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quinta-feira, 15 de dezembro de 2005

Luís Martins da Silva: a fertilidade da poesia (Nilto Maciel)


Alguém afirmou ser impossível fazer poesia em Brasília. Para outro, os poetas candangos imitam os modernistas de 1922, como se o Brasil tivesse sido criado no século XX. Luís Martins da Silva publicou quatro livros e uma latinha de poemas. Entretanto, se escapou às garras daqueles críticos, caiu nas malhas de outro: em vez de imitar o pessoal de 22, seguiu a trilha de Nicholas Behr, famoso por ter sido processado na Justiça comum, sob a acusação de editar e divulgar livretes mimeografados, considerados atentatórios à moral e aos bons costumes dos censores do pós-l964.
Luís Martins não passaria, assim, de imitador de imitador. Se, sobretudo em Brasilinhas – Poemas de Brasília, não tivesse cometido algumas brincadeiras do tipo: “Sinto-me/Quase/Só”, no poema “acróstico sentimental sul”, em cujas iniciais, SQS, superquadra sul, quer dizer da solidão do homem brasiliense.

Mesmo assim, Luís Martins não pode ser caracterizado como um escritor de passatempos, apesar de alguns rabiscos de bar, como o título “SQCimento”. Em exame mais apurado, no entanto, são outros os caminhos a serem observados na obra do poeta. Em Rua de Mim e em Comigo Foi Assim abunda o lirismo que a crueldade do tempo fez encalhar nas artérias do corpo. Rio que recebe os afluentes dos novos dias. Já em Brasilinhas e em O Assassinato das Folhas a alquimia da alma do poeta se inverte. Os temas atuais cavam a terra, irrompem como rios e apenas aqui e ali se deixam misturar às águas afluentes do passado.

O homem é o que foi, mesmo no momento da criação artística, por mais que se esforce por se fazer atual. Estará sempre às voltas com seus fantasmas do passado. Tudo, assim, gira em torno da memória, das pegadas deixadas em seu cérebro por uma entidade qualquer – um gesto, uma palavra, um pensamento, a mais tênue molécula existencial que seja. E na arte poética, então, esse axioma mais se evidencia.

A começar do título, Comigo Foi Assim serve de paradigma para a verdade do parágrafo anterior. Sobretudo nos poemas da primeira parte e da que deu nome ao volume. Os versos de “Lâmina” são até definidores dessa engrenagem na feitura do poema: “vem hoje/ e sempre mais jovem/ o passado/ efetuando passes/ misturando símbolos/ espalhando alegorias magistrais”. Como num desfile carnavalesco, o papangu, entidade a um tempo assombrosa e brincalhona, baila diante do poeta – o eterno menino – e o desperta para a recriação. Sim, porque o homem nada cria, apenas recria, como se, a cada passo que desse, imitasse seus ancestrais. Se dança, imita o animal. Se sonha, revive o gesto mais antigo do homo erectus.

Em “Obituário”, o reconhecimento de que esses fantasmas rondam o poeta, como entes invisíveis: “o passado está ali/ presente sentado/ à mesa”. O conviva de todos os dias, como a mulher ou o homem com quem se reparte o pão da manhã. Mudo, feito um pacote de conteúdo ignorado – o presente de aniversário. São tudo instantâneos gravados na retina da alma: sainhas plissadas da menina na calçada trocando segredos, a namoradinha do primeiro beijo, o filme de mocinhos, a vida muito estudantil, a vida muito passada. E o amor que se foi carregado, talvez, no bico de um passarinho.

No poema de título bitemporal, “eu era assim–fiquei assim”, o passado apresenta-se como um daguerreótipo carente de reformulação, capaz de salvar as aparências: “por favor/ artista/ quero um retrato bem falso:/ de frente/ sem traumas/ corado/ e feliz”. Nem tudo em Comigo Foi Assim é passadismo e elegia de namorado. Estão nele o mar, o índio, o milagre brasileiro, um Ceará longínquo do tempo da maria-fumaça, e também Brasília.

O compromisso do poeta com os fantasmas o faz ouvir e dizer: “deixa de ser romântico”. Fermentado por vinho de safra muito antiga, encerra o livro, interrogativo: por que bebo lembranças?/ por que me aprisiono/ no paleolítico sentimental?”. Afinal, tudo não é uma pergunta de esfinge? E o poeta não é o enigma do enigma do enigma? Nunca o édipo da própria indecifração.

Na outra corrente de águas, a dos novos tempos, mais barrenta, por isso mesmo, Luís Martins se estilhaça. Em Brasilinhas, a tentativa de poetizar a capital federal. Aqui um grito de ódio aos matadores da menina Ana Lídia, ali um soco na cara dos inimigos de Juscelino. E, quase sempre, versinhos para os candangos.

O livro-poema O Assassinato das Folhas é um verdadeiro passeio biológico pela História do “reino racional”. O título, embora também político, é, antes, o de poema ecológico. Aqui o poeta salta do coreto da praça para o cosmo e, como se seu pequeno chão de menino dos dois primeiros livros se abrisse, afunda no passado do homem e universo. Um grito cósmico contra a depredação da natureza. Apesar de falar de horror e destruição, o poema acena com um “pacto de salvação”, espécie de programa ecológico, à maneira de encíclica, única saída capaz de trazer de volta o arco da paz.

Todo o poema é calcado em pesquisas científicas, com informações variadas, chegando, às vezes, a reproduzir ipsis litteris a linguagem dos manuais. Outras vezes, porém, o senso artístico vence e o autor labora à maneira de Júlio Verne: “os cibernéticos pterodáctilos B-52”. Tudo a demonstrar que Luís Martins da Silva de bandeou para o ecologismo, sem abandonar o lirismo das primeiras caminhadas, sem deixar de dar um tratamento poético ao seu manifesto. Contudo, o mérito maior do poema está precisamente em seu significado.

Inundado, assim, de variadas águas, Luís Martins lembra as férteis e milenares terras amazônicas, embora nascido no árido Nordeste. Como poeta, aflora do mais subterrâneo de si aquele lirismo captado em Rua de Mim e em Comigo Foi Assim. E cresce e se faz rio-mar. Como jornalista cansado, navega à superfície das águas barrentas que enlodam o diário de uma sociedade espedaçada, e rabisca gritos e ais que não tomam forma de poema. E se amiúda e se faz fio d’água. Nascem Brasilinhas e O Assassinato das Folhas.
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