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sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Dez cuecas para a eternidade (Nilto Maciel)


Carlos sentou-se num banco de praça e abriu a sacola para conferir as cuecas compradas há pouco. Contou uma a uma. Ao largo, pessoas passavam apressadas. Nos demais bancos, homens sentados. Uns fumavam. Talvez filosofassem. Disseram-lhe ser o ato de fumar propício a filosofar. Não tanto os cigarros. O cachimbo se adequava mais aos filósofos. Nunca deixou de acreditar na existência de Deus e na imortalidade da alma. Crenças rasas, adquiridas ao longo da vida, desde menino, com a mãe, os padres, os professores. Casou-se na igreja com Gessilda do Espírito Santo. Nasceram-lhe três filhos. Não chegou a cursar faculdade, porém ingressou no serviço público e cedo passou a ganhar salário invejável. Adquiriu imóvel e nunca deixou de freqüentar a igreja e rezar diariamente. Sabia de cor diversas orações. Confessava-se regularmente, sempre contando ao padre os mesmos pecados: “desejei a mulher mais próxima, porém logo me arrependi; quase todas as atrizes do cinema e da televisão; pecado passageiro e idiota”.

Rapazes e meninos sujos andavam pela praça. Um deles aproximou-se de Carlos e logo se afastou. Sumiu na multidão. Carlos levantou-se do banco e se pôs a caminho do estacionamento. Numa das mãos conduzia a sacola com as cuecas. Um colega de trabalho dizia-se ateu e, vez por outra, tentava infundir-lhe suas idéias. Deus não existia. Para existir, deveria ser o único ente do Universo. Nada de homens, animais e vegetais. Porque uns devoram outros, uns necessitam de outros. Os da mesma espécie também se matam. Os homens, sobretudo. E nada, ninguém seria capaz de impor outra ordem. Se ninguém — Deus, por exemplo — pode ordenar o mundo, a vida, impedir o crime, o assassinato, a matança, então não há esse alguém.

Andando pela calçada, Carlos não percebeu a aproximação do rapaz que o havia mirado na praça. Chamava-se José, aparentava 18 anos de idade, vestia-se pobremente e vivia de pequenos roubos. Também acreditava na existência de Deus, porém quase nunca se lembrava dessa crença. Não freqüentava igreja, não sabia rezar e confessava seus pecados a Maria, sua companheira. Seria mãe em breve. Se fosse menino, o nome seria Fernando; menina, Fernanda. Nasceria negro ou negra, como os pais, porém não seria doméstica ou ladrão. Seria médica ou deputado.

Súbito, José arrancou da mão de Carlos a sacola e voltou-se, para fugir. No entanto, chocou-se com o corpanzil de outro pedestre. Desequilibrado, caiu. Assustado, Carlos quis fugir também, porém decidiu recuperar as cuecas. E pôs-se a pisotear e dar socos em José. Logo outros homens cercaram José e passaram a linchá-lo. Já havia muito sangue na calçada e José não reagia mais. Vendo isso, Carlos, de posse das cuecas e arfando feito animal caçado, retirou-se do local. Mais adiante entrou num bar e pediu água. Como demonstrasse cansaço e nervosismo, o homem do bar ofereceu-lhe cerveja. Nunca havia bebido, não fumava, não praticava qualquer vício. Achava abjetos os bêbados, suicidas os fumantes e pecadores os viciados. Gostava de futebol, torcia por grandes times, porém sem nenhum fanatismo. Votava sempre nos candidatos do centro, abominava os esquerdistas. Apesar disso, conhecia um marxista. Não um comunista, apenas o criador do cachorro Marx. Daí dizer-se marxista: amava Marx, o cão. Puro deboche.

Diante de Espírito Santo, demorou a contar o ocorrido. “Você bebeu?” Brigaram. Ele contou tudo, ou quase tudo. “O ladrão morreu?” Devia ter morrido. No dia seguinte, os jornais noticiaram o fato: José havia falecido. Seus agressores o mataram a pontapés, socos e pauladas, e depois encharcaram seu corpo de gasolina e álcool e atearam fogo. Maria virou mendiga e deu ao filho o nome de José. Teve outros filhos, porém José morreu antes de dois anos de idade. Carlos passou a beber muito. Alguns anos depois morreu de enfarte. Espírito Santo reza todo dia por sua alma, que subiu aos céus, segundo o padre, os filhos e ela mesma.

As dez cuecas — nunca usadas — também desceram à sepultura.
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Carta aberta a Gumercindo Carneiro (Aníbal Albuquerque)




Barra do Garças, 3 de dezembro de 1995

Compadre Guma

Faz tempo que não escrevo ao compadre. Quando o mês de dezembro chega e os primeiros cartões de Natal, enviados por amigos de longe, começam a lembrar antigas saudades, constatamos nosso débito em correspondência. Aproveito o domingo para ir saldando minha dívida com todos os lembrados e você é o primeiro.

Um motivo especial colocou o compadre no topo da lista. Passei a tarde de sábado lendo o livro que Nilto Maciel me enviou: Os Varões de Palma. Creio que a comadre Moema é de lá ou pelo menos os pais dela são daquela região. Da família Canindé. Pois o romance do amigo cearense, cinqüentão a partir deste ano, registra fatos daquele município, ao tempo do Intendente Felício do Rego, esposo invejado da cobiçada Perpétua.

segunda-feira, 18 de dezembro de 2006

Remição (Nilto Maciel)




“O amor e a morte trazem gozo para o espírito; também acalmam o corpo após um transe rápido e orgástico”. Manoel Lobato, O Cântico do Galo

Naquela noite Dr. Paulo tudo fez para não mais pensar em Helena. E quase nela não pensou. Como se tivesse morrido uma paciente qualquer. No entanto, não dormiu logo. Mesmo depois de tomar um comprimido de Gardenal. Talvez quisesse apagar da retina a imagem daquele corpo agora debaixo da terra. Dele e de seu fruto. Vagou pelo quintal da casa de sua infância, pela cama da mãe adotiva, pelos corredores da Santa Casa, e se acomodou no orfanato. Reviu companheiros de estripulias, ressuscitou a galinha que um dia furtou para matá-la. Por onde saía o xixi? Arrancou-lhe penas do rabo, futricou-lhe a cloaca com um dedo. Exasperada, a ave esperneava. Excitado, ele torceu-lhe o pescoço. E realizou a primeira cirurgia de sua vida. Com o canivete de ameaçar meninos zelosos e delatores cortou ao meio a galinha. Insatisfeito, examinou-lhe o intestino e o oveiro. Retirou bosta e óvulos e imaginou fogo onde pudesse assar a carne.

Os varões de Palma (Silvério da Costa)



 
Recebi do caro amigo Nilto Maciel, escritor e poeta de Brasília, o seu livro mais recente Os Varões de Palma, com o qual me deliciei! Trata-se de um romance popular com muito de universal, pois narra o mundo de Palma, uma pequena vila cuja população se perde em torno de uma égua, escolhida para satisfazer uma vingança. Sendo ela o centro das atenções, desde que aparecera, inesperadamente, junto ao cruzeiro, coube ao autor tirar proveito do episódio para envolver, do começo ao fim, o leitor. Lançando mão de uma linguagem coloquial, entre o picaresco e o poético, ele nos mostra, numa sucessão de criativos e inesperados incidentes, em que o misticismo se mistura à libertinagem, até onde vai a imaginação do homem, e do que ele é capaz.

sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Pescoço de girafa na poeira (Nilto Maciel)




Mal o dia amanheceu, Fátima arregalou os olhos, assustada. Que horas já eram? Conteve-se. Todos ainda dormiam. Até seu pai. Se pulasse da rede, despertaria a mãe, as irmãs, os irmãos. E seu plano poderia gorar. Melhor dormir mais um pouco. Afinal, talvez tenha permanecido acordada grande parte da noite. Não se lembrava de nenhum sonho. E sentia sono.

***

Conservatórias de Palma (Jaime Collier Coeli)



 
Os Varões de Palma, romance de 1.994 de Nilto Maciel, encaminha o leitor para uma questão cruel: não nos faltam instituições sólidas, mas para que servem? Da grande variedade de conservatórias, resta a dúvida, no mínimo incômoda: conservar o que e para que?

Nilto Maciel nos revela o que aparenta esconder, com muito bom humor. Ele nos escamoteia o tema do conhecimento, nos equívocos dos varões da cidade de Palma, que bem conhecem seus desejos e interesses, mas não os expressam. Inutilmente inventam interpretações, devidas à ignorância ou à hipocrisia, sem conseguir invalidar antiga constatação de Terêncio: homo sunt et nihil humani a me alienum (Sou homem e nada do que é humano me é estranho).

terça-feira, 12 de dezembro de 2006

A pálida visitante (Nilto Maciel)



Como qualquer leitor, dediquei alguns anos a ler um pouco das literaturas antigas, especialmente a grega e a latina. Conheci também parte da literatura egípcia: o Livro dos Mortos, os Contos do Harpista, as epopéias das Aventuras de Sinuhé e das Desventuras de Unamon, o conto mítico "O náufrago", e outros. Antes disso, havia lido estudos como A Literatura no Egito Antigo, de Thorbjörn Ling. E aqui se inicia minha visita ao mistério da morte de cinco homens de diferentes latitudes. Talvez por um acaso tenha lido uma página da biografia de Ling. E então minha curiosidade se voltou exclusivamente para a vida (e a morte) do linguísta sueco, me fazendo esquecer os seus estudos. Vasculhei bibliotecas imensas em busca de outras biografias dele. Interessavam-me a morte de Ling e, especialmente, a doença que o matou. Como podia um europeu ter morrido de lepra no Egito?
Thorbjörn Ling me levou a Jacob Grillparzer, autor de uma História do Egito Antigo. Em um dos capítulos mais curiosos e interessantes narra pragas de insetos ocorridas no Egito Antigo. Uma dessas pragas de gafanhotos é narrada com refinada arte e com tantos detalhes que não tive como não voltar ao Êxodo: “Estendeu, pois, Moisés a sua vara sobre a terra do Egito, e o Senhor trouxe sobre a terra um vento oriental todo aquele dia e toda aquela noite; quando amanheceu, o vento oriental tinha trazido os gafanhotos. E subiram os gafanhotos por toda a terra do Egito, e pousaram sobre todo o seu território; eram mui numerosos; antes destes nunca houve tais gafanhotos, nem depois deles virão outros assim. Porque cobriram a superfície de toda a terra, de modo que a terra se escureceu; devoraram toda a erva da terra, e todo fruto das árvores, que deixara a chuva de pedras, e não restou nada de verde nas árvores, nem na erva do campo, em toda a terra do Egito”.

sábado, 9 de dezembro de 2006

Os varões de Palma (Foed Castro Chamma)




Nilto Maciel (...) retoma o discurso de um tempo mítico que perdura na esfera da realidade e é produção do pensamento, num estágio em que se convencionou chamar de sonho a imaginação. Ali a imagem é uma metáfora que se amplia até transformar-se em mito, em realidade literária, cujo domínio pertence à linguagem enquanto duplo da linguagem hegeliana, linguagem do simbólico, da negação do real, da afirmação portanto do ser enquanto identidade e diferença. 

As ceias (Nilto Maciel)



Serviam-se, escrupulosos.

— E as crianças? — quis saber Mário, garfo à mão.

A mastigar arroz e carne, Políbio olhou para os olhos do amigo, e, a seguir, para o quadro pendurado à parede, próximo à cabeça de Mário.

Os meninos viam televisão num dos quartos. Almoçaram cedo. Viviam com fome. Comiam feito lagartas. Todos riram, menos Sônia. Exagero do marido. Os coitados nem conseguiam engordar, tanto estudavam.

terça-feira, 5 de dezembro de 2006

Um romance satírico de Nilto Maciel (Márcio Catunda)


Em seu romance Os Varões de Palma, publicado pela editora Códice em 1994, Nilto Maciel prima, como em suas demais obras de ficção, pelo estilo objetivo, alcançado graças à contenção formal, pela qual o autor demonstra pleno domínio dos métodos de articulação da trama. Obra escrita sem opacidades de expressão, mas com liberdade criativa e linguagem fluida peculiares ao discurso da ficção hodierna, Os Varões de Palma foi urdido num encadeamento lógico e cronológico que, não obstante, tem compromissos apenas parciais com a verossimilhança. A própria intenção caricatural da caracterização dos personagens já conduz a narrativa para o plano mítico.

Reportagem (Nilto Maciel)



Há três dias na cidade, quase nada fizera, a não ser alugar a casa, conversar com o fotógrafo e andar pelas ruas. Puxava conversa com um ou outro, à cata de informações. Todos lhe fugiam. Os que não podiam fugir alegavam muitos quefazeres. Procurasse pessoas menos ocupadas.

Acordou, abriu os olhos. O sol já devia clarear tudo. Pôs-se a relembrar um sonho. Levantava-se, dirigia-se ao quintal. Onde andavam o galo e as galinhas? Lavava o rosto numa pia.

domingo, 3 de dezembro de 2006

Ficção e facção no romance de Nilto Maciel (Celestino Sachet)



Ao esconder informações mais detalhadas sobre sua obra, nas rápidas biografias que acompanham cada um de seus nove livros, Nilto Maciel parece proclamar tímida desconfiança na força da literatura ficcional que vem produzindo ao longo destes anos, que plantam uma presença de alta ponta no conto e no romance contemporâneo, embora a Crítica teime em esconder-se nos brilhos do Grande Centro ou do exuberante Seminário Internacional: Itinerário, contos, 1974; As Insolentes Patas do Cão, contos, 1991; Os Guerreiros de Monte-mor, romance, 1988; Tempos de Mula Preta, contos, 1981; A Guerra da Donzela, romance, 1982; Punhalzinho Cravado de Ódio, contos, 1986; Estaca Zero, romance 1987; O Cabra que Virou Bode, romance 1991; Os Varões de Palma, romance 1993.

O lobo e o cordeiro (Nilto Maciel)




Diante da porta bateu palmas, enquanto olhava para os lados. Longe um cachorro andava ao léu, rabo a balançar. Quando o padre aparecesse pediria sua benção. Preparou-se para repetir as palmas. Um rosto de mulher apareceu entre as frinchas da porta. Queria falar com o padre. Não, o padre não podia atender ninguém. Descansava, rezava.

domingo, 26 de novembro de 2006

Os guerreiros de Monte-mor (Nelly Novaes Coelho)



 
Na mesma linha de denúncia através da farsa ou caricatura, esta novela se estrutura em torno da alienação que marca toda uma geração de índios integrados no mundo dos brancos: do visionário e tolo herói-bufão, Antônio da Silva Cardoso, ao seu bisneto, José, incluindo seu filho João e seu neto Pedro. Todos eles igualmente revoltados contra as autoridades invasoras que destruíram não só a cultura, mas também a dignidade humana dos índios. Todos eles empenhando a própria vida, um a seguir do outro, na luta falaz contra o poder que os esmagava..., mas não chegando além da loucura que determinava os seus gestos e decisões. Todos esses fazedores de guerras nunca desencadeadas!

O pio da cauã (Nilto Maciel)



Como se não sentisse o frio que lhe estremece o corpo, voltado para o Camucim distante, Taguaibunuçu solta baforadas de fumo. Olha para o fundo dos vales ainda adormecidos debaixo do lençol da noite. Mira a lua que foge triste por detrás dos montes. Pelas asas geladas do vento volta-lhe aos olhos perdidos a fumaça azulada, misturada à névoa. Acocorado, espera sozinho o regresso do Sol, imerso nas águas, tinto de sangue do mergulho prolongado. Sim, ele despertará a Ibiapaba com o lamber de sua língua ardente.

quinta-feira, 23 de novembro de 2006

Se não leu, leia... (Jorge Medauar)




Em 1977 foi publicada uma antologia do chamado "conto marginal", organizada por Glauco Mattoso e Nilto Maciel, cujo título é Queda de Braço. Ali apareciam autores, uns ainda imaturos, outros com certo pronunciamento mais literário, no sentido de melhor convívio com a difícil arte de escrever. E outros, ainda, já com embocadura de escritor. Dois deles eram exatamente os autores daquela antologia, na verdade um canteiro florindo para futuro literário. Nilto Maciel, cearense de Baturité, na ocasião com 35 anos, comparecia no volume com "As fantásticas Narrações das Meninas do São Francisco" e uma "tragédia wildeana" com o seguinte título: "Sururus no Lupanar". Esses dois trabalhos, além de seu livro de contos, já marcavam um autor realizado, ou pelo menos com embocadura para as letras. O tempo foi caminhando e Nilto Maciel também. Seu livro de contos Tempos de Mula Preta pelo menos por nós foi saudado como ótimo livro de histórias curtas, da mesma forma que A Guerra da Donzela, já reafirmado por várias edições. Depois, esses livros foram sucedidos por Punhalzinho Cravado de Ódio, também de contos.

Vem agora Nilto Maciel com o romance Estaca Zero, edição Edicon, garantindo a carreira ascensional de um trabalhador das letras, que já adquiriu pulso e sabe manobrar a peça literária, nela deixando os sinais de sua criatividade (não tivesse sido ele um publicitário, redigindo com o rigor que a profissão impõe). Infelizmente, na exiguidade de espaço aqui disponível, não se pode comentar com mais amplidão o desenvolvimento desse seu romance, que mostra, como diz a editora, "a ação jurídico-policial contra os favelados, a morte de um operário, a violência acobertada pela lei". Por essa breve indicação já é possível avaliar-se a importância e atualidade dessa história, que vem a ser um dos aspectos sociais da luta pela sobrevivência de grandes massas populacionais, injustiçadas pelos desníveis econômicos e pela incúria política e governamental. Um livro para ser meditado, diante das reflexões de seu narrador.

(Gazeta de Moema, SP, 15 a 21 de agosto de 1987)
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Um novo homem (Nilto Maciel)



No dia de seu último natalício, Erialdo se viu agraciado com um pequeno cão. O presente saiu do coração solteirão de uma colega de sala. Por que diabos fulana presenteou-lhe aquela coisa viva? Bem podia ter pensado num acessório para o carro ou numa camisa.

Com o tempo, Erialdo se afeiçoou ao animal, a quem deu o nome de Ecce Homo, em homenagem ao seu antigo professor de latim.

terça-feira, 21 de novembro de 2006

De fantasmas e de favela: relatos (Hygia Calmon Ferreira)




Numa primeira abordagem de Estaca Zero de Nilto Maciel, a articulação interna do texto coloca o leitor diante de uma relação de tensão dialética entre a voz do narrador-personagem e as demais vozes. É assim que a ideologia subjacente se revela, implícita o explicitamente, através do dúplice discurso: de um lado, a figura do algoz/opressor/manipulador – a força, a persuasão, a ordem institucionalizada, o insulto, a imposição, o "sermão” –, da qual se fazem representantes Dr. Anísio Tanlares (o juiz), Dr. José Monte (o psiquiatra), Cordeiro Matos (o major), Luiz Rolim (o construtor e proprietário do terreno), Carlos Marinho (advogado do então comprador), Vicente (o tabelião), Seu Bernardo (o falso oprimido), Esmeraldo (o corretor) e, por extensão, a mulher deste, Violeta (a alienada); de outro, a figura do réu/oprimido/manipulado – o aniquilamento, aceitação, o caos, o silêncio do "sem voz", a submissão, o discurso fragmentado e por vezes ilógico de Cesário Valverde, anterior dono da favela Estaca Zero. Josefina, a irmã, é o ser alheio que se manifesta parcamente através de rezas, resmungos e cochichos.

O verdadeiro Mangarobeira (Nilto Maciel)



Dando prosseguimento ao nosso estudo sobre os heróis nacionais, dedicaremos a aula de hoje à figura do Marechal Mangarobeira.

Segundo os historiadores, sobretudo Francisco Rodolfo de Varrasco e João Capitolino de Trigona, homens criativos por excelência, mormente no apelidar personagens históricas, o Marechal Mangarobeira recebeu em vida alguns cognomes, entre eles o de Marechal de Pau.

Voltando às alcunhas, quero relembrar uns nomes famosos e seus respectivos apelidos. Direi os primeiros e vocês completarão. Vamos lá. Pepino. O Breve. Muito bem. Ivã. O Terrível. Ótimo. Guilherme. O Conquistador. Basta.

sábado, 18 de novembro de 2006

Estaca zero (José Alcides Pinto)


"Após as palmas e os chamados, Esmeraldo encostou à cara na tábua da porta e fechou um olho. No piso de madeira uma barata passeava, volumosa, tranqüila. Na parede a barba imperial do meu avô olhava para o lado da rua, cheia de rugas, solene. Mais ao lado, um Deus soprava nuvens e fúrias, ancião poderoso e terrível."

Um Canto, um Auto, um Grito Social, pode ser tudo isso Estaca Zero, o pequeno, mas significativo romance de Nilto Maciel, lançado pela Edicon, São Paulo.

A vida eterna de Luís Lamento (Nilto Maciel)



A notícia da morte de Luís Lamento arrastou para as ruas milhares de pessoas. O choro coletivo inundou as cidades num abrir e fechar de olhos, feito rios transbordantes. Alguns grupos iniciaram saques e depredações. Porta-vozes do governo trataram de desmentir a tragédia, antes que os pequenos tumultos se transformassem em grandes distúrbios. Apesar disso, os mais radicais não desistiram de quebrar vidraças, incendiar carros e praticar toda a sorte de vandalismos. A maioria, porém, conteve as lágrimas e voltou para casa. E a polícia baixou o pau em cima dos descrentes. Presos alguns, feridos outros, no início da noite acabaram-se as escaramuças.

quarta-feira, 15 de novembro de 2006

Estaca zero (Dimas Macedo)


Num dos trechos da novela A Guerra da Donzela, do escritor cearense Nilto Maciel, pode ser lida esta assustadora interrogação: quem, todavia, poderá conter as palavras?”. Conhecendo, como conheço, as possibilidades da escritura de Nilto Maciel, responderia que certamente não seria Cesário Valverde, o torturado e inquieto narrador do seu último romance, um personagem com certeza colocado à margem do próprio discurso que deliberadamente busca resenhar.

Masmorrer (Nilto Maciel)


O GRANDALHÃO
percebeu o Rapazinho a olhar para suas pernonas cabeludas e virou a cabeça, afobado, para o outro lado. Certamente pensa no mundo lá fora, na longa viagem ou em qualquer acontecimento de seu passado. Ou pensava. Abaixou a cabeça, coçou as suíças esquerdas, rum rum rum. O Ruivo ergueu as sobrancelhas a se apagarem ao sol e passeou os olhos esbugalhados pelas faces dos companheiros de pernas estiradas ao logo do chão. E fixou-os, assustados, no negro dos olhos do Baixote sentado ao ângulo oposto ao seu. O Baixote abriu um sorriso preguiçoso nos cantos da boca, que murchou abrupto num olhar para o céu. Nuns olhares para os céus. Nada de especial lá em cima: só o sol a pino e brancas nuvens a deslizarem, desgovernadas, feito barcos sem remo. Aproveitou-se da distração geral para sacudir a dormência das pernas e fazer um careta assombrosa. Mexeram-se odiosos os lábios grossos e o queixo barbudo do Grandão e os quatro muros de pedra entoaram um grito de guerra: vamos ficar aqui parados esperando pela morte? O Rapazinho levou a mão da testa ao queixo e deixou-a por mais segundos no nariz. O Cabeça Chata tremelicou de assombro.

ESMURRARAM OS MUROS
como se um deus medonho os impelisse a rir com o rigor dos furiosos, aviando as raivas grudadas nas profundas de seus desejos sufocados. Fizeram-se bumbuns estrondeantes. Qual das quatro paredes seria a mais frágil, a mais demolível, a mais rachável ao som daquele bater insistente? Pedras! Partiram da coragem recém-parida a decisão de agir do Ruivo, que girou sobre os pés, dançarino saltitante. Mas nada de pedras havia, nada que pudesse de picareta demolidora servir, nada além de mãos, corpos exauridos de esforços e fadiga.

ESCAVACARAM AS RÍGIDAS E PÉTREAS PAREDES ESCURAS
com as mãos cansadas, embora calosas, másculas, musculosas, insetos sem eira nem beira nem ramo de figueira, naquele mundão de pedra, ferro e concreto, grandes insetos amordaçados pela prisão e pela morte no oco do mundo. E feriram-se as pontas dos dedos, caídas as unhas de tanta labuta, rac rac rac, e encheu-se o pátio de imprecações desesperadoras: Que crueldade! E os muros insensíveis se lambuzaram de crueldades sangrentas.

NAQUELE ABANDONO
mais intolerável que as barbáries dantanho, naquela imensa solidão, naquele estar livre de donos ou chefes, o continuar a ser seria uma quimera inalcançável, cansável. E famintos da fome fugida dos vales de lágrimas, governados, reinados, imperados, e asilada naquele minúsculo campo de morte, entoaram gritos, gemidos roucos e loucos e mirraram os mirtos, as murtas semimortas que não mais puderam escavacar, cavacar as rijas paredes pétreas, concretas erectas e caíram, desfalecidos, sangrados, as mãos calosas, embora rubras tinturas tingidas e os muros tão duros de misteriosas imprecações de crueldades pintados, tão iníquas e ferozes para humanos corpos mui frágeis diante de quão estúpidos e cúpidos minerais. A inércia do cansaço e da fome e do desespero nascida e da inépcia humana diante das pedras inúteis, vorazes, ferozes.

O EXCITADO RAPAZINHO
viu estrelas no céu e um sol que se apagou, ai, e cambaleou como se o peso do globo sobre seu corpo rolasse e lento caiu. Os olhares capiongos, molengas, capengas, famintos de seus ex-companheiros se foram encontrando na altura distante de seu corpo inerte. E olharam tão longos com seus olhos tão grandes e suas vistas tão miúdas o corpo mais magro alvacento de fome caído, molambo quem sabe já findo. Se sentiram penas da leveza do corpo franzino, o sentir não disseram.

O muro... o muro furar já não pode, espirrou vagarosa de dentro do Gigante uma voz de quem perde inseparável amigo do peito.

O Ruivo, a lembrar a negrura dos olhos do caçula então estirado qual lençol mal lavado, piscou: vai morrer, se não já morreu.

ENTREOLHARAM-SE FEITO URUBUS SONOLENTOS
capengaram ao redor do magrorrível cadáver. Seus olhos brilharam, luzes de azeite, e num leve roçar dos ventos da tarde balançaram pendentes, feito chamas na noite.

Estamos com fome, fome demais, curvou-se o costado já menos largo do antigo Sansão.

Um minuto dançou no espaço por entre a estática dos três masmorrentos que lentos se acocoravam num rito profano, círculo macabro ao redor do caído.

Mexeu-se o Ruivo pralápracá, lenguelengue, e de todo este esforço brotou mansa mensagem de vida longuinha: a carne dele... e um suspiro tremeu em seu todo até derramar suores da face incolor no chão ressequido ou nas pontas inchadas dos pés alargados. Pulo ágil qual fera faminta: então vamos, vamos logo! O novo Grandão sobre a massa deitada que pareceu (ou fantasma, meu deus?) defender-se do assalto do alto repentinamente inesperado e por fim mais dois se fizeram, embora mais lentos ou tardos, rasgando-lhe as carnes já mansas, cordeiros de deus, à custa de mordidelas sangrentas com suas sujas e horríveis bocarras, sarracob sarracob.

UM MONTINHO DE OSSOS BRANQUÍSSIMOS
ao pé do muro jazia de jazigos esquecido. E distantes solitários em si dormiam nojentos chacais, bestas suspirantes, porcos roncadores, demônios em sonhos. E de suas crateras imundas esgotos vermelhos evolava um odor de monturo e carniças, tingindo o ar dum cinza opaco nevoento, prenúncio de grandes tempestades, abismos insondáveis, noites trevosas.

MEIA-NOITE O DIA ABORTOU
nos olhas medonhos medolhos do Grandão que acordou assustado, suado, sujado e debateu-se no chão qual pássaro de asas quebradas, olhou pra noite grandona de seu espelho partido e escancarou a bocarra nauseabunda. Dobrou meio corpo alquebrado, sacolejou os ombros cansados e fez-se ereto, feito macaco primevo. Através da luz dos céus tão distantes descobriu as figuras adormecidas de seus comparsas, cismou, tremeu, recordou o recente passado, os ossos como a se triturarem nos cantos do muro, como se deles se alevantassem almas penadas e abraçá-lo viessem quais brancas jibóias. Gritou, esmurrou a parede, chutou o montículo de ossos que saltaram pelos quatro cantos daquele estreitíssimo mundo de mortos, acordando os dormidos de contentamento do banquete de ontem: malditos! Nas trevas o esbravejo destruía os sonhos.

MONÓTONO BATICUM
pumpumpum se paria do encontro daquelas sofridas, sangradas, disformes, calosas, pétreas, férreas mãos com os muros odiados, horizontes de pedra. E no doudo bater as mãos mã mã mãs sam sã sãs soam so-ã ãã ai aiai ais gemiam.

Durante horas e horas batucaram possessos nos juros-feitiço num ritmo desvairado de ritos desesperados, em suores e ódios, escavadores de minas profundas em busca de riquezas brilhosas, ávidos, imávidos, cansados, cambaleantes, sambaleantes de fome e dor.

UM PÁSSARO VOAVA NO CÉU
e se aproximava feito nuvem grávida. Sim, o grande pássaro ancestral piava nas entranhas agouros de desesperos e medo da morte e nos cérebros entorpecidos desejos indomáveis. E se retorciam, mágicos obscenos, crispavam as mãos desfeitas em cores e líqüidos indefiníveis em movimentos ritmados, como querendo saltar sobre as garupas mais próximas. E esmurravam odientos e horríveis as rochas firmes e impenetráveis, inconscientes da mentira de todas as sabedorias: as pedras duras não se abalavam sequer ao bater das águas moles.

O RUIVO TREMEU E CHOROU
e de seus antigos lábios escapuliu a anunciação temível: ela voltou. Logo, muito logo, um quem cretino se evaporou das restantes bocas, a ensurdecer o muro e escancarar os olhos e encher o poço de espantos medrosos.

Acocoraram-se lentos e abraçaram-se febris. O Ruivo principiou a nomeação da teimosa assassina: fo...

O GRANDALHÃO OS DENTES RANGEU
e babou e a pesada ainda mão direita desviou da inquebrantável parede para a nuca suada do Cabeça Chata ao seu lado. Como um boneco de palha, o raquítico espantalho abraçou-se ao muro e lenta, lenta men te es cor re gou pro chão num gemido plangente.

O Baixote afastou-se num passo em falso, fugindo à fúria, e benzeu-se medroso e heróico:

Que foi?

Os dois companheiros dobraram os joelhos fervorosos sobre o coitado caído e rezaram-lhe as carnes, repletos de esperança.

AGIGANTOU-SE A BRANCURA
num dos cantos do muro. Nos demais os faustosos gargântuas cochilam, acordam, gemem e se assustam e se olham e descobrem fantasmas por todos os lados. E se grudam às paredes perdidos no fundo do poço com medo dos olhos, dos ossos, dos pés que caminham, das mãos que agarram, das mentes que pensam. E se abraçam ao silêncio e recordam os bumbuns e não podem jamais esmurrar as paredes, de costas para elas. E a luz não veio e a treva se fez. E a morte era louca a voar e gritar debaixo das terras, detrás das paredes, nos ares distantes.

IMENSO TOURO MANSO
ergueu-se e vislumbrou num canto o Sarará que esticou as pernas mole, olhos fixos na frente e noutro o Baixote que chutou o cochilo com violência antes de Golias o engolir.

Do fundo do poço almas penadas lembraram os ossos insepultos, antes repasto que imagem. E o convite “vamos” veio a seguir da alva podridão do Gigante. As outras bocas ressequidas se abriram numa reprise estropiada. Imóveis, apenas piscaram os olhos semicerrados na direção dos restos acumulados.

A temeridade do hércules-quasímodo comandou a investida do minúsculo batalhão: Vamos! E caminhou passos trôpegos de brucutu rumo ao alvo cúmulo de ossos reluzentes das luzes dos corpos celestes distantes. Dobrado qual fiel, o Ruivo implorou: Jogue um, em incrível semientrega do ângulo frígido às suas costas, enquanto noutro extremo o Baixo ar ar arfava e migalhava um naco naquinho de tíbia ou costela.

O Grandalhão já mordia, lambia, chupava os ossos ressequidos mas orvalhados pela frieza da noite que descambava pé ante pé pros abismos da infinita nostalgia. E, no meio de toda esta negrura espantosa, brancura dos ossos e dentes do guloso nocauteador engelharam as faces, suores correram e rangeres rasgaram os tímpanos sujos dos dois: Palermões! E, em gozo ou gemido, o fantástico comilão imaginou gordurosas e tenras coxonas de porco como não conhecera jamais. Assuntou e assustou-se com os próprios ruídos que faziam seus dentes na dureza dos ossos e num choque imprevisto arremessou os dois fêmures contra os sonolentos espiadores. Que se defenderam e agradeceram a dádiva voante qual pássaro crescente em alvura e rapidez. E partiram o crânio rolante, bola de neve a agigantar-se, e raquíticas costelas pra saciedade das fomes enormes dos jecatatus acocorados. E a madrugada escorregou pelos muros feito gatunos fantasiados de amarelo clarinho.

GIGANTESCA ESTRELA
acordou o delírio nos três mosqueados que espiavam os suores e esgares espraiados por toda a extensão de suas pálidas máscaras.
O derrotado hércules sussurrou um grito no vastíssimo cubículo, ei solidário que aos outros um susto medonho causou e se verbalizou num huumm bivocal qual trovão. E uma tempestade de babas e fantásticos motores voou sobre as pistas de pouso molhadas: cuidado, pilotos, voar é preciso, buscar as alturas. E as mãos se estraçalharam de encontro às testas frias, suadas. Desastre!

MEUS DESGRAÇADOS IRMÃOS
bradou maquiavélico o líder por obra e força: é preciso a morte de mais um pra saciar nossa fome demais. Quem quer a mim se aliar pra se empanturrar de couros e ossos?
Como trôpegos insetos em busca do abrigo do abraço definitivo, a vomitar eus que se misturaram e rangeram por pouquíssimos segundos, os dois inimigos correram malditos em busca dos braços mordaços do valente chefão. O Baixote se esfregou nos metros de muro e desequilibrado esparramou-se aos pés mui crescidos do provocador. Ligeiro, o Ruivo frenou a um passo do corpo recém-derramado.

ABRAÇADOS FEITO FERAS
pareciam um só disforme corpo a contorcer-se em agonia dolorosa e entrelaçados como titãs apaixonados, fungavam, mordiam, urravam, choravam, morriam pela vitória sem sentido. Súbito estupenda marrretada prostrou-os para a carnificina final.

TODA A CARA FEROZ DO TITÃ
penetrou crac no pescoço quebrado do Ruivo que emitiu um ai doloroso e profundo. Jorrou por toda a redondeza um líqüido quase vermelho annnn e o espanto do rosto místico do incrível vampiro cresceu. Outro crac noutro pescoço, outro ai pungentíssimo e a mesma danação de tinta rubra salpicou e cegou o monstro que alevantou a cabeçorra lambuzada pra sorvê-la como a límpida água da fonte da vida que bom, qui bum quibum, chuuuu, lept lept, não mais ais, só lepts-chus-cracs, violentas mordidelas, vampirescas, medonhas, vorazes, ferozes, vermelhos olhos enterrados nas carnes ossudas: olhos, nariz, boca, a cara toda enfiada nas magrezas, a roer já rija ossatura aiaiai.

TANTA FOI A FARTANÇA
e quanta a festança que o solitário golias, já divinizado, gemeu e gemeu por dias e dias, gritos de dores, contorções de berros, enormes diarréias derramadas, sujeiras demais recriadas, envolto em sonhos pesadelos à beira da morte e da loucura, ai que desta vez eu morro sozinho no meio do horror, entre quatro paredes perdido num mundo de podridões e ossadas.

BATALHAS? QUE BATALHAS?
Rapinas aqui não houve jamais, este mundo sempre foi pequeno assim, cercado por quatro muralhas de bronze e minhas asas eu as quebrei em luta titânica contra pássaros de fogo, porque se asas ainda tivesse, juro: voaria para a estrela menor deste céu e estes muros, estes estreitos e baixos murinhos deixaria pra trás, para sempre fugiria pumpumpum, e os ecos tão frágeis dos bumbuns quase mudos soavam nos muros pumpumpum. Bateu e bateu té as mãos se racharem e os dedos doerem até perto dos ombros mui largos, das costas e dos pés inchados e grandes. E pontapés desferiu a torto e a direito, insultos bradou à secular muralha de pedra erguida gigante qual forte antigo, para cair em sangues, como se chibata de ferro açoitasse constante, e dormir de sofrer de viver entre quatro paredes de ferro, de pedra, de bronze, de diabo, satanás, maldição.

A FOME ACORDOU-O FERIDO
vermelho, distante da podridão das carnes não devoradas, dos restos dos outros derretidos no chão calcinado de sóis amarelos tão próximos e gastos de tanto arder na fogueira dos tempos incontados, perdidos entre espaços no espaço tão curto de quatro paredes, muralhas de ferro, de bronze, de pedra. Ergueu-se bambo molambo e tombou e dançou de sono ou fraqueza, a vomitar arco-íris, sangues e fezes. Prostrou-se por sobre as recordações dos montes de ossos: franzino rapaz fugiste primeiro, cabeça chata que apenas gemeu ao murro feroz e dois imbecis a brigar por mim neste chão asqueroso de pedras e horrores, que coisa, meu deus, livrai-me da fome, da dor, da prisão, desta vida maldita, levai-me, meu deus, devorai-me, matai-me, senhor.

O SOL VERMELHO-AMARELO
dançava entre cordeiros brancos no palco azul e lindo lindo. No horizonte a guilhotina se espremia feito caixa mágica e estranhas figuras de lobos se contorciam no poço e penetravam em sua boca e se metiam em seus olhos lúgubres, cisternas onde boiavam gêneses e apocalipses e passeavam pelos labirintos de seus ouvidos e faziam bacanais nas profundezas de seu cérebro com as formigas-mastodontes que corriam nos prados e se atolavam nos pântanos e se revolviam em convulsões e se expeliam em cachoeiras de detritos que queimavam a terra revolta, abalada, sofrida.

O LOBO DECRÉPITO
correu, saltitou, farejou, lambeu-se, sonhou, saltou os baixos muros do forte e caiu de bruços, de costas, estatelado, a beber sol, lua, estrelas, nuvens fugitivas no alto ou no baixo do terror instalado no universo em gritos, loas satânicas para expulsar os animais descomunais passantes preguiçosos dos labirintos das montanhas amarelas.

SILENCIOSO CRAC
ouviu-se, quando bruto safanão fez sangrar até às raízes a árvore murcha entre as duas colunas. Depois abocanhou guloso, como se mastigasse os frutos primitivos da árvore da vida, a morder voraz o cacho que balouçava ao sopro do vento. E, neste ritmo, correu atlético, fauno castrado, a esmurrar a parede, maldita bastilha, sou bravo, sou forte, sou filho das selvas, meu canto de morte, guerreiros, ouvi.

HORRÍVEL FIGURA
que espelho não via, sorria contente de ter esmurrado a pedra erguida dez metros de altura e chorou a seguir de mais fome sentida e sentado lambeu e mordeu e comeu os dedos inchados dos pés muito gordos de tanto correr. E comeu satisfeito e bebeu o licor que dos troncos corria.

NO SONHO CORRIA
e cantava estranhas canções de guerra e de paz, de amor e de ódio. E com Jesus conversava, com o Ruivo, com todos os fantasmas que dormiam nos vermes e contentes da vida e da morte passeavam no pátio. E jantou dedo mindinho, seu vizinho, maior de todos, fura-bolos, cata piolhos, chupeta na boca, a cantar cantiga de ninar, dorme menino, eu tenho o que fazer.

AS AGUDAS LÂMINAS DO FRIO
picotaram seu corpo e um pássaro agourento piou lá nas alturas e bateu as asas com estardalhaço. Assustado, correu e pulou para ver nas dobras das asas do pássaro gigante uma negra aranha grudada. A bandeira hasteada tremia, mostrava e escondia a cruz gamada da imensa masmorra.
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segunda-feira, 13 de novembro de 2006

A estética de um ritual (Batista de Lima)


Estaca Zero, de Nilto Maciel, é um ritual. Só isso. Nada mais seria necessário dizer, após a leitura das 66 páginas desse romance. Ou como ele próprio diz, pela boca do personagem Cesário Valverde: "um bom esboço de romance" (pág. 65), onde "tudo é obra de fantasmas" (idem), e também onde "se resiste à custa de palavras" (66).

Por falar em personagem, não se sabe em torno de quem gravita a narrativa. De Cesário, que encabeça os principais aconteceres em primeira pessoa e discurso indireto? Da favela "Estaca Zero”, que é a síntese dos problemas sociais e periféricos de qualquer metrópole brasileira? Ou do próprio fazer do romance, da metodologia do narrar? Tem-se, pois, três opções a seguir, como três saídas labirínticas que partem de um eixo central que é o enredo engendrado pelo autor.

O suplício de Geruza (Nilto Maciel)

(Toulouse Lautrec)


Cautelosamente mostramos os dentes emprestados para os sorrisos programados, enquanto caminhávamos em perfeita ordem, sob o olhar do público. Cabeças erguidas e olhos enxutos, deveríamos guardar todas as emoções para o final.
Por um instante vi Emanuela nervosa e pálida na platéia. Talvez chorasse ou risse. Não sei se acenava ou dizia adeus. Nosso amor já fazia parte do passado, nossos dias, nossas noites. Desviei os olhos dela e olhei para a água. De que me servia sentir saudades, rememorar nossa vidinha cheia de mistérios e segredos, se com toda a certeza eu não voltaria vivo daquele salto? As águas seriam minhas novas companheiras dali até a morte. Eu terminaria inchado como uma fruta podre lançada ao poço, esquecido tão logo se consumasse meu fim e tão apavorada como nos meus mil sonhos intermináveis.

sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Estaca zero: A literatura renova pergunta (Eduardo Luz)




Através do registro simbólico, o romance de 30 colocou a grave pergunta sobre a teimosa permanência da miséria nordestina. Os dramas regionais então representados pela Literatura lograram receber uma resposta a partir da utopia configurada pelo "nacional desenvolvimentismo" dos anos 50 e 60. Estaca Zero1, de Nilto Maciel, irá renovar a pergunta formulada por aqueles romancistas sociais, conectando Literatura e História por meio de uma intertextualidade deliberada, sardônica e emocional, capaz de sustentar o painel alegórico do cruel processo de nossa formação social.

Rotação (Nilto Maciel)



Eles liam pausadamente, compassadamente, demoradamente. Liam em voz alta, para que todos ouvissem suas palavras. Às vezes cantochão, deslizar suave de água mansa. Alguns chegavam a cochilar. Adiante, a voz se fazia áspera, gritante. Arregalavam os olhos, empertigavam-se. Nenhuma atenção fugia do leitor. Todos encantados. Para mim, no entanto, o salão se enchia de palavras ininteligíveis. Ou então nunca mais voltei a ouvi-las, apesar de ter sempre os ouvidos atentos. Eu todo me voltava, em todos os sentidos, para o que diziam e faziam. Os livros passavam de mão a mão, assim como meu corpo infante, num ritual monótono. As mãos, aquelas mãos tão diferentes entre si, às vezes brutais, voltadas unicamente para os livros e as palavras. Aquelas mãos que de mim faziam mero objeto, obrigado a estar e ouvir. E a girar.

quarta-feira, 8 de novembro de 2006

A guerra da donzela (Silvério da Costa)



Li-o na praia, durante as férias, e me encantei! Nilto, que é um contista nato, dos melhores que este país tem, provou, com este livro, que também domina a novelística de forma irretocável. Embora publicado em 1982, ele foi, para mim, um excelente presente de fim de ano, pela forma como a leitura mexeu comigo.

A obra relata a história do suposto seqüestro de uma donzela, que ninguém sabe quem é. Tudo se desenrola a partir de uma falsa notícia que se espalha e transforma, rapidamente, num alvoroço generalizado, com a adesão, incontrolável, dos perseguidores do raptor. O grupo agiganta-se, assustadoramente, perseguindo pessoas, invadindo casas e acabando no mato, à entrada de uma gruta, onde, supostamente, estaria escondido o raptor. Só que a gruta era habitada por monstros que só existem, é claro, no inconsciente coletivo daquela comunidade e cuja origem está ligada a determinados valores, como a moral e a ética.

A guerra que se trava, portanto, é basicamente cultural e comportamental, deixando ao léu cenas e atitudes tão patéticas que beiram as fronteiras do ridículo e da paranóia.

Claro que outras leituras podem e devem ser inferidas, não fora tão rico e abundante o poder imaginativo de Nilto Maciel, que se valeu da linguagem poética, em grande parte da obra, para emocionar ainda mais a ação.

(Diário do Iguaçu, Chapecó, SC, 24/3/1999)
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O julgamento (Nilto Maciel)




A desgraça, descarga megatômica, se abateu sobre nós, de forma impiedosa. Deus nos castiga com seu chicote de ferro, como se tivéssemos cometido infinitamente os pecados das Tábuas da Lei. E eu, que fiz eu, que não me lembro? Terá sido pecado tão terrível todo o sofrimento que sempre tive? Esta série incontável de malogros que não consigo esquecer? Ou, meu Deus, a rebelião que arquitetei e cometi contra o poder de meu pai? Mas nunca o ofendi publicamente, nunca o esbordoei, nunca sonhei a sua morte. Se o ofendi, o fiz em silêncio, nas longas noites de insônia, em sonhos e pesadelos, histórias horrorosas que jamais inventei, e apenas fluíam como águas da terra, incontrolavelmente. Ou terá sido aquela mancebia tão conscientemente esquecida, eu tão jovem e necessitado de amor, de três anos apenas, com a pobre Raquel, coitada, onde estará? Ou a prodigalidade vivida por tanto tempo, a esbanjar como não devia, a deixar de dar a eles, meus pais e irmãos, o tanto precisado? Ou esse casamento malfadado, com essa menina tornada adulta tão de repente? Ou essa fuga precipitada e alucinante, como um bandido caçado insistentemente, para este fim de mundo? Ou o abandono a que lancei meu querido Aécio, para morrer só como um leproso? Não sei, não sei. Ou terá sido tudo isso, todo esse rosário de erros? Estou desgraçado pelo resto da vida. Vou penar ainda mais como um vil pecador. Morrer e parar nas profundezas do Inferno. Não, vou cair eternamente nas labaredas infinitas, inteiro e consciente de minha perdição. Mas, meu Deus, tenha piedade de mim, ajude-me, socorra-me, livre-me dessa dor, desse tormento, desse momento e das dores maiores que me esperam. Dê-me um fim sem dor, perdoe-me todos os pecados e leve-me para sua morada. Seja piedoso! Sou um pobre ser humano ignorante do que faz e fez. Se errei, não foi por querer, mas por não saber. Eu queria ser bom, eu sempre quis ser bom. Eu juro, era assim.

segunda-feira, 6 de novembro de 2006

A guerra da donzela (Nelly Novaes Coelho)


Girando em torno de um pretenso rapto de moça, feito na calada da noite, a efabulação vai revelando (através do alvoroço e medo que sacodem uma pacata cidade no interior cearense, palco do acontecimento) os costumes e preconceitos que fundamentam a estrutura e profundidade em que atua o grande tabu da civilização cristã: o da violenta repressão ao sexo.
A propósito desse rapto, o narrador vai registrando, em flashs, as cômicas reações dos habitantes da cidade, desnorteados e apavorados com o gesto de liberdade que afrontava a solidez de seus costumes. Nunca se soube quem eram a “donzela raptada” e seu “raptor”. Bastou o boato para que, num crescendo cômico-trágico, se criasse uma situação de guerra, com a formação de um batalhão de voluntários, comandados pelo alucinado Francisco Sombra. É extraordinária a arte com que o narrador trabalha sobre o nada (em matéria de fatos reais), consegue criar situações que se sucedem, cada qual mais absurda ou inverossímil do que a outra, mas aceita por todos como verdadeiras, devido ao clima de alucinação em que todos mergulharam. Inclusive com o aparecimento de seres monstruosos e ameaçadores: o gigante Gorjala, o porcão preto, o ovão do tamanho de uma jaca, o cururuzão e outros monstros que, gerados no nível profundo do inconsciente coletivo, correspondem à grande ameaça representada pelo tabu do sexo que fora violado. Violação que a todos causa repulsa e medo, porque ao nível do inconsciente é o que todos ansiavam por cometer. É essa, sem dúvida, uma das mais contundentes denúncias, feitas pela literatura contemporânea brasileira, acerca da violência contra o ser humano que, há séculos, vem sendo cometida pela repressão sexual, que está na base da sociedade tradicional.

(Dicionário Crítico da Literatura Infantil e Juvenil Brasileira, p. 873, 4.ª edição, EDUSP, Editora da Universidade de São Paulo, 1995)
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A perseguição (Nilto Maciel)



Após perambular por ruas escuras e desertas, eu só queria dormir ou descobrir um modo de afugentar os urubus que me bicavam a solidão. Devia ser mais de meia-noite. Não se via uma só pessoa na rua e eu caminhava sem pressa. De repente pressenti que alguém me seguia. Ouvi-lhe a zoada das pisadas. Tranquilizei-me: certamente outro solitário vagabundo com quem poderia conversar por alguns minutos de caminhada. Pouco me importava fosse uma puta desleixada e doente, um bêbado sem rumo e delirante, um mendigo à cata de pouso e mudo. Olhei de esguelha e achei tratar-se de homem de passo firme e boa aparência. Andava na mesma vagareza com que eu passava pelas casas dormidas. Estranhei não se aproximasse um metro sequer de mim E se se tratasse de um assaltante? Deveria enfrentá-lo ou correr? Meti as mãos nos bolsos. Nada me faltava ainda: chaves, cigarros, lenço, documentos, dinheiro. Apressei o passo, por cautela. Logo, porém, mudei de idéia. Seria mesmo um mendigo e não me custava nada dar-lhe uma esmola e um boa-noite. Também logo desisti da piedade. Devia ser um estrangulador, um maníaco qualquer.

sábado, 4 de novembro de 2006

A guerra da donzela (Valdivino Braz)




Nos "Primórdios" da narrativa um fato já desponta de modo a fixar-se na mente do leitor e aí permanecer sedimentado durante toda a trama engendrada pelo escritor (ou, por outro lado, pela personagem Thaumaturgo), vindo à tona sempre e à medida que o nome de Antônio Jucá vai surgindo em meio à trama. Um fato comum, o querer o filho vingar a mãe com a morte do pai, mas tratado com técnica e arte, de modo a descortinar um outro painel, paralelo e rico de conteúdo. O desfecho do romance, quando tudo culmina como um clarão, ligando a parte final aos primórdios, constitui uma prova disso. Uma trama bem urdida, capaz de prender o leitor e conduzi-lo até o fim. Ao final, tem-se todo um quadro de situações para se refletir e dele depreender realidades, posto que armado a partir do verossímil.

Jingle bells (Nilto Maciel)



Doca engoliu a cachaça, sem uma careta sequer, repôs o copo sobre o balcão e afastou-se, a cambalear.

– Morre, desgraçado – brincou Hélvio.

Os fregueses riram e se puseram a tagarelar. Aquilo só podia ser doença.

– Doença que nada. Isso é vício mesmo.

– Ou então vontade de morrer.

quinta-feira, 2 de novembro de 2006

A guerra de Palma (Batista de Lima)



 
Palma é uma cidadezinha cearense, fictícia, encravada nas dobras da Serra do Baturité. Cenário criado por Nilto Maciel para livre trânsito de seus personagens. Esse lugarejo é o protótipo da maioria das cidades que salpicam nossos sertões. Com seus problemas, seu folclore, seus esquemas de dominação e principalmente com seu poder arregimentador brotado do senso de cooperação existente no inconsciente coletivo. Neste clima, Nilto Maciel apresenta o pretenso rapto de uma donzela. A partir desse momento começam a acontecer episódios que vão do real ao fantástico.

A noite das garrafadas (Nilto Maciel)



A hora talvez fosse tarde. A janta, nem lembrávamos mais dela. Baião-de-dois, ovos, com tempero de coentro e cebola. Ou cuscuz com leite. Depois rezamos o terço, ave-maria cheia de graça, padre-nosso que estais nos céus, kyrie, eleison, atos de fé, esperança, caridade e contrição. Ajoelhados, cansados, eu pensei o tempo todo nas meninas da nossa rua. Só queríamos que aquilo terminasse logo e pudéssemos jogar damas, dominó, baralho.

quarta-feira, 1 de novembro de 2006

A caça dos monstros pelos monstros (Salomão Sousa)



 
De início, tem-se a impressão de os burros irem dar n’água, de tratar-se de mais um caso de desonra, de defloramento. O leitor mais desavisado, em erro, será tentado a desistir da leitura.

Quando se defronta com um caso destes, pergunta-se porque o autor não começou a obra com outro motivo: a morte de um cachorro, a derrubada de uma casa? O papel do ficcionista é ficcionar, não ficar preso a fórmulas prontas. 

A brincadeira (Nilto Maciel)




A última brincadeira de Alberto terminou mal. Funeral nem houve. Os parentes mais próximos choraram, mas sequer viram seu cadáver. Como estaria? Mutilado, disforme, horrível?

Alberto, um meninão. Ninguém o levava a sério. Para quê, se ele brincava até de chorar e rir?
O mundo é uma peteca, dizia. E largava a palma da mão no tempo.

terça-feira, 31 de outubro de 2006

Uma novela de Nilto Maciel (Dimas Macedo)



Ao terminar a leitura do primeiro capítulo de A Guerra da Donzela, de Nilto Maciel, confesso que não resisti à tentação de voltar às páginas de Crônica de Uma Morte Anunciada, de Gabriel Garcia Márquez. É que a semelhança dos relatos ficcionais desses dois escritores em torno da apreensão da gente de uma pequena cidade nos parecia tão propositalmente tecida, que em determinado momento da leitura nos assaltou a sensação de que em verdade estávamos diante de uma narrativa do grande romancista colombiano, Nobel de Literatura de 1982.

Avisserger megatnoc (Nilto Maciel)



9 - Fantasia

Colocou na face no rosto na cara mesmo a máscara para iludir a vida e fantasiar a noite. Escondeu como era possível esconder os traços de frente e de perfil. De todos os ângulos cabíveis. Não a boca tão necessária ao despejo uísque-uísque e enfio ou meto hiltons charutos os mais grossos e mais nauseantes. Não as narinas as ventas as crateras subterrâneas para farejar perfumes e suores. Não os olhos brilhosos ? opacos ? tristes ? alegres ? para ver olhar enxergar e espiar colombinas meninas tão lindas. Depois se vestiu do blusão multicolorido the falcon e da calçona listrada e calçou agachado as sapatilhas olympikus. Saltou diante do espelho nítido horrível palhaço ou feitiço danado que o fez recuar dançar saltitar passos atônitos e dizer de si para si ou para paredes estufados móveis coloniais que o baile seria inesquecível mas talvez o último o baile de máscaras a noite dos foliões a grande alegria que a vida merece ser vivida pulada fantasiada mascarada bebida fumada comida deitada caída saída vamos já vamos logo josé.

domingo, 29 de outubro de 2006

Mitos nordestinos além-fronteiras (Nara Antunes)


Cearense residindo em Brasília, depois de ter publicado em edições mais restritas Itinerário (contos) e Tempos de Mula Preta (contos), além de ter participado de várias obras coletivas. Nilto Maciel lança agora uma nova obra – A Guerra da Donzela (Editora Mercado Aberto, Porto Alegre, 70 págs.). Nesta diversidade de espaços extratextuais, talvez se espelhe um pouco a maior dimensão textual que esta pequena (apenas em tamanho) novela já alcança.

Da noite para o dia (Nilto Maciel)



Como a vida da gente muda da noite para o dia! Ainda ontem tudo ao meu redor parecia sem vida, tudo monotonamente normal, quando me assaltou novamente a idéia de remexer papéis velhos, um dos meus passatempos prediletos. Assim consigo também trazer de volta o passado. Às vezes é uma foto, outras uma carta, outras ainda uma poesia que rabisquei na adolescência. Mas desta vez não foi nada disso. Encontrei uma novela. Datilografada, ilustrada, com capa e tudo. Como um livro impresso. No fundo de uma gaveta, enrolada noutras folhas de papel. Retirei o invólucro e fui me lembrando da história daquela história. Era uma novela amorosa escrita por César e ilustrada por mim. Datilografamos, fizemos uma bonita capa, grampeamos as folhas. Nesse tempo vivíamos de sonhar. Éramos estudantes do mesmo colégio, colegas de grêmio literário, de leituras, discussões acaloradas. Líamos Dumas, Camilo, Herculano, Alencar.

sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Prefácio (José Lemos Monteiro)



Foi com Tempos de Mula Preta que Nilto Maciel revelou suas tendências literárias, firmando-se como um escritor consciente dos recursos que a palavra oferece e dela auferindo toda a força e magia em contos que se nivelam no gênero ao que de melhor se tem publicado atualmente no Brasil. Seria, pois, previsível que logo o autor surgisse com novas experiências, no sentido de ampliar os traços de seu discurso, definindo melhor suas orientações ou princípios estéticos.

Tony River (Nilto Maciel)



Mocinho ainda, rósea tez de espinhos, frouxas calças e olhar enigmático, Antonio Siqueira partiu para a capital, não por querer ou tal fazer, porém pela simples necessidade do pai de pôr nos eixos as finanças arruinadas nos secos e molhados. Debalde o sonho, debalde o esforço. Não tanto por ser chegada a hora extrema do velho, dez anos depois, mas por aquilo que só os gênios tentam explicar semanalmente nos tablóides da oposição.

quarta-feira, 25 de outubro de 2006

Cabra marcado pra escrever (Di Carrara)



Na linha da melhor literatura publicada atualmente no Brasil está a produção de Nilto Maciel, escritor e poeta cearense, com vasta bibliografia e uma invejável coleção de prêmios literários. Editor da "Revista Literatura", de circulação nacional, onde comparecem os melhores nomes da cultura brasileira, Nilto Maciel nos coloca frente a frente com uma linguagem tecida nas malhas da alegoria e da metáfora da vida doméstica e urbana, bem tratada no contexto de sua prosa, propiciando uma leitura prazerosa.

Os três botões (Nilto Maciel)


Questão de coragem, participar da brincadeira, porque tanto vocês poderão encontrar o jardim dos prazeres como a cela das dores. Ou ambos, na mesma jornada. E não há como prever nada. O resultado não depende apenas das três teclas.

Ainda ontem uma senhora saiu daí contentíssima, como se tivesse conhecido o prazer pela primeira vez. E sabem quais os botões que ela acionou? Struthio camelus, I Ching e Lesbos. Tudo por acaso, porque mal sabia ler. Viu-se acariciada das mais variadas maneiras por encantadora criatura. Não sei se jovem ou idosa, se macho ou fêmea. Falou-me da maciez do corpo do desconhecido. Tudo fica registrado aqui em videocassete. O resto o cliente me conta, se quiser. Depois reduzo a experiência a escrito nessas fichas: nome, idade, naturalidade, dia e hora da experiência, teclas acionadas, perguntas e respostas da entrevista com o recepcionista, etc.