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sexta-feira, 24 de março de 2006

Histórias de um povo Xetá (Nilto Maciel)




Muitos escritores nasceram no jornalismo. Seus livros, seus romances estão plenos da matéria bruta da realidade. Marcos Faerman, repórter minucioso, contenta-se com ser repórter. As histórias contidas em Com as mãos sujas de sangue não poderiam ser chamadas contos, prosa de ficção. Faerman é um jornalista maravilhado com a vida ou, melhor dizendo, horrorizado com a vida.

Os índios tupiniquins, os favelados, os miseráveis – são estes os seres escolhidos por Faerman para escrever suas reportagens. Não meros achados policiais, não costumeiros relatos da vida de habitadores de favelas ou dos sertões abrasados pela seca. Não é História também, embora aqui e ali os fatos narrados tenham sido notícia. Não são ensaios antropológicos, sociológicos, embora contenham estas reportagens algo de Antropologia e Sociologia. Sendo matéria de jornal, não são as reportagens apenas textos jornalísticos, destes das folhas diárias e sensacionalistas. Têm uma profundidade na sua intertextura. Pôr isso, reunidas em livro, para não se perderem nas páginas frágeis e transitórias de jornal.

São dois os aspectos essenciais desta obra: o puramente literário, merecedor da melhor leitura, e o informativo-analítico – razão primeira de sua permanência como texto. As treze histórias reunidas no livro traçam um perfil de bronze da sociedade brasileira do final do séc. XX.

O favelado não é senão o caboclo fugido do sertão, espantado pela seca. E quem é o caboclo, senão o resultado do índio aculturado, tornado branco, feito escravo do dono da terra? Os xetás são apenas o choro de quem conseguiu entender que o sistema é um comedor de terras, um eliminador de sobreviventes. Os tupiniquins e guaranis cada vez mais reduzidos – de milhares a centenas, de centenas a dezenas, de dezenas a unidades contáveis nos dedos. E logo, como os xetás, serão apenas sombras. Restarão os favelados, os sertanejos sofridos, sem pão e sem terra, os mendigos, os marginais, os operários das grandes cidades – todos morrendo aos poucos. Morte por queda de qualquer janela de edifícios. Morte em duelo com a policia ou vigilantes das empresas. Morte numa ronda policial, numa noite escura, numa rua deserta. Morte por envenenamento – pelo mercúrio lançado pelas fábricas às águas dos rios. Morte por fome no sertão nordestino. Morte por tiros dados por jagunços a serviço de compradores de terras.

Morrer é muito fácil e matar não é crime, quando quem morre é um índio, um favelado, um joão-ninguém. Pois a humanidade está acostumada a catástrofes, guerras, revoluções. Apenas mais um que morre, mais um povinho enxotado de suas terras. Isto nem faz História. Pois os historiadores oficiais têm pela frente fatos mais importantes. Para que falar de seca, índios, favelas? Além do mais, são todos marginais, obstáculos ao progresso, à civilização.

Porém, existem alguns Marcos Faerman para contar estes pedaços de História escamoteados pela imprensa cor-de-rosa e pela historiografia oficial.
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