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sábado, 28 de janeiro de 2006

Gesta do Jaburu (Nilto Maciel)




De longe, todo cristão crismava de tapera aquela cabana, não fosse ela coito de capangas desses coronéis de meia pataca – fortim pelas armas em que se sustentava e pelos cabras que abrigava. E pra invadir tão bem arrumada arapuca, nada como a manha de um velho caçador de cangaceiros, neto de bandeirantes. Primeiro a obediência muda, porque palpite é coisa boa de dar, feito cascavel dentro de balaio. Fosse acreditar no que a vista enxerga, não tinha passado dos cueiros. Cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém, a não ser a quem não os toma.

Anderson Braga Horta, cultivador de enigmas (Nilto Maciel)


(Anderson Braga Horta)

A vasta fortuna crítica de Anderson Braga Horta demonstra a sua importância dentro do panorama da Poesia Brasileira. Sua obra vem sendo construída lenta e serenamente, como deveria ser a construção da obra de todo escritor. Talvez a sua mineiridade o ajude a ser assim sossegado, sem açodamentos.

terça-feira, 24 de janeiro de 2006

Esses abraçadores da morte (Nilto Maciel)


Ao cimentar o último pedacinho de chão do quintal, o pai do inocente Joãozinho teve a primeira grande raiva de seu prodigioso filho.

– Por que você fez isso?

– Para acabar com os formigueiros, ora essa. Assim, elas (elas, quem?), as formigas nunca mais vão encher meu saco.

– Pois eu gostava muito delas.

Carlos Augusto Viana: Voo ao fundo do verbo (Nilto Maciel)

(Carlos Augusto Viana)



Quando Carlos Augusto Viana estreou em livro, com Primavera Empalhada, a crítica o saudou como uma revelação na poesia cearense. Dimas Macedo, no artigo “Uma Nova Dicção na Poesia Cearense”, fala de “um livro cheio de metáforas e de símbolos, e que traz, na sua textualidade, algo de novo para comunicar ao mundo”. Mais adiante, o crítico afirma: “Seus poemas estão repassados de evocações e de sutilezas semânticas, ao mesmo tempo em que ricos de sugestões e significados”. Passados 20 anos, Carlos Augusto apresentou seu segundo livro: Inscrições dos Lábios. Ao leigo pode parecer que o poeta andou este tempo todo longe da Poesia ou do fazer poético. Na verdade, Carlos esteve sempre dormindo e sonhando, caminhando e descansando, comendo e bebendo com a Poesia, lendo e ouvindo Poesia. Exigente ao extremo, não se deixou conduzir pela mão da facilidade, da pressa e da vaidade. Anos a fio, teceu e desteceu túnicas e mais dalmáticas, pintou-lhas, recortou-as, lavou-as – até sentir prontas as obras da sua tecelagem.

terça-feira, 17 de janeiro de 2006

Assim seja (Nilto Maciel)


Mal pulava da cama, já os joelhos de Hélio se acomodavam ao frio do chão. A mulher, Selenita, dormida, resmungava advertências. Aquilo não havia de fazer bem. Pneumonia pegava um cristão pelo pé e só largava com reza de padre velho. As imprecações do tipo “me deixem em paz” ou “éguas paridas” saíam como ave-marias cheias de graças, dedos ligeiros ao redor das contas do terço. Os olhos do devoto, grudados de sono, miravam o Eterno pregado.

A poesia de Sérgio Campos (Nilto Maciel)


(Sérgio Campos)


Estreou Sérgio Campos com A Casa dos Elementos, em 1984. É um livro de odes e outras formas poemáticas. Há uma ode ao Mar, com epígrafe de Pablo Neruda. Que poderia ser de Píndaro, pois Sérgio Campos demonstra ser lido do oriente ao ocidente, do clássico ao contemporâneo. A segunda ode é à Terra, com epígrafe de Ernesto Cardenal. Poema ao mesmo tempo lírico e político: “Terra, / os homens lotearam / teu chão: / a poucos, sim; / a muitos, não”.

Na ode ao fogo homenageia Ferreira Gullar e todos os fogos: o primitivo, o dantesco, o bíblico, o fátuo.

sábado, 14 de janeiro de 2006

Apocalipse (Nilto Maciel)


Nós presenciamos sua mansa e serena morte, causa desta nossa imensurável tristeza. E mais melancólicos nos fizemos quando cavamos a sepultura e nela o depositamos. Ele está aqui, bem debaixo desta cruz de madeira, morto. Por acaso necessitamos da mentira para falar e continuar a viver? Por acaso não temos olhos de ver e ouvidos de ouvir? Evidentemente as entranhas da mãe-terra o engoliram, tementes de outras tantas vilanias. Pois atendemos ao seu pedido: “enterrem meu cadáver no mais profundo do chão, de forma a tornar impossível a exumação, quer para violentarem-no, quer para mumificarem-no, pois morro para não mais conviver com os meus inimigos.” Reunimo-nos todos, chorosos ainda, e, com ferramentas e forças, cavamos o mais fundo dos fossos e nele depusemos seu corpo.

Floriano Martins: Poesia da paisagem (Nilto Maciel)


Não, o poeta não seria o pintor sem pincel. Assim também o pintor não poderia ser revelado como sendo o poeta sem a palavra. Tudo isso não passa de jogo de palavras, de tentativas falhas de definir as posições assumidas pelo artista. Porque o universo não é somente paisagem, realidade visível. Quantas dimensões existem?

Nenhuma Correnteza Inaugura Minha Sede é poesia de paisagem, nunca pintura de paisagem. Floriano Martins não pinta, não porque lhe falte pincel, mas porque olha o mundo, olha o olhar, olha para fora, para dentro e para aquele espaço que nenhuma máquina conseguiria ver. Revela sua própria loucura, aquela que põe diante do mesmo telescópio a criança, o primitivo e o mágico. A loucura de olhar e ver um gato mastigando, irônico, a minguante face da Lua. Em “Fuga” o corolário de toda a sua poesia: “Toda paisagem é fuga / delírio da razão”. 

quinta-feira, 12 de janeiro de 2006

A lenda de um reizinho - capítulo exótico (Nilto Maciel)


Fui o primeiro deles. Assim, posso falar a respeito de nós, inclusive dos mortos. Eu me sabia superior aos homens em todos os sentidos. Depois de mim veio aquela onda de dar aos bebês humanos o meu nome. Talvez assim esses futuros cidadãos se parecessem comigo. Além disso, o controle da natalidade deixou de interessar aos casais. Todo mundo queria procriar. Para ter filhos como eu. Logicamente que o fenômeno não se deu da noite para o dia. Antes de um ano de idade, meus cinco primeiros homônimos moravam no mesmo prédio onde eu vivia. Fora daí ninguém mais sabia de mim. Porque meu pai fez chantagem com os pais desses pobres meninos. Se revelassem o segredo de minha excelência genética, ai deles. Doenças terríveis, demência, vinditas extraterrenas.

Ubirajara Galli: êxtase fabular (Nilto Maciel)


A Poesia é êxtase. A linguagem poética, desde as suas origens, é encantatória. O objeto da Poesia é o maravilhoso. Para os mais apegados às idéias de engajamento político estas três afirmações soarão como retrógradas. No entanto, A Fábula do Êxtase, de Ubirajara Galli, é um livro novo. A linguagem deste “poema único em seis estações” ou destes poemas reunidos é genericamente a do prazer, ou do hedonismo e, por isso, mágica. Perdidas no interior dos versos, palavras como “sereias”, “lábios”, “língua”, “bica láctea” e “mamas afáveis” falam de sedução e prazer sexual. 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2006

A desilusão de Jonathan Swift (Nilto Maciel)



O menino espirrou para a vida e sua mãe sorriu. O pessoal da maternidade também não se conteve e desatou a rir. Num instante, os sorrisos se transformaram em risos incontroláveis. Mais um minutinho e todos gargalhavam.

O pai do bebê, absurdamente, encheu-se de cólera e chorava, amaldiçoava-se, arrancava os cabelos. Incompreensivelmente ainda, impediu que sua mulher atirasse o menino ao chão e expulsou da sala de partos os médicos e as enfermeiras. Não, não admitia que se cometesse um crime daqueles. 

Diogo Fontenelle: um topógrafo da poesia (Nilto Maciel)


À primeira vista, parecerá que as palavras são excessivas no livro Enquanto o céu não cair, de Diogo Fontenelle. Logo, contudo, estará evidente o engano. Uma palavra a menos, e toda a sua estrutura poética estaria desfeita. Assim, não se há de falar em depuração de linguagem, em desbastamento. Trata-se de um estilo, uma maneira de transportar para o código da escrita a poesia que jorra farta. Toda essa justificação não invalida, entretanto, a crítica segundo a qual a Diogo Fontenelle falta certo cuidado na laboração do poema. Seria o caso de reescrever alguns versos, não se deixar encantar pela aparente simplicidade formal.