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sábado, 15 de julho de 2006

A surpresa do professor (Enéas Athanázio)



Em segunda edição, está circulando Itinerário, pequena coleção de contos de Nilto Maciel (João Scortecci Editora - São Paulo, 1990). São 14 contos curtos que mal preenchem 60 páginas, mas que mereceram decididos aplausos da crítica e que realmente agradam o leitor pela técnica e pela criatividade.

Depois de uma leitura geral, do começo ao fim, compeli-me a retornar ao segundo conto do volume - "Jornal de Domingo" - e nele “morar” por algum tempo, como queria Monteiro Lobato. É um pequeno texto, delineado em econômicas 40 linhas, mas que me levou a esticar os olhos para o horizonte e procurar no céu azul coisas indefiníveis. Mil idéias, impressões e sugestões povoaram minha cabeça diante do quadro armado pelo contista e a situação que envolve o enfatuado professor Luiz Vaz e o jovem poeta Oton de Assis.

Na verdade, o autor apenas debuxa a brevíssima trama, como o arquiteto que traceja somente vigas mestras, deixando o restante para os olhos da imaginação. Com a diferença básica de que a obra deste está incompleta, ao passo que a de Nilto Maciel está perfeita e acabada. Seu pequeno conto provoca, estimula e, afinal, enternece.

Num resumo tosco, relembro que o professor Vaz lia o jornal de domingo. Homem sensível, de cultura refinada, seu passado de leituras fora povoado por Virgílio, Camões e Bilac, ainda que agora preferisse os poetas novos. "Nunca o chamariam velho sonhava ele. Antes, o eterno jovem, o mestre da língua viva, polêmico, moderno, brasileiríssimo". Passeando o olhar pelo jornal, "catava pedras preciosas por puro deleite" ou para "exibi-las a seus alunos" quando deparou, surpreso, com o poema. Emocionado, com um ligeiro baque no coração (imagino), um leve tremor nas mãos, arregalou os olhos, fixou o título, leu, releu, tresleu. Voltou ao início, releu novamente. Esticou os olhos para o horizonte e procurou no céu azul coisas indefiníveis (presumo). O poema era assinado por Noto de Sissa.

Na aula, submeteu-o à crítica dos alunos, "riu na cara deles. não aprendiam nada, pareciam idiotas". E a crítica de Oton de Assis, então? Um despropósito! Um presunçoso aquele menino, era necessário humilhá-lo, "não passava de um fedelho". Em síntese, Oton de Assis não "atingira os primeiros degraus do saber”, faltava-lhe cultura literária para julgar a obra-prima de Noto de Sissa. Os outros meninos abriram as bocas, ouviram, calaram. "Oton de Assis nada mais falou. Na verdade, não podia se comparar àquele homem".
Encerra-se aí o texto, mas seu fim coincide com o início do conto. O pequeno drama silencioso que se desenrola dentro do aluno humilhado vai ecoar na sensibilidade do leitor, cuja análise não encontrará limites. Poderia mesmo esse conto ser encarado como embrião de um romance.

A primeira reação do aluno só poderia ser de pura perplexidade. Sua pouca experiência de vida, decorrente da própria juventude, não encontraria explicação lógica para aquilo. A ausência de percepção em tão refinado mestre (com quem não se atrevia a comparar-se) com certeza o deixou chocado incrédulo, pasmo. Em seguida, seria forçoso que sobreviesse um processo de espanto e admiração diante da qualidade da obra realizada, tão enfaticamente celebrada, em público, por um mestre de tantas virtudes e competências. Seria de pensar que tipo de reflexos poderia o episódio provocar na personalidade em formação do aluno. E por fim, para não ir muito longe, é claro que entendeu a comédia envolta naquilo tudo, com suas facetas de humor grosseiro e de ridículo insólito. Pois afinal, apesar de todas as evidências, o professor não permitiu a ele o elementar direito de fazer restrições ao poema por ele próprio composto. Embora continuasse anônimo entre os colegas, o jovem poeta "germinaria páginas tão belas como as publicadas no jornal daquele domingo".

O pequeno conto de Nilto Maciel, para mim o ponto alto do livro, encerra uma lição sempre atual. Embora o latim ande fora de moda, o escritor usou de sua arte para fustigar a hipocrisia – ridendo castigat mores.

(Diário Catarinense, Florianópolis, SC, 6/5/1991)
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