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domingo, 12 de março de 2006

O grande jantar (Nilto Maciel)



O Barão John Food ofereceu um lauto jantar a todos os seus amigos de nobreza, nacionalidade e credo filosófico, em homenagem a Francesco Tavola, pai de seu grande amigo, o Padre Giordano Tavola, seu confessor e confidente. Presentes todos os convidados, abriu a cerimônia com muita seriedade:

– Este será o maior jantar já dado na face da terra, maior do que o da multiplicação dos pães. Não em quantidade de convivas ou de pratos, mas em seu significado. Aqui vamos comer, simbolicamente, todos os evolucionistas, todos os naturalistas, todos os hereges, todos os descobridores, todos os inventores. Todos os revolucionários, enfim. Jantaremos apenas carne. Somos carnívoros. Jantaremos um bode, como se fosse Pierre Bodée, representante de todos os nossos inimigos, desde Demócrito até Darwin. Um bode expiatório. 

– E quem era esse francês? – intrometeu-se um príncipe russo.

– Um expert em doutrinas revolucionárias – respondeu o Barão. E, dirigindo-se a Giordano: – Correta a conceituação, Reverendo? – Como se dissesse: Fale agora, padre, que eu não sei dizer mais nada.

– Corretíssima, ilustre Barão. Basta dizer que ontem, quando conversávamos a respeito da chacina praticada pelos índios contra meu saudoso pai e seus companheiros de expedição, ele teve a petulância de dizer que os selvagens são seres humanos e não seres inferiores. Para ele, estes bichos são homens, apenas inferiorizados materialmente a nós, eis que suas sociedades simplesmente se encontram num estágio mais atrasado do processo histórico, não significando isso inferioridade biológica ou racial. Citou até os nomes de tribos já destruídas a bem da Civilização, como uns tais incas, aztecas e maias, as quais seriam muito superiores às sociedades de certos povos, como os orientais da Europa.

Ao ouvir isso, o príncipe russo balançou as orelhas, irritado.

– Essa víbora a serviço do mal – continuou o padre – teve a ousadia de negar diante de nós que os índios sejam simplesmente animais mamíferos e bípedes da ordem dos primatas, embora superiores aos macacos, como os bárbaros e os negros, porém de uma ferocidade felina.

Como o discurso não terminasse, um conde romano cochichou ao ouvido de uma princesa alemão, confundindo-a com o orador:

Brevi esto et placebis.

Não sendo o religioso a princesa, continuou no mesmo ritmo:

– A discussão teve início quando cheguei e anunciei meu desejo de manifestar publicamente nosso repúdio às medidas nefastas que vêm tomando os governos europeus, ao enviarem, para as regiões desconhecidas da civilização, para as selvas habitadas por feras de todas as espécies, inclusive esses tais índios, ao enviarem nossos filhos, imolando-os à sanha feroz dos animais irracionais, preocupados que andam apenas com encontrar ouro e prata, auri sacra fames, quando devem, em primeiro lugar, enviar expedições que exterminem, manu militari, essas feras, limpando o caminho para os exploradores. E, para fazermos essa campanha gigantesca, faz-se necessário uma invulgar divulgação do massacre da expedição dirigida por meu saudoso pai. Ad perpetuam rei memoriam.

Enquanto o padre falava, e parecia que se encontrava em púlpito, os convivas devoravam o malsinado bode.

Monsier, passez-moi le omelette de testicules de bouc. Grand merci – solicitava um exaltado general francês.

– Mas lembre-se, Reverendo – interveio o barão – de que eu não concordo inteiramente com suas opiniões a respeito dos índios. Acho ainda que eles são seres humanos, apenas inferiores a nós, estando, desta forma, predispostos a servirem como escravos nossos, podendo serem domesticados, porque, na verdade, não são feras.

– E por que então eles fizeram aquela comilança, aquela orgia demoníaca, bárbara, animalesca, selvagem?

– Ora, isso é um caso a ser estudado. Creio que seja esse justamente um dos aspectos da inferioridade deles.

– Não venha me dizer que aquilo tenha sido mero resultado de uma guerra entre nossa expedição e eles, da qual tenhamos saído perdedores por uma questão numérica, resultando numa matança geral, como disse aquele francês. Anatema sit.

O general, ainda a deglutir testículos de bode, quase se engasgou.

– E onde está o francês? – voltou-se o príncipe russo, interessado também no fim do inimigo comum e em socorro de seu franco amigo.

Nisso, bateram à porta com estardalhaço. Os convivas se assustaram, empurraram seus pratos para o centro da mesa, ergueram-se de suas cadeiras a um só tempo, entrechocaram-se, como se se perguntassem: “Será o francês?”, e se voltaram para a porta, à espera do desenrolar dos acontecimentos.

Abriu-se a porta e eis que, deus ex machina, um estranho e robusto jovem, com trajes de guerreiro, de um salto, trepou à mesa, pisou os pratos sem preocupação e, ab irato, com ímpetos de orador, pôs-se a discursar:

– Meu filho, voltei. Vim participar do grande jantar e contar o que se passou comigo e com meus companheiros de expedição.

Ecce homo! – gritou o padre.

– É este o francês? – perguntaram os convivas, descrentes das palavras do impetuoso intruso.

– Não, é meu pai – respondeu Giordano.

Pegos de surpresa, os glutões quase derrubaram a mesa, do susto que tomaram, e por um nada não levaram ao chão o pai do padre.

Cave ne cadas – gritou o reverendo.

Qualis pater, tales filius – disse o barão, a imitar seu confessor.

– Um dia – continuou Francesco – não sei por que cargas d'água nossa nau naufragou nas costas do Brasil. Ora, aquela era a minha terceira viagem ao Mundo Novo e, como comandante de expedições, sempre fui bem sucedido, embora ocorressem frequentes naufrágios. Mais da metade do pessoal da tripulação morreu afogada e devorada pelos peixes. Os que se salvaram das águas e dos bichos marinhos, ao chegarem à terra firme, foram calorosamente recebidos pelos selvagens, que outra coisa não fizeram senão comê-los. E eu entre eles, eu que sempre enfrentei índios e venci, eu que sempre petrifiquei índios com um simples olhar, um grito, uma bugiganga.

Meus concidadãos...

Je suis russe – gritou o plenipotenciário do Czar.

– ... não resta a menor dúvida: homo hominis lupus, como disse Plautus. O homem se autodevora não individualmente, mas como espécie. Vejam as guerras, as revoluções, as tiranias. A antropofagia será resultante da fome ou da vingança histórica de um povo contra outro ou de uma raça contra outra? Não sei. Ora, os índios têm animais para caçar e comer e peixes para pescar e comer. Assim, como não pensarmos no racismo? Sim, o racismo engatinhante. Estamos na sua fase menos cruel. Dias piores virão. Teremos então guetos, campos de concentração, fornos crematórios. Ou estarei enganado e a antropofagia será resultante do sadismo humano ou dos costumes milenares de um homem comer outro?

Ainda sinto o meu esquartejamento. Aquelas bocas gulosas e dentuscas, mas nada sensuais, a me comerem. Ainda ouço os gritos de alegria histérica, o rufar dos tambores comemorando a conquista fácil. Ainda vejo as danças macabras ao nosso redor. Aqueles índios pela primeira vez devoravam brancos. Como satisfação final, gritamos, em uníssono, para eles: hodie mihi, cras tibi. Inúteis palavras. Ora, se índio falasse latim, o papa seria pajé.

E o banquete continuou.

A partir daquele dia a tribo não mais esqueceu o grande jantar de carne de branco. Desde então os índios passaram a viver na expectativa de um novo naufrágio, no aguardo de um outro fato como aquele, que se tornou a grande esperança deles, como se fosse a sua redenção, a sua salvação. Sonhavam todo dia com uma grande nau repleta de varões barrigudos, de nobres roliças e de crianças muito alvas e nutridas.

Os convivas se arrepiaram dos pés às cabeças, como se línguas grossas e dentes afiados e grandes lambessem seus corpos e mordessem suas carnes.

– Sonhavam – prosseguiu Francesco Tavola – que essa nau naufragava no quebrar das ondas na praia mais próxima de sua aldeia. E se puseram a construir uma espécie de mirante que lhes servisse de espreita dos mares. Neste trabalho empregaram milhares de homens, mulheres e crianças. E todos trabalhavam com dedicação e amor, como se estivessem construindo suas próprias casas. Ocorreu deixarem de lado suas ocupações habituais e fundamentais, a caça, a pesca, a extração de raízes e frutos, a fiação. Já não se importavam com a tintura do corpo. A vaidade ficou para trás como coisa do passado ou de brancos. As próprias ocas se deterioravam e não se importavam com consertá-las e construírem outras, apesar do aparecimento de novos índios. Os meninos já não pensavam em nadar, brincar no mato, crescer para se tornarem guerreiros fortes e destros no uso da zarabatana, casar-se com a índia mais bonita. Substituíram as velhas palavras por neologismos: naufrágio, nau, jantar, barão, conde, príncipe, nobre, e viviam a sonhar com um prato de carne de branco.

Estupefatos, os ouvintes não sabiam se deliravam, se sonhavam ou se ouviam de fato a voz do morto. Esqueceram os pratos já frios e sem o aroma das primeiras palavras do barão.

– Os rituais mágico-religiosos – prosseguiu o ex-explorador – mudaram de forma e de objetivo: encenavam naufrágios, destroços de naus, esquartejamento de brancos, etc.

Algum tempo depois, já mortos alguns dos participantes do jantar de nossos corpos, já nascidos indiozinhos que nunca viram sequer um branco, o naufrágio não passava de um fato histórico. As crianças perquiriam os mais velhos sobre a célebre data, o grande jantar. Desenvolveu-se uma arte de desenhar naus, homens brancos, naufrágios. Com o correr do tempo, já nem se lembravam mais dos detalhes, das formas e passaram a pintar uma nau como se fosse uma baleia, um homem branco como se fosse um monstro marinho pré-histórico. Não podiam mais dizer: a carne branca tem o sabor disso ou daquilo. Criaram pratos novos para relembrar o prato de carne de branco. Tudo fizeram para lembrar o banquete. Um indiozinho, por exemplo, descobriu um antigo desenho numa rocha, uma figura de branco, e sentiu tamanha sensação que não tardou a morder a indiazinha de sua adoração. De mordida em mordida, terminaram em pleno ato sexual. Acta est fabula.

Dito isto, Francesco desapareceu como éter. O padre, perplexo, perguntou:

Domine, quo vadis?

– À eternidade – respondeu o barão pelo fugitivo.

Sit tibi terra levis – aventurou o príncipe russo, já plenamente latinizado.

– E o francês? – quiseram saber novamente os convivas.

– Vocês o comeram – ripostou o anfitrião.

Mal o barão fechou a boca, o padre fez uma careta, encolheu-se sobre a barriga farta e vomitou na cara de John Food a boca de Pierre Bodée.

Lançados de volta à vida, os lábios do indigesto francês, antes da última garfada, ainda bradaram, num latim vomitado e fedorento, aprendido no estômago latino do Padre Giordano Tavola:

O tempora! O mores!
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