque escrever carta falsa é coisa de bandido. De bandido não, de cachorro. Faça o pelo-sinal, cachorro. Não, cachorro não faz pelo-sinal. Faça o pelo-sinal, seu mequetrefe, pra não morrer feito bicho. Eu vou mandar você pra terra dos pés juntos. Atiro dentro da boca lá dele, sem dó nem piedade. Ele cai que nem um passarinho, fica estrebuchando no chão. O povo quer me agarrar, corro, pra não ser linchado. Os cabras dele vão se meter na briga. Nunca fugi, mas dessa vez vai ser o jeito. Os coitados dos meus barrigudos vão ficar ao deus-dará. A pobre da Bastiana vai chorar pelo resto da vida, ficar sozinha no mundo, sem nada, sem homem. Prometo um dia voltar e continuar a vida. Vamos pras bandas da Bahia, no rumo de São Paulo. Se não der certo, se eu for preso aqui, vai ser até melhor. Pelo menos, ela e eles vão poder me ver, de vez em quando, e ter paciência de esperar.

Lá está ele, trepado. Já me viu. Será que está armado? Fala com os outros. Vai descer. Desça logo daí, seu filho de puta. Venha aprender a ser homem. E vem mesmo. Preciso atirar logo. Assim que ele chegar perto de mim. Não, vou primeiro dizer umas verdades e esperar a reação dele. Quando ele se peneirar, mando bala. Ai, filho duma égua. Vou te matar, bandido. A carta. Pura covardia. Queria me ver na merda. Mato, mato, mato. Olha os outros. Vão se meter na briga. Matei. Aposto que matei. Caiu. Está estrebuchando. Cachorros! Vou matar vocês também. Afastem-se. Cambada de cachorros! Ou mato ou eles me matam. Atiro e corro por aquele beco. Ganho as brenhas, corro feito bicho acossado, até a noite chegar. Vão me esfolar vivo, a mulher vai ficar doida, os meninos vão chorar. Eles são capazes de se vingar nela e neles, os malvados. E eu não vou poder fazer nada. Um dia, porém, vou me vingar, matar um a um. Não, é melhor me entregar logo, correr pra delegacia. Lá vêm os soldados e o delegado. Me deixem em paz, bando de covardes, sou só um contra vocês. Eles querem me matar, Seu delegado. Eu matei aquele bandido pra mostrar... Me soltem, filhos de puta. Me levem daqui, senão eles me matam. Prendam, afastem eles de mim .Magote de urubus! Quase morto e eles me batendo. Se não fosse a polícia... Também, não presta pra nada. Mas desta vez me salvou. Talvez até me mate de peia, como fizeram com Zeca Mariano. Coitado! Deram uma surra danada no pobre. Morreu todo quebrado e ensanguentado. Uns malvados! Só porque o desgraçado bebeu-bebeu e não pôde pagar a despesa. Precisava disso? Não precisa quebrar meus braços, não, seus cachorros.

Todo mundo olhando, parece que nunca viram cabra macho. Pois é, não engulo desaforo. Matei e está matado. Agora o safado está pra lá das profundas. Quem mandou ele arranjar encrenca? Agora estou com o sangue frio. Fiz o que devia fazer. Vou sofrer nas unhas desses outros urubus, mas um dia me solto. Lavei minha honra e a da mulher do prefeito. Ninguém vai mais acreditar naquela história. Vão me chamar de criminoso, é certo. Só porque matei aquele peste. Todo mundo vai ficar com pena dele. É assim o mundo. Só tem valor quem não presta. Defendi minha honra e meus direitos. Lavei com sangue. Não é direito, eu sei, mas não havia outro jeito. Ele escreveu a carta, inventou tudo, feito rapariga. Merecia mesmo morrer. E eu inocente, sem saber das tramóias do cabra. Eu nunca imaginei uma safadeza dessas. Esperava tudo, menos uma baixeza dessas. Esperava até que ele tentasse me matar. Atitude de homem. Se a carta não desse certo, se eu não fosse embora daqui, fugido como um covarde, ele me matava. Cabra ruim! Ou talvez não tivesse coragem. Covarde não tem coragem de matar ninguém. Manda matar. Ou arranja um meio de não mandar, como o sistema da carta.

O prefeito chegou a abrir meus olhos: olhe, ele vai mandar uma carta dessas pro Valdomiro. E com este não tem conversa. Mesmo sendo mentira. Eu ia morrer inocentemente. Desgraçado! Mas já está morto e não adianta mais pensar no caso. Agora é esperar pelo resto da desgraça. Quem nasceu pra penar, não adianta procurar felicidade. Desgracei minha vida, virei barata doida, bala zunindo nas oiças. Está tudo rodando que nem pião. Tudo uma desgraceira só.



2 - Doideira



Não pára de chover. Como nos invernos passados. E os presos trabalhando ao relento. Balaio de bosta de gado na cabeça. Líquido podre e fedorento escorria por minha cara suada, suja e endurecida. Eu e outros, desgraçados penitentes, açoitados pelos carcereiros malvados. Gritavam impropérios, como se fôssemos bestas de carga e devêssemos pagar os pecados de toda a humanidade. Ou limpar toda a sujeira do mundo. Quase todos inocentes. Quando muito, pecadores por necessidade. Eu, por exemplo, agi em legítima defesa. Aquele cabra mereceu a morte.

Vai ficar tudo molhado, vai virar tudo um rio, um grande rio barrento. E eu vou ser levado feito graveto. Assim, me lava o crime. Apenas uma vingança, porque aquela carta foi uma calúnia. Mais do que uma calúnia, uma emboscada. Com a carta nas mãos, o prefeito, antes meu amigo, se tornaria meu desafeto e me mataria. E sem eu de nada saber, inocente. Como eu iria corneá-lo, se lhe devia favores, se ele me dera a fazer serviços? Embora ele também me devesse favores. Elas por elas. Uma mão lava a outra. Sim, fui seu cabo eleitoral, arranjei-lhe votos e mais votos, de parentes e aderentes. Além disso, nunca me apeteceu sua mulher, mesmo sendo ela ainda bonita, nova e fogosa. Não nego: cometi mil desatinos, me meti em muitas fuzarcas, me embriaguei em demasia, em bares e cabarés. Tive cunhãs e muitos filhos deixei pelo mundo. Nunca, porém, me atrevi a mexer com moça-donzela e muito menos olhar para aquela mulher com olhos pecaminosos. Nem uma vez sequer lhe disse palavras de desrespeito. Quando com ela falava, era só: como vai a senhora? Bom dia. Boa tarde. Boa noite. Ela também (embora não saiba eu do coração de ninguém, porque, como diz o povo, coração é terra que ninguém pisa), ela nunca olhou para mim com intenções de traição. Seus olhares para mim eram sombrios. Nunca como os relâmpagos, que tudo alumiam e apavoram. E fazem da noite mais escura dia bem claro. E se sucedem os trovões, que assustam a natureza, rasgam o céu com estampidos e me amedrontam, como se eu fosse um pobre animal indefeso, perdido nesses ermos alagados e frios.

Tomei um susto medonho quando o prefeito me veio com a carta na mão, nervoso e enraivecido, as feições endurecidas, gaguejando. Fiquei também nervoso. Antes de ler o papel, pensei logo naquele lambanceiro de uma figa. Reconheci-lhe a letra, não tive dúvida nenhuma. Sosseguei, no entanto, quando o prefeito disse acreditar em mim. Logo, porém, me deixou apreensivo. “Tome cuidado então. Carta idêntica a esta vai chegar às mãos do vice-prefeito. E ele é valente como uma onça, mata sem conversa.” Virei o diabo na hora e pensei logo em matar aquele safado. Quando saiu o resultado do exame do manuscrito, criei coragem e mais raiva. Fui direto procurar o traiçoeiro. E fui armado. "Desça daí, seu escrivão, venha ver pela última vez sua carta de puta ruim." Ele desceu, atrevido, e foi me esbofeteando. Como se não bastasse o que já havia feito. Atirado sobre tábuas e pregos, vi tudo muito claro diante de meus olhos. Puxei a arma e dei um só tiro certeiro no peito esquerdo dele. Depois não vi mais nada, tudo escureceu. Como agora, com essa chuva grossa.

Eu vivia com medo de tudo, menino com medo de bacurau. Passados seis anos de prisão, convivendo com o cansaço, a tristeza, a dor, embriaguei-me mais ainda. Não via motivos para vestir as roupas nem falar as falas dos meus semelhantes. Desejo de fugir, sumir. Antes, porém, veio o indulto. Voltei para casa, enfim. Mas que liberdade era aquela, se eu não me sentia liberto? Tinha medo até de gato em cima do telhado. Um dia uma zoada nas telhas fez meu filho acordar e acender o lampião. Vendo a luz nas paredes e nos cantos do telhado, pôs-se a gritar. Via estrelas no céu. Corri, apavorado. Para mim, o safado, ressurgido do cemitério, havia destampado minha casa, para vingar sua morte.

Não tenho mais sossego. É tempestade dentro de mim, é tempestade lá fora. É mata caindo aqui, é boi correndo maluco. É rio que vai enchendo, é lama por toda parte. É perdição de quem se perdeu, é tristeza que não tem fim. É a vida virando perau, é rio cheio e barulhento. É lama, ribanceira derrubada, levada pras lonjuras. E esta doideira de correr, estando parado, porque não sei se sou eu ou o rio quem corre. Se sou eu que corro maluco, dentro da treva e da tempestade. Se é o mundo que gira doido, com medo de babau, jaguara e caipora.



3 – Praga de urubu



Você caiu, enfim. Agora vai apodrecer debaixo desse aguaceiro. Queimado pelos raios, açoitado pelos ventos, levado nas ribanceiras, feito boi morto na enchente. Vai bater no fim das águas. No fundo do mar, lá onde moram as grandes serpentes. Nem por encanto você será salvo. Nem por milagre. E não adianta se valer de seus santos. Olhe o céu clareando, os trovões assustando a natureza. Olhe como a chuva está grossa, seu valentão. Agora trema de frio e medo. Agora agüente as conseqüências de seu crime. Quem não pode com o pote, não pega na rodilha. Quem mandou você fazer aquilo? Quem lhe deu o direito de tirar a vida de um pobre vivente? Quem mandou tirar a vida daquele coitado? Ele só queria ganhar dinheiro como você ganhava, para sustentar a família, tão grande quanto a sua e a de tantos outros. Quem mandou, heim? Você não tinha o direito de fazer uma desgraceira daquelas. Por que só você queria construir prédios e ganhar dinheiro? Por acaso ele não era tão bom artífice, tão pai de família, tão humano como você? Se escreveu a carta, foi por necessidade de salvar a pele. Por que um crime maior para vingar um crime tão curto? Matar por causa de uma simples carta! Você tem mesmo certeza de que não namorava, pelo menos com os olhos ou apenas com o desejo, a mulher do prefeito? Você nunca foi flor que se cheirasse. Lembra-se daquela sua vizinha? E da irmã de sua própria mulher? E da filha da velha broeira? E de tantas e tantas outras? Ou já está broco? Não sabe mais o que fez? Bote o quengo pra funcionar. Não se faça de mouco pra melhor passar. Você nega, por acaso, ter engabelado aquela moça da Serra? Aquela a quem você disse ser solteiro e rico fazendeiro da Paraíba. Sua conversa fiada iludia qualquer mulher. Você era sonso, sempre foi sonso. Todo o seu tempo de prisão não passou de uma grande sonsice. Até granjear fama de cabra trabalhador e conseguir livrar-se da bosta na cabeça. Mas pra quê? Pra viver se embriagando, desrespeitando as famílias, humilhando a mulher, envergonhando os filhos? Lembra-se de uma vez ter saído nu, bêbado, facão em punho, derrubando cocos dos coqueiros públicos, só por malinagem? De você não se podia esperar coisa boa. Você já nasceu malfeitor. Instinto perverso. Matava animais só pra ver quantas tripas eles tinham. Malvado! E a pisa dada em seu filho, com o chiqueirador? Saiu sangue das costelas do miserável. E você urrava de ódio, animal doido, como se batesse num inimigo ou numa pedra. Você sempre foi ruim. Não vale o que a gata enterra. Lembra-se de ter jogado fora o escapulário que sua mãe lhe deu quando a Santa Missão visitou o interior? Agora precisa de ajuda. Mas ninguém virá socorrê-lo. Todos o abandonaram, como se você estivesse atacado da peste. Agora vai morrer sozinho, feito leproso, cão sem dono. E só não lhe atiram pedras porque já bastam as que caem do céu. Castigo, castigo, seu danado! Agora se ate sozinho. Sua vida virou uma doideira. Aguente o rojão. Matar não é nada, ruim é essa doideira dentro da cabeça e esse castigo da natureza. Lembra-se da mulher do finado, gemendo e chorando? E você dizia: matei e está matado. Pois ela, pra se vingar, desejou a você a pior de todas as mortes. Você não acreditou e ainda disse: praga de urubu não mata cavalo. Agora aguente, filho de uma égua. O morto talvez esteja em melhor situação. Morreu sem pensar na morte e você vai morrer se agarrando aos últimos galhos da vida. Agora não chame a vida de tirana. Não adianta se encostar nos troncos das árvores, se esconder detrás das moitas. Onde estiver, a desgraça irá buscá-lo. É o destino. A desgraça mora até nos cafundós de judas. O fundo das grutas. Não tem por onde escapulir. Olhe pro céu e veja a vingança vindo do alto. As nuvens vão se despencar, as estrelas vão cair sobre a terra. Tudo vai virar mar, como predisse o Bom Jesus Conselheiro. Não adianta se lamentar, nem botar a culpa nisso ou naquilo. Você vai pagar caro pelo seu crime. Por todos os seus crimes. A morte daquele homem foi apenas desembocadura do grande rio de seus erros. Você se lembra das aves mortas por sua baladeira? Não, não se tratava de brincadeira. Você matava por malvadeza. Quem via a sua frieza, nem imaginava que você só faltava se cagar de medo de babau, caipora e jaguara. E o medo dos coitadinhos dos bichos? E não é só isso. O rosário é grande. As galinhas esfoladas, como se não bastassem os animais maiores. Jumentas, cabras, novilhas. Você, capiau sem eira nem beira, maculava a natureza. E as meninas que você obrigava a se despir no meio do mato, detrás das bananeiras, nas beiras dos rios? E já frangote, as saias que você arribava por pura sem-vergonhice?

Você vai pagar caro por tudo. Vai apodrecer feito fruta na lama e se encher de bicheira. Os urubus vão bicar seus restos, quando a chuva passar. Se antes seu corpo não for levado pelas grotas, pelos rios, para o fundo do mar. Porque aquela prisãozinha não significou nada, não valeu nada. Não deu pra pagar seus pecados. Agora, sim, é que vem castigo. Você vai virar molambo. Se assim não fosse, você muito ainda iria andar ao léu. Ovelha desgarrada. Retirante. Carcaça arrastada pelas onças. Fuçada pelos porcos. Esquecida na lama. Pior, muito pior. Você vai ficar inteiro, cururu inchado. Cascabulho. Muito pior.
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sexta-feira, 9 de dezembro de 2005

O engenho poético de Batista de Lima (Nilto Maciel)



O terceiro volume de poemas de Batista de Lima é a reunião de dois livros. No “Engenho”, também título do conjunto, buscou pintar ou descrever um pedaço histórica e sociologicamente importante da zona rural cearense. E pintou as personagens e descreveu partes do cenário do engenho de cana, como se, dirigindo seu discurso à cidade, pretendesse comovê-la. Seu pincel denuncia, como o Picasso de “Guernica”. Sua pena é um grito, como o de Jorge Amado dos primeiros livros.

Todavia, talvez seja melhor lembrar um poeta. Outro Jorge, o de Lima. Aquele da “Mulher proletária”. Até pela nordestinidade de ambos. Em Batista de Lima há instantes concretamente revolucionários: “Caldeireiro caldeireiro / por tua mão passadeira / passa o ouro da cana / do sítio à mão do patrão”.

O poeta não é, porém, um pregador de rebeliões, um pasquineiro metido a poeta, um desses bons rapazes que confundem arte literária com discurso político. E certamente é um homem voltado para o hoje das lutas e o amanhã das transformações, como o são sempre os bons escritores. Sua linguagem é translúcida, sem ser pobre. A terminologia do engenho está presente em todos os poemas da primeira parte do livro. Com isso, Batista de Lima demonstra que a boa literatura pode ser feita com a língua falada, viva, nacional e regional. E que seus pés estão enfiados na terra, feito raízes, e sua alma vibra com a alma do homem lavrador, nordestino, secularmente sofrido.

Batista utiliza métricas e formas poéticas variadas, sobretudo aquelas herdadas do cancioneiro ibérico pelo nosso cordel e pela poesia sertaneja e popular. Apesar disso, elabora também sonetos, embora fugindo aos cânones clássicos.

Enquanto “Engenho” é um longo poema composto de vários pequenos poemas, o que não constitui nenhuma novidade, no segundo livro, ou na segunda parte, Batista abre o leque de suas inquietações e, liberto dos propósitos ideológicos e lingüísticos que nortearam a feitura do primeiro, volta-se até mesmo para a metapoesia. Já não se dedica aos flashes do canavial. Agora vaga pela casa e pela infância, pela terra vasta e pela palavra “vasto”, pela geometria e pelo sonho. Faz-se poeta de outras dimensões e engendra poemas de linhagens e temáticas diversas. E, mais uma vez, sabe utilizar todas as cores, todas as técnicas e toda a magia que a palavra escrita pode ter nas mãos de um poeta.

Demonstra Batista de Lima que a arte poética prescinde de gráficos e invenções “geniais” Para ela basta um material primitivo e eterno – a palavra. Não a palavra isolada, não o quebra-cabeça, não a charada, mas a frase, o texto, o discurso, o verso. Ela, a palavra, e o exercício do poeta.

São tantos os bons momentos de Engenho que seria pouco eleger apenas quadros como “O Morto”, “Escola de Pedras” e “Poema”. E também “Garimpagem”, pela sua dialética. Outros e outros poemas se colocam lado a lado destes, pela poesia neles contida e pela engenharia com que foram elaborados.

Há em Os Viventes da Serra Negra dois poemas fundamentais da obra de Batista de Lima: “Agri/cultura”, espécie de poema-roteiro, e “Mirança”. Talvez um volume de poemas com o primeiro título pudesse ser confundido com um manual do lavrador. Já o segundo, além de belo, é novo, ou renovado. Mas, pluralizado, serve de título à segunda parte do livro.

Oriundo do campo, Batista está atado ao espaço rural. Em sua escrita, vocábulos como “chão”, “casa", “jardim” e "alpendre" se repetem por necessidade da própria linguagem poética. A casa ora é um todo, como a do avô, que “tem histórias que o vento/ esqueceu nas cumeeiras”, ora é vista em cada um de seus compartimentos: “No quintal da casa/ uma outra casa começa”. A casa, entretanto, situa-se dentro do sítio, do Taquari, que se ilha em uma terra maior – Lavras da Mangabeira. Ao redor da casa, o canavial, as pastagens, os currais, o chão de massapê, onde os homens encalham feito navios. E ainda os campos, as léguas, o açude, o rio que seca, a “estrada que vai/ que apenas vai/ que de tanto ir/ chega ao pé de mim”. Na cidade, o grupo escolar, a igreja, a praça, as calçadas. Nesse mundo dos viventes da Serra Negra, onde “as mulheres só têm/ coração para seus filhos/ ossos para seus homens”, o canto é um desencanto. A casa, de paredes de barro, tem telhados, chaminé, alpendre, cumeeiras, quintal, poleiro e um poço velho, “vertiginoso espelho/ onde mora meu medo”. Antes do dentro, a porta, depois o canto da porta, onde “o último cachorro deixou seu jeito”. Pelos quartos, baús de carinho, retratos, chapéus, abas, camas, mesas, gavetas. E o último quarto, as dobras da casa, “a dor/ que no morador mora”. Por fim, “dentro do dentro do quarto/ o centro de onde parto”. E lá está o menino, o poeta, com suas visões.

Noutra geometria, a do apartamento, no espaço roubado à casa, aos varais, às portas abertas, a Vitalina, porque não é mais tempo de cocadas, nem de tição, fogo e brasa, nem de caco, nem de coco, num espaço sem raízes, porque a nova morada não tem chão e o menino está desterrado de seu Taquari, o poeta se lamenta: “No mundo do apartamento/ não cabe a casa”. Aquele espaço ficou para trás, agora é apenas “uma dor sem jeito”. Ou ficou para dentro, fincada no fundo, feito estaca, doendo: “A casa tem raízes que se aprofundam/ no chão da alma”. A poeira do tempo, os ponteiros do relógio.

É a outra tecla da poesia de Batista de Lima, batida com vigor e beleza em “Mirança”.

Mas, como contar o tempo sem pisar o chão? “Os meninos subiram a serra/ para conhecer o céu”.

Em tudo, a busca da palavra, do poema. Da miragem? O poeta procura uma palavra, possível, até mesmo trivial, vaidosa dama. Como encontrá-la? Pegando-a, “pela surpresa, no bote”, em luta de caçador e caça, de fera e presa.

Em “Palavras”, toda uma confissão: “Minha primeira função/ foi ouvir palavras/ batidas do coração”. Palavras colhidas à terra, ao espaço, e ouvi-las, tecê-las, repeti-las, poli-las, com o tempo.

Batista de Lima, polidor de palavras, poeta.
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Maracanãs (Nilto Maciel)



No meio daquelas mulheres tão coloridas e belas demais para seus olhos turvos, a tontura o empurrou para os cantos, barata chutada com nojo. A alegria geral cresceu em ondas avassaladoras, afogando-o. Ele escapulia, cheio de culpa, fugindo dos olhos que o não olhavam. Pião perdendo a velocidade, prestes a rolar descontrolado, a ponta para todos os lados. Equilibrou-se, voltou à mesa. Suava, arfava. Iria embora, para a rua, a praia, os matos longínquos? Não, restava-lhe ver e sentir. E beber, por não lhe ser possível o amor de tantas mulheres. Mais uma cerveja. Já que pular também não podia. Acendeu um cigarro.

De seu canto, veria tudo. Estaria, de certa forma, mais perto de todas as folionas. Daquelas calcinhas verdes e daquelas meias pretas, daqueles óculos vermelhos e daqueles penachos cinzas, que cantavam feito maracanãs fogosas à beira da lagoa. Rodopiavam e riam já dentro de seus olhos arregalados e famintos. Beleza demais para a sua feiúra de lobo solitário. Mas quem privatizou a natureza, o sexo? Não, era tempo de brincar. Com certeza, milhares de homens mais tristes gritavam por detrás de máscaras. Umas até femininas. Criou coragem, bebeu um gole, ergueu-se. E correu para o meio do salão, esquecido de suas pobres cores. Cercou-se de passos e harmonias e gritou um grito de vencido. Tão próximo de tudo, perdeu a noção do sonho e mergulhou noutro. Mais antigo e terrível para o seu corpo raquítico de comedor de açúcar. Ao seu redor, já não bailavam mocinhas. Nem as aves do livro de zoologia. Eram guerreiras em pé de guerra. Amazonas. Maracás medonhos matraqueavam no ar repleto de fumaça. Dentro das cuias, pedras preciosas em revolução. Fora, penas de guarás agitados, como numa tempestade. Guarás ferozes, brancos, pretos e vermelhos, que esvoaçavam ao seu redor. Abelhas mortíferas, a querer ferroá-lo, queimá-lo. Iria tombar feito um cobarde caraíba? Parou, como se fosse possível frear o medo que galopa dentro dos olhos. Estranho, espécie de sonho. Ou o delírio de quem bebe para dormir? Voltaram as maracanãs enlouquecidas, rindo daquela cara de cera, múmia fugida da frigidez do tempo. Mergulhavam harmoniosamente no espelho das águas. Dois bandos a sapatear exatamente um nos pés do outro. Balé perfeito. Fascinado, não viu aproximarem-se dois imensos soldados. Agarraram-no pelos sovacos, como se o fossem depenar. As folionas reuniram-se numa só, caladas, estáticas. Conduziram-no, espantado. Maestro daquela ópera. Vá embora, se não quiser ser jogado por cima do muro. Do rochedo que apaziguava o mar. Aquele jaguar a bufar lá fora. Deixou-se levar como um cordeiro para o horto. O mar gritava, o samba fugia, a lua rolava, o frio zunia. Caiu para sentar-se. E logo dormiu e teve um sonho. Quando o sol lhe queimou os olhos, um riso esquisito abria-lhe a boca de lado a lado.
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quinta-feira, 8 de dezembro de 2005

O pássaro de luz de Guido Heleno (Nilto Maciel)


Pássaro de Luz, de Guido Heleno, traz apresentação de Cassiano Nunes e 36 poemas, cujos temas variados nos dão uma idéia de sua versatilidade. Ora Guido apresenta sua vocação telúrica, com poemas bucólicos, paisagens do interior de Goiás e Minas Gerais, ora fala de solidão e angústia, como no longo “Panorâmica desvairada”, em que, com algum humor, diz: “orar é preciso/ mas se possível, senhor, sem o peso do mundo sobre os ombros/ pois em meu dorso serpenteiam escolioses doloridas”.

A viga mestra onde se assenta a poesia de Guido Heleno é, sem dúvida, a dor do homem urbano. O cotidiano da cidade grande é pintado com a linguagem de uma realidade cinzenta: “todas as ruas são riscos de vida/ em cada esquina o encanto se desfaz”. O poema “diagnóstico da urbe” é exemplo típico dessa poesia feita com a matéria suja da civilização burguesa.

Essa tendência da poesia brasileira contemporânea – de retratar as mazelas sociais e, especificamente, urbanas – alcança em Guido Heleno pontos culminantes. A cidade enferma tem “ruas reumáticas”, “tumores em escavações”, sofre de “câncer”, tem respiração ofegante. Não poderia faltar, pois, o tema poluição. Por isso, o regresso do poeta ao campo, sua saudade dos pássaros em vôo, dos insetos em cântico, dos rios, das árvores, da própria vida campestre.

A morte, não como enigma ou objeto de especulações filosóficas, mas como fato corriqueiro do absurdo da civilização industrial, é tema dominante na poesia de Guido. “Passeio” e “ferroviária” colhem fragmentos semelhantes desse absurdo – a menina e sua boneca esmagadas pelo trem; a velha e seu cão esmigalhados pelo ônibus.

Nesse pousar sua visão sobre a podridão social, não poderia o poeta deixar de atingir o âmago mesmo da realidade. Nasce então o grito, o protesto, como em “América".

A formação dessa concepção poética do mundo em Guido Heleno poderia ser assim esboçada: o poeta postado à janela da vida, a determinar-se “passar um pano úmido nos olhos/ desembaçar o mundo”. A obscuridade não deixa ainda palpável a realidade das coisas: “lá fora/ se não me engano/ soam sobrenaturais trombetas”. Entre a paisagem bucólica perdida – ponto de partida para uma crítica da devastação da natureza e o estar na cidade, o início de uma fase de constatação: a rua, Brasília, sua História a confundir-se com a página mais suja da História do Brasil (“Honestino sorrindo para os amigos! sem pressentir ainda o ódio dos soberanos”), até o grito de protesto: “por que tantos punidos/ torturados e banidos?”
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Impossível contar a história de Palma (Nilto Maciel)




Ao regressar de Palma, passou Martinando dias e dias aborrecido. Não o incomodava ter visto os primos ainda ameninados e o tio quase igual a antes, como sempre tinha sido. Admirava-se da prodigalidade mansa daqueles adolescentes, como se o pai fosse muito rico. Todo o povo sabia da avareza do velho Augusto: até dormia na bodega, com medo de ser roubado. Nunca permitiu a presença demorada dos filhos no pequeno estabelecimento. Não fossem chupar os bombons expostos à venda. Tudo medido e pesado, para que pudessem estudar e ser gente na vida. Talvez doutores.

Depois de satisfazer a ânsia de redescoberta da terra natal, Martinando procurou o tio. Sobre a mesinha, onde guardava o dinheiro, duas carteiras de cigarro abertas, como se o tio não tivesse deixado de fumar, depois de ter ido parar num hospital, acometido pela bronquite secular. “Vim só comprar cigarro”, apressou-se a dizer, abanando a cédula na direção do comerciante.

Na verdade, Martinando se sentia cansado de tanto andar. Preferia descansar os pés, embora para ouvir as perguntas de sempre: “Como vai o Carlos? Você já se formou? E a comadre Clarice?” Havia andado muito, subindo e descendo ladeiras, no meio dos matos, percorrendo as velhas ruas, onde brincara de bola-de-meia. Tudo diferente do que tinha imaginado. Parecia uma terra estranha, tantos montes, tantos rios, tanta floresta. Nunca um passeio por aqueles campos. Sempre entre as paredes das casas da cidade. Quando muito, antes de se mudar para a capital, pequenas viagens aos sítios de parentes e aderentes situados do lado direito de quem entrava na cidade. Via tudo com olhos novos, com interesse de pesquisador. Como um médico legista diante do cadáver da própria mãe. Não, não uma visão assim tão trágica. Sentia até umas pontadas de nativismo nos olhos. Os primos nunca haviam saído de lá e faziam papel de cicerones. Davam indicações, explicavam nomes e apelidos, sérios e preocupados em servir ao primo viajado.

Martinando encontrou o livro por acaso. Porque esperava colher informações sobre a história de Palma nas pessoas mais velhas e nas construções antigas. Acompanhado de alguns primos, vasculhou grotas para saber os nomes dos sítios, dos rios e das árvores. Depois dispensou a companhia deles e andou só pela cidade. Ora, conhecia Palma tanto quanto eles. Diante de cada prédio de aparência antiga, sobrados e casarões, parava, olhos de turista, caderno e caneta à mão.

Da fachada de um sobrado copiou o ano de 1912; na parede da frente de um casarão leu a inscrição “Solar do Capitão Pedro Vasconcelos – 1915”; e assim por diante. Aquelas informações serviriam para contar parte da história de Palma. Ultimamente não parava de sonhar com a velha cidade. Agora acreditava nos sonhos. Porque os sonhos não surgiam do acaso, mas de uma exigência objetiva do intelecto. Ora, como sonhar com aqueles prédios e aquelas inscrições, se seu intelecto não exigisse a história de Palma?

Cansado de procurar inscrições, entrou numa bodega, à toa, como poderia ter ficado num banco de praça. O bodegueiro não lhe parecia estranho, como a maioria das pessoas da cidade. Porém não lhe sabia o nome. Aquele rosto envelhecido habitava a memória de Martinando. Aborreceu-se de novo. Não, não se sentia aborrecido com o incidente público provocado pelo bodegueiro ao avistar Caetano e gritar: “Diga a Madalena que venha pagar os quarenta cruzeiros que me deve.” Apenas desapontado. O comerciante teria feito aquilo para insultar toda a sua família. Cobrar aos gritos uma continha de nada, ora essa! Como se gritasse: “Olhe, sua família, tão numerosa e tão conceituada, compra fiado e não paga porque não pode.”

Caetano parou e se voltou para dizer: “Mamãe não tem dinheiro nenhum.” Talvez até quisesse dar melhores explicações, mas, vendo o primo, continuou a caminhada. “Então diga a ela que arranje dinheiro hoje à noite com os machos.”

Martinando teve ímpetos de se retirar e abandonar o livro. No entanto, continuou a acariciá-lo, folheá-lo, desejá-lo. Onde encontraria aquela obra raríssima, senão ali? Permaneceu. E era a lembrança desse incidente que o aborrecia. Por que não comprou o livro? Tivesse perdido a cerimônia, pedido dinheiro emprestado ao tio, e pronto. Um livro velho destinado a enrolar sabão e fumo numa bodega de interior, transformado em raridade de antiquário! E se tivesse roubado o objeto? Ora, o nome da família iria para onde com mais essa? Por que não pediu o livro ao comerciante, se se tratava apenas de papel para enrolar sabão?

Martinando se aborrecia com o destino. Por que parou naquela bodega e não noutra? Ou em todas havia livros importantes sobre o balcão, destinados a embrulhar sabão, fumo?

Pelo hábito de querer saber de que tratam os livros, folheou aquele pedaço da história de Palma, sem saber como se comportar diante de tamanho achado. Aquele livro teria respostas a todas as suas indagações históricas. Desde os primórdios de Palma. A aldeia indígena transformada em vila, depois em cidade. Tudo em detalhes. A primeira cabana, a primeira capela, o primeiro sobrado. “É para vender?” Não devia ter demonstrado tanto interesse pelo livro. O papel velho virou mercadoria de valor. Surgia o ato mercantil. “Oitenta cruzeiros. É o último exemplar.”

Numa foto, a Praça da Matriz vista de longe e do alto. Talvez de outra igreja ou de um avião. Formando um triângulo, viam-se três igrejas. Martinando não se lembrava da existência de duas delas. “Demoliram estas duas, ficou só a matriz,” explicou o bodegueiro. “Livro raro. Toda a história de Palma.”

(Brasília, 5 de abril de 1978)
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terça-feira, 6 de dezembro de 2005

José Alcides Pinto: Ordem e desordem (Nilto Maciel)



Cassiano Ricardo via na poesia de José Alcides Pinto uma arte de currupira. E tão inumeráveis têm sido seus apelidos, de satânico a louco, que não se duvidará chamem-no agora de poeta escatológico.

Em Ordem e Desordem, Alcides faz profissão de fé numa poesia mais comprometida com o homem-animal. A palavra é apenas um dado recente na evolução biológica, e a poesia escrita um dado recentíssimo. Assim, o autor de O Dragão abandona a história da vida para penetrar, sem receios ou preconceitos, na própria biologia, não como cientista, mas como poeta. E descobre que poesia não se faz com palavras, porém com fezes. De igual forma, a pintura. “Faz-se a pintura no muro/ com fezes/ bosta de animal, pêlo de cachorro/ doido, vira-lata”. 

Arte para ele nada tem de beleza, aquela beleza distante do bicho-homem que ainda teima em se decantar em prosa e verso.

Ordem e Desordem traz também o cantor do tempo perdido, em versos que recontam a infância, relembram a mãe. Há até uma “Conversa com o tempo”. No entanto, a inserção de vocábulos considerados malditos por defensores da moral e dos bons costumes, nesses poemas aparentemente voltados para a História, vem confirmar a tendência de Alcides Pinto para uma poesia suja. Assim em “A professora”: “Esse tempo vai longe;/ Porra! Como vai longe”.

É essa linguagem, a utilização da palavra certa, embora supostamente repugnante aos olhos e ouvidos fariseus, que dá ao verso de José Alcides Pinto um sentido duplamente escatológico. Porque trata do homem e sua miséria animal e porque fala do ser humano e seu destino. E aqui não há como separar o biológico do histórico. Então temos o poema drummoniano “A bomba oficial”.

Não poderia, por isso mesmo, de deixar de constar no livro um "Exercício rimário”, onde o poeta se diz artífice de uma poesia de variados e infinitos motivos: “Faço o poema/ de ouro/ da asa do besouro./ Do couro/ do boi/ do eco do abôio”. E até “Com o talento/ de Poe:/ Verlaine, Artaud, Rimbaud”.

Dentro dessa variedade de motivos, encerra-se o livro com um curiosíssimo e enigmático “Projeto rural para receber o Poeta Artur Eduardo Benevides na Fazenda Equinócio”, no qual verso e prosa convivem em “cantos” que lembram ora a Bíblia, ora os gregos, ora o romance romântico, ora os contos de Poe.

Enfim, Ordem e Desordem é a própria contradição de José Alcides Pinto, e nada melhor do que o título do livro para defini-lo.
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O castigo de Deus (Nilto Maciel)


Olhei para o chão. Uma sombra deslizava, corria. Respirei e senti cheiro de coisa queimada. Mormaço insuportável. Olhei para o céu, na esperança de ver alguma nuvem de chuva. O sol, pardacento, quase me cegou. Levei as mãos à testa e corri para junto de mamãe, que lavava roupa junto ao tanque cheio de água. Ela nem deu resposta à minha inquietação. Antes, quis saber a causa de tanta tropelia. Fosse brincar na sala e não lhe desse mais sustos. Terminava me batendo.

Assustado, corri, atravessei o corredor e alcancei a porta da rua. Às janelas, mulheres debruçavam os olhos para as bandas do céu. E mexericavam medos antigos de fogos vindos do alto para castigar os pecadores. Nas calçadas, esquecidas pelos meninos, castanhas de caju se assavam. Pés descalços não suportavam a quentura do chão. Evolava-se dele uma fumaça espessa.

— Incêndio, minha gente, incêndio!

O homenzinho parecia aflito, suava muito e fedia a cachaça. Talvez fugisse para a serra. O jumento, no entanto, mostrava-se manso, sem a mínima vontade de andar. Com certeza, se sentia cansado de carregar carga tão pesada de bugigangas nos caçuás. Nem olhava para trás nem para o alto.

— Incêndio, meu povo, incêndio!

À falta de ouvintes para sua notícia, o homem vibrava o chicote no ar, como para alertar o animal. O fogo devorava a fábrica do Seu Cordeiro. E ninguém ia apagar as chamas? O jumentinho dava um passo, catava capim, resfolegava. Aproximava-se deles outro curioso, olhos fitos na fumaça cinzenta que passeava sobre todas as coisas. Ninguém ia apagar o fogo?

Medo redobrado, voltei ao quintal e acocorei-me ao pé das bananeiras, onde sempre fazia frio. A terra úmida molhava meus pés e me confortava. No alto, porém, a fumaça corria e, de vez em quando, fazia sombra. Parecia até nuvem de chuva. O homem e seu jumento talvez já tivessem ido embora. Fui até junto ao muro. Não fossem os cacos de vidro, eu poderia ver as ruas, a fábrica do Seu Cordeiro, o incêndio. Línguas vermelhas a lamber o céu azul. E as casas, toda a cidade. Sim, o fogo devoraria tudo, coisas e pessoas. A menos que fôssemos todos para o meio da rua, as praças. Ou para a igreja matriz. Lá o fogo não entraria. Na casa de Deus a salvação. Quando o mar invadisse a terra, no dilúvio do fim do mundo, quem quisesse se salvar, buscasse abrigo no interior da igreja. As águas não passariam dos degraus do patamar, enquanto o mundo estaria alagado.

— O mundo vai se acabar.

E, se não fosse pela água, seria pelo fogo. Por que então não corríamos todos para a matriz?

— Vamos, mãe.

Fazer o que na igreja àquela hora do dia? Deixasse de besteiras, fosse brincar.

Obediente, atravessei de novo a casa, aos pulos. Da janela avistei o jumentinho, a comer o capim da rua, conformado com sua carga, manso como antes. O homem, suado, no entanto, falava mais alto e gesticulava muito, cercado de curiosos. No céu, a fumaça negra fazia sombras enormes no chão.

Aflito, busquei refúgio no quarto de dormir e me ajoelhei diante do santuário. Deus nos protegeria. Olhei para o teto: a telha de vidro servia de clarabóia. No entanto, a luz do sol quase não penetrava no quarto. E papai, onde estaria? Corri mais uma vez para perto de mamãe. Ela saberia me dizer. Nem tive tempo de abrir a boca. Fosse logo tomar banho.

— Seu pai está para chegar.

Precisava ter certeza daquilo e, numa carreira medonha, atravessei a cozinha, a sala de janta, o corredor, e cheguei à sala.

— O que é isso, meu filho?

Ele tirou o chapéu e se dirigiu aos fundos da casa. Estava salvo.

Mais longe, o jumento não parava de comer capim. Onde andaria o homenzinho suado? Estiquei o pescoço – o desgraçado apareceu à porta da bodega de Seu Quincas e cuspiu.

— Venha tomar banho logo, menino mal-ouvido.

(18/11/87)
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segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

Joanyr de Oliveira: Um poeta quase bíblico (Nilto Maciel)


O título de qualquer livro é, necessariamente, uma síntese. Em muitos, entretanto, torna-se quase impossível ao leitor descobrir a intenção do autor. Não é o caso de O Grito Submerso, de Joanyr de Oliveira.

Existe em Joanyr uma profunda preocupação com a palavra. Está arraigado nele o conceito segundo o qual o poeta trabalha com a palavra. Palavra é ferramenta, objeto de trabalho. Esse conceito se amplia, para fazer da palavra objeto a ser trabalhado, como a terra para o lavrador, a madeira para o carpinteiro, o barro para o modelador. 

Por extensão, a palavra é, ainda, pedra no meio do caminho e nela o poeta tropeça para descobri-la. A palavra é também fruto pendurado da árvore. A palavra existe em abundância e ao poeta cabe colhê-la.

Adão no paraíso, ao poeta é dado até colher o fruto do mal e distanciar-se dos desígnios de Deus. E ser maldito, como Baudelaire. É-lhe igualmente permitido simplesmente vagar por estes caminhos infinitos e, rei ou súdito, ufanar-se de habitar esse reino – o da palavra. “Meu reino é a palavra/ em seus ângulos mais lúcidos”.

A palavra é também para Joanyr de Oliveira prisioneira da noite e a ele cabe resgatá-la. Bruxo de mil poderes, o poeta inventa, diabolicamente, o poema. Surge então "Didática geral”, no qual a palavra é captada e apreendida, como se o poeta fosse o dicionarista do sobrenatural. Nascem dez sub-poemas: o primeiro cabeça (caput) e o último capacete, paradoxalmente. Capacete e capuz sobre a cabeça do capitão e do capataz. E o jogo se faz. É a palavra no mosaico do poeta.

O Grito Submerso é livro de bons poemas e excelentes momentos. O ponto culminante dessa montanha é o meritíssimo senhor poema intitulado "Lunar”.

Em Sinais dos tempos, Joanyr já domou a palavra, o verbo. Por isso me volto para outros aspectos de sua poesia. Sem esquecer o lirismo, Joanyr se volta para o mundo exterior, em alguns poemas, e faz poesia de protesto. Alude a alguns momentos de nossa História recente e atual. Como o caso da tortura a presos políticos. Elabora vigorosos anátemas (preciso ser redundante) aos torturadores. A tortura, porém, não foi crime cometido apenas no Brasil pós-64. Ela é antiga e universal. E ele sabe disso muito bem. É por isso e então que a poesia aflora ou deixa de ser mera poesia de circunstância. Ou apenas panfleto. Nelson Mandela aparece grandioso num dos poemas. Todavia, mesmo que amanhã ninguém mais se lembre dele, o poema de Joanyr não terá sido simples panfleto: “Não estou hoje para a Primavera / nem para as luzes e os anjos. / Sou um poeta de sangue e nervos / e a liberdade é minha sede”.

O poeta, ser sensível por excelência, não pode passar imune às injustiças, misérias, catástrofes sociais. Talvez nem tenha existido aquele tipo de poeta lunático, alheio às dores do mundo, recolhido à sua torre de marfim. Tal idéia, difundida no seio das famílias burguesas, visava tão-somente afastar os jovens da poesia, torná-los apenas médicos, comerciantes, padres.

Joanyr não é somente protesto. E, se o fosse, não seria o bom poeta que é. O lirismo não está esquecido em Sinais dos tempos. Trata-se, no entanto, de um lirismo angustiado. Lirismo nascido da memória. Não o lirismo adolescente, piegas, que Joanyr já amadureceu, já sazonou. A memória é o terreno adubado onde ele colhe os frutos com os quais elabora iguarias e licores. Delícias do passado, a infância, a juventude. A cidadezinha, a vida quieta, saudades: “O branco-azul do colégio / caía nas tardes peripatéticas”.

Sem a lembrança pouca poesia existiria. A não ser aquela feita apenas de palavras. Poesia árida, tida por alguns propagandistas de vanguardismos passageiros como a única poesia possível e necessária. Questão de gosto.

É na memória que tudo se guarda e se acha. A vida e a morte. O tema da morte está também presente em Sinais dos Tempos: “As mãos da Eternidade vêm falar-me / empós de um oboé grave e suspeito / e retemperam fios desse alarme / pelo universo atônito do peito”.

Versos como esses, de singular construção, até ensejariam falar-se em simbolismo. Ou em surrealismo. Mas a boa poesia não carece de rótulos. Aliás, seria melhor não lhe dar rótulo nenhum. Cruz e Sousa seria grande poeta, mesmo não sendo simbolista. Ainda que não tivesse lido os corifeus dessa escola, certamente seria um grande poeta. Talvez romântico, talvez parnasiano.

Já disseram estar a melhor poesia impregnada de metafísica. Os exemplos são muitos: Quental, Sá-Carneiro, Pessoa, para falar apenas em portugueses. São poetas espiritualistas. Lembraríamos também o nosso Jorge de Lima, tão místico. Há um poema de Joanyr que até lembra o poeta alagoano. Trata-se de “O Fio”, poema longo, não tão longo quanto Invenção de Orfeu – um monumento. Um dos melhores e mais perfeitos poemas de Sinais dos Tempos.

Uma das partes desse livro é toda constituída de sonetos. Com rimas e decassílabos, sim, porém com um sopro de novidade em todos eles. Novidade num aspecto, porque Joanyr de Oliveira é quase bíblico. Seus temas favoritos são bíblicos. Como em Camões e Jorge de Lima. Não é à toa o título Sinais dos Tempos.

Joanyr voltou melhor, muito melhor do que nos tempos de O Grito Submerso. E naquele tempo já era bom poeta, respeitado e admirado por seus pares, pelos críticos e leitores.
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O caso de Amo (Nilto Maciel)



Eis que venho sem demora.
Ap. 22.7.

Mitologia
Gordo e corado carro parou no claro da esquina e dele saltou murmúrio suave de sereia, que penetrou as serenas ouças de bela menina. Sai dos escolhos destes velhos becos e vem provar o doce desta vida. Vem ver que eu tenho mais pra dar que pra tirar. O macio deste pássaro de ouro e o vôo aventureiro de meu pulso. Vem, flor mimosa, molhar teu cheiro na brisa desta noite.
E tanto o canto sibilou que a pobre flor sorriu e para o carro entrou.

Embriaguez
Num bar qualquer, um magro, pálido e triste obreiro bebia umas e outras doses de aguardente. Falava da vida e da morte e cuspia blasfêmias nas pontas de cigarro, como se as fomes que os seus olhos viam pudessem ser saciadas com sonhos e ausências suas.

Escolhos
Fugindo das luzes e dos olhos, o carro corria feito criança, em busca dos ermos das praias longínquas. E de tanto buscar, vela que a doçura da fala embalava, a lua os iluminou entre o cansaço e a luta. E lhes deu paz pra guerra entre o espinho e a flor. E os derrubou no sujo gozo dos corpos nus.

Viagem
Pelos vapores do copo ido, o pálido obreiro no seu barraco aportou. A porta espancou e o choro fino da mulher ouviu. Nossa virgem sumiu pra rua ou pra lua, encantada por moço galante ou leite galático.

Ato
O velho barco na escuridão penetrava as profundezas do mar, em viagem tão de fúria que os olhos da lua se anuviavam. As águas de frias ardentes se fizeram e de vermelho se tingiram. Um grito mudo o sátiro pançudo espantou e fê-lo correr pra longe das areias.

Procuras
Nas vizinhanças e chefaturas a triste mãe e o magro pai toda a noite consumiram, perguntas fazendo e dúvidas deixando, nada encontrando parecido com uns cabelos longos, olhos castanhos, pernas bonitas, sorriso de flor e vestidinho de organdi.

Vagamundo
Girando no escuro da noite, o carro viu a cidade estertorar de cansada e rasgar os lençóis do sonho. Viu as fugas em fugas ligeiras e as estrelas mudar de cor. E disse graças a Deus quando o sol piscou o olho entre as brancuras edificadas.

Alerta
Quando os galos suburbanos cantaram, os pais da menina perdida anunciaram aos filhos dormidos que procurassem debaixo das malas a irmãzinha escondida, pois nas ruas não havia nenhuma com ela parecida.

Primeiro
Antes que o porteiro chegasse, Amo abriu as portas do escritório. O vigia experimentou uma sensação de dormência muito mais forte que a sentida no decorrer do noturno serviço. Refestelou-se o patrão no gabinete e ordenou a si mesmo que não pensasse em nada, a não ser em dinheiro.
E se viu rajá, rodeado de moedas. Coroa de rei e cara de mulher. Caras que se alongavam, rindo e chorando a um tempo, rindo do rei rajá amo de todos, chorando do estupor ante o poder daquele que as mirava com avidez.

Último
Muito tarde foi chegar o operário Valdevino, alegando estar vivendo um momento de terrível aflição, por ter sua filha sido raptada ou fugido na noitada passada. Tal desculpa não quis o gerente ouvir, dizendo simplesmente vá-se embora.

Rixa
Revoltado com o dito, Valdevino procurou o gabinete do patrão, pra contar a mesma história e dizer mal do puxa-saco. Seu Amo não aceitou a desculpa e gritou-lhe vá-se embora. Valdevino, enraivecido, levantou o punho forte e derrubou o patrão.

Prisão
Alertados pela barulheira, guarda-costas de Amo tomaram o gabinete e desancaram o malcriado. E, por ordem patronal, a polícia chegou e levou acorrentado o coitado Valdevino.

Sonho
Na cela pequena, o operário se enroscou e olhou o mais que pôde para dentro de si. E viu sua filha voltando nos braços-silvas dos anjos, pisando a cabeça grande do dragão-amo-patrão, que tombava desfalecido na cadeira confortável.

Fim
No gabinete, Amo pensou uma vez mais na menina morta e sentiu uma agonia apoderar-se de seu corpo. Agarrou-se ao espaldar da cadeira que girava, como se agarrasse a vida, que fugia, fugia.
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