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terça-feira, 1 de agosto de 2006

Os comensais de Afonso Baio (Nilto Maciel)




No meio da noite sentiu seca a garganta. Como se tivesse engolido fogo. Nem sequer uma gota de saliva na boca. Buscou entre os dentes um resto de comida. Na certa haveria líquido em qualquer pedaço de arroz. No entanto, a língua — pedaço amargo de carne — nada encontrou.
A geladeira, porém, devia estar repleta de garrafas com água. Por que, então, não pular da cama e correr à cozinha? O tormento desapareceria num minuto.
Bebia Afonso o segundo copo, quando avistou um rato a correr junto ao pé da parede. Feito um raio, a idéia de atirar a taça contra o animal sumiu. Talvez pudesse matá-lo com o pé. Não, não pisaria rato nenhum, sem antes se calçar.

E bebeu mais água. Depois cuidaria do seu indesejado hóspede. Aquilo não eram horas de matanças domésticas. Melhor dormir.

Nas noites seguintes, Afonso sentiu outras sedes e correu outras vezes à geladeira. E outros ratos avistou. Não, devia ser um só, o mesmo da primeira noite. A mesma cor, o mesmo tamanho, os mesmos olhinhos arregalados, o mesmo chiado estridente, a mesma insolência. E era esta insolência que o enfurecia. A ponto de o fazer lançar contra o pequenino animal os mais variados objetos: copos, talheres, tampas de panela.

Se sua mulher estivesse em casa, aquilo talvez não acontecesse. Ora, não iria acordá-la com tanta zoada. E as crianças? Jamais faria aquilo com seus queridos filhos.

Mas há meses morava só. O juiz decidira separá-lo do resto da família. E, como não havia com quem conversar e brincar, passava parte da noite a beber cerveja. Quando não agüentava mais, caía na cama.

Alertado do perigo do alcoolismo, decidiu dar aulas à noite, após o trabalho de oito horas. Sentiu-se cansado. E para quê mais dinheiro? Poderia muito bem se divertir, em vez de trabalhar mais. Não faltavam cinemas, teatros e livrarias na cidade. Sim, veria muitos filmes, muitas peças, leria muitos livros.

Logo não falava a não ser de filmes, peças teatrais, livros. Um importuno de primeira!

— Volte a beber, Afonso — suplicavam seus colegas, vizinhos, amigos.

E o já supererudito Afonso Baio deixou de lado cinemas, teatros, livros, e se dedicou outra vez às bebidas. E logicamente voltaram as crises de secura na garganta, as sedes infernais, os sonhos estapafúrdios. Eram guerras intermináveis entre ratos e gatos, carnificinas terríveis. Ou um mundo dominado pelos ratos. A União das Repúblicas dos Ratos-de-Casa invadia os Estados Unidos dos Ratos-Pretos. E ele, Afonso Baio, espectador apavorado, único homem a zelar pela paz na Terra.

Havia, porém, sonhos de outra natureza. Num deles, uma praga de ratos atormentava o reino de Dom Afonso I. Ninguém conseguia dominá-los, exterminá-los ou expulsá-los. Eis, porém, que um homem descobre a sedução que sobre os roedores exerce a música de sua flauta. E, assim, sai pelas ruas da cidade a soprar. Em poucas horas, consegue atrair todos os ratos da corte. E sai pelo portão, levando atrás de si toda a corte maldita.

O mágico era precisamente Afonso Pires Gatacho Baio.

Assim, Afonso voltou às turras com os ratos domésticos. Ou com aquele insolente rato de tempos atrás. Sim, o bichinho voltara, mais crescido embora. E mais travesso, mais lépido.

Só uma ratoeira pegaria aquele endiabrado roedor. Do contrário, logo a casa estaria infestada de ratos. E adeus sossego!

Porém um sonho heróico fez o nosso Afonso mudar de idéia. Em tal sonho, o ratinho travesso o salvava de morte certa — as garras de um majestoso e terrível leão.

De manhã, em vez da ratoeira, comprou o homem um enorme queijo.

E toda noite Afonso supria a cozinha — território do rato — das mais variadas iguarias. Para refestelo do animal. E este, aos poucos, perdeu o medo.

Na terceira noite seguinte ao sonho da transformação de Afonso Gatacho em Afonso-dos-Ratos, o travesso roedor recebeu um nome — Inquilino.

Não tardou, Inquilino difundiu a notícia do batismo a seus irmãos, parentes e amigos. Nenhum deles, porém, deu crédito à conversa do esperto rapaz. Jamais acreditaria em amizade de homem. Pior do que gato. Com certeza o tal Afonso preparava uma armadilha para o pobre Inquilino. Tomasse cuidado!

O tempo passava, e nada de Inquilino morrer. E os queijos!? Nunca lhe faltava comida. Até conversavam, ouviam música. Precisavam ver a cama. Um móvel digno de qualquer príncipe.

— Cuidado, ele vai te pegar dormindo!

— Deve ser um funestíssimo sádico.

O primeiro a ceder aos rogos de Inquilino recebeu o nome de Narciso. Ao chegar à casa de Afonso quis se ver. Não acreditava em sua própria coragem. E correu para diante de um espelho.

Ao cabo de uma semana, viviam na casa, sob a tutela e o beneplácito de Afonso, mais três ratinhos: Lutero, Buda e Ícaro. O primeiro não parava de chiar. O segundo vivia sentado, as patas traseiras cruzadas, como a adorar seu deus Afonso. O terceiro, na sua faceirice de criança, brincava o tempo todo de saltar obstáculos, tentando voar, feito morcego.

Nem tudo, porém, era amor naquela casa. O crescente aumento do número de hóspedes compeliu o hospedeiro a revelar suas simpatias e antipatias por uns e por outros. Assim, decidiu rebatizar alguns ratos. E depois adiou a escolha dos nomes. Para não chamar nenhum joão-ninguém de Napoleão ou Vietcongue.

Terminou fazendo distinção entre bons e maus. Aos primeiros dava comida, carinho, proteção. Aos segundos, as sobras dos opíparos jantares de seus favoritos, além de pontapés, torturas várias e a morte. Não qualquer morte, mas a mais terrível — entregava os condenados, indefesos, à sanha de gatos famintos.

Não há dúvida de que Afonso criava ratos como diletante. Pois nunca havia sequer estudado biologia ou zoologia. Mesmo assim, logo adquiriu alguns livros sobre os pequenos roedores. Os primeiros foram Como eliminar ratos e Os ratos e a saúde pública. Mas não era exatamente esse tipo de literatura que desejava conhecer. Vasculhou livrarias e bibliotecas e achou obras como A origem dos ratos e Comportamento dos ratos. Chegou a constituir pequena biblioteca de obras sobre o milenar mamífero. Tornou-se, assim, um dos maiores conhecedores do assunto. Quantos gêneros, quantas espécies. Comprimentos máximos em cada gênero. Hábitos, esconderijos, alimentação preferida. A “peste negra”, suas causas e conseqüências. O terror vivido pelos europeus. Os milhares de mortos.

A cada nova descoberta científica, Afonso Baio ampliava o seu criatório. Logo, dispunha de pelo menos um exemplar de cada espécie.

Outro sonho, porém, induziu nosso herói a dar fim aos seus inquilinos. A peste negra havia ressurgido na Terra. E o ponto de partida da epidemia se dera exatamente no seu casarão. Nas cidades e nos campos morriam diariamente milhares de pessoas. Com medo da terrível morte, elas se flagelavam em público, chicoteavam-se e pediam a Deus que as salvassem.

Desatinado, Afonso iniciou, ainda de madrugada, a impiedosa desforra. O primeiro a ser capturado foi Jesus, um jovem rato-de-espinho. A seguir se deu o suplício de Madalena, uma sensualíssima ratinha-de-palmatória. Pelo simples motivo de tentar socorrer o outro.

Nesse dia os gatos da casa — hóspedes recentes — fizeram um banquete digno do rei Sardanapalo. E assumiram o lugar dos ratos na vida de Afonso Pires Gatacho Baio.
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