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sexta-feira, 18 de agosto de 2006

A prosa com arte de Chico Lopes (Nilto Maciel)




O primeiro livro de contos de Chico Lopes – Nó de Sombras – saiu em 2000. O segundo – Dobras da Noite – se publicou em 2004. São narrativas longas, se comparadas aos minicontos que vêm sendo publicados no Brasil há algum tempo. No entanto, não se deve dar importância ao número de páginas de uma obra. Importa tão-somente o valor literário dela.

O fôlego do contista o leva a longas caminhadas pelas cidades de seus dramas. Quer dizer, o faz conduzir seus personagens por ruelas, becos, córregos, chácaras, bairros periféricos. Essa cidade não tem nome explícito e pode muito bem ser Poços de Caldas, Minas Gerais, onde vive o escritor há alguns anos, ou a cidade onde nasceu, Novo Horizonte, interior de São Paulo, onde viveu por quarenta anos. Há vagas referências aqui e ali a nomes de logradouros: Rua Penha Lopes, Praça Coelho Neto, Rua Décio Paiva. Mas isto não indica nada. Mesmo quando um personagem diz: “só vejo o dedo que aponta para os trilhos inúteis da Mogiana”.  

E porque perambulam pela cidade em fuga ou em busca de algo, os seres de Lopes se perdem no tempo. Nunca se sabe quanto tempo decorreu do primeiro ato ao último. Veja-se “Parque dos Cães”: o ser fictício sem nome explícito, dito simplesmente “ele”, como quase todos, conta como matava cachorros loucos com vara de guatambu. Conta a pessoas que esperam o ônibus. No segundo parágrafo, “ele” e os outros se encontram no veículo. O narrador interrompe a narração e, como se fosse um cameraman, se volta para outro tempo, outro lugar e outro personagem. Inicia-se mais um bloco narrativo com a deuteragonista dita “ela”. E assim flui a narrativa. Nunca em linha reta, sempre em cruzamentos, interseções, linhas oblíquas, tortas, labirínticas. Como o são os seres, quase todos maníacos, obsessivos, sombrios, solitários, bêbados, desocupados, “apostadores do bicho da padaria” e fracos. Um prepara bolinhas de carne com veneno para matar cachorros. Outro, sentindo-se pequeno, frágil, arquiteta durante anos a morte do amigo forte, musculoso, bonito. “Eu estava entre os trôpegos, os desajeitados, minúsculos, de ímpetos confusos, gestos e passos de quem não está exatamente onde está, de alguém mal acolhido pelas coisas” (“Um corpo no rio”). Há o que via sombras em movimento e “tinha um rancor difuso contra toda a raça masculina nas ruas” (“Do outro lado”). Uma variedade enorme de seres oblíquos, tortos, mal-ajambrados, feitos de aberrações.

Com seres tão (não digamos abjetos) malcriados, malcuidados, como os monstros da literatura (Frankenstein?), não pode o leitor esperar outra leitura que não seja a da tensão constante. Como nas composições de Poe. Leia-se “Nos fundos”. Um homem solitário (os poucos casais vivem em constante desunião) recebe em casa um mendigo e o hospeda: “um saco às costas, uma barba de meses”. Como é possível alguém hospedar, de graça, um desconhecido, um mendigo? Virtude cristã? Homossexualismo? Loucura? Fascínio? Que fascínio? Num segundo passo (quadro), “ele” (o dono da casa) constata que “o fascínio passou a transtorno quando descobriu que seu hóspede não dormia”. Quem era esse personagem tão estranho? “Vivia muito só na casa, depois da morte do pai, entregue a leituras, incapaz de procurar um trabalho, saindo à noite apenas para passeios inúteis pela cidade, andanças sem rumo às quais imprimia um passo enérgico, como se tivesse um objetivo bem definido”. Assim também são outros seres da ficção de Lopes. Mas como terminará o conto? Qual a relação que nascerá dessa estranha amizade? E o leitor vai se enrolando na trama, preso à tensão, incapaz de atinar com o desfecho. Como nas demais histórias dos dois livros. A busca incessante da mulher do vestido lilás pelo solitário do bar deixa o leitor quase em pânico. Quem seria aquela mulher? Até o desfecho trágico.

Os seres fictícios dos dois volumes são quase sempre solitários. Em “A sala acesa”, o homem diante do copo de cerveja, a ouvir conversas dos outros, dos grogues. Os próprios narradores lembram deles: “Na esquina onde morava um homem solitário (...)”.

As criaturas de Chico Lopes estão ora em fuga do fracasso, de outro, de si mesmos, ora em perseguição, em busca de alguém, de algo, da vida, da felicidade, do sucesso. O protagonista de “Uma das mil noites” constata: “Não haveria mais para onde fugir”. Os seres de “O clarão” vivem perdidos: o menino se agarra à mãe como tábua de salvação num lar feito de inquietações e promete matar o pai, se ele continuar a maltratar a mãe; esta, “forçada a trabalhar como animal, endurecera, perdera a beleza”; o pai sempre a beber, a viajar, a ameaçar o filho e a mulher; o irmão do pai (personagem emblemático), a desenhar a vida, uma mala repleta de desenhos, doente.

O sexo é visto pelos personagens de Lopes ora como pecado, sujeira, ora como transgressão. Coisas da Besta, como diz alguém de “Parque dos cães”. Sempre a arder de desejo, porém a se recriminar: “seu olhar acabava resvalando nas pernas oferecidas da Nancy”. Ao chegar à casa, ouvia “risos e sons parecidos a chupações lá fora”. Por isso, a necessidade de matar cães envenenados. Sua vingança. Beatriz, de “A gaveta”, se diz apaixonada e sofre. (...) “estranhava a própria voz: era e não era a sua. Parecia-lhe deformada, involuntária – a voz de uma Beatriz maligna” (...) O narrador adulto de “A fresta” lembra episódios da infância, uma mulher de nome Aurora, freqüentadora da “pequena vida noturna da cidade”. Os meninos se dirigiam, à noite, à casa da moça para espiá-la pela fresta da janela. Em “Trio” ocorre o inverso do famoso “triângulo amoroso”. Na história, há dois homens e uma mulher, num estranho relacionamento. Em “A many splendored thing”, o adolescente Vítor tem desejos pelo professor, com seu “calção perturbador”. O protagonista de “O vestido lilás” se masturba no banheiro de um bar, toda vez que vê a misteriosa mulher do vestido lilás.

Observa-se nas narrativas de Chico Lopes a citação constante de trechos de canções populares, bem como a menção a filmes de Hollywood. Em “Parque dos cães”, uma das personagens põe na vitrola um disco para ouvir Andy Williams e Doris Day. Mais adiante, o narrador transcreve uns versos da primeira canção e menciona Audrey Hepburn e George Peppard. Em “O Clarão”, o narrador lembra a infância, quando via no cinema Sara Montiel e ouvia Paul Anka nos parques de diversão. Em “A fresta”, a moça Flora “fala com uma amiga de um filme de Debbie Reynolds”. Há em “O manco” citação de trecho de uma canção gravada por Nelson Gonçalves. Em “A many splendored thing”, o menino se lembra do filme Suplício de uma saudade e de uma foto de William Holden. Mais adiante outra citação de uns versos de outra gravação de Nelson.

A presença de meninos (nunca de meninas) nos contos de Chico Lopes é frequente. Alguns são narradores, embora já adultos que relembram a infância. Outros são seres secundários. Em “Um corpo no rio”, o narrador adulto lembra episódios da infância, como no dia em que tomavam banho no rio e pensou em matar, pela primeira vez, o líder do grupo. Talvez por inveja, porque o pênis do outro era o maior. Talvez por vingança, porque o outro o humilhara, o despira na frente de todos.

Uma das mais pungentes narrativas do escritor paulista é, sem dúvida, “O clarão”, narrado por um menino. Os outros personagens são o pai, a mãe e o tio. O primeiro é retratado como um bruto e a quem o menino jura matar, caso continue a maltratar a mãe. A mãe é figura apagada, embora seja a sua única proteção. O tio é a figura central da trama. Talvez um louco, que vive a retratar o mundo ao seu redor, as pessoas. “Um homem curiosamente frágil e triste”.

Em “A fresta”, o narrador adulto lembra episódios da infância. Em “O recado”, outro menino fraco, obediente ao irmão mais velho, a quem admirava pela virilidade, pela musculatura. O menino de “Belmiro agoniza” é angustiado. O pai nunca lhe pedia nada, só ao mais velho. Até o último momento do pai. “Desde sempre invisível, ele agora o era ainda mais”. “As vozes” é conto soberbo pela introspecção da alma do garoto. Outro personagem infantil retratado por Lopes é o narrador de “Cavalo e sombra”.

O contista utiliza as mais variadas e modernas técnicas de narrar. Seus diálogos são essenciais e curtos. Entretanto, porque a maioria dos personagens vive em solidão, isolados, as narrativas são constituídas quase que somente de narrações. Não exatamente de fatos, episódios. Mesmo nos desfechos, quando comumente os escritores se esmeram em narrar em detalhes a cena final, mesmo aí Chico Lopes é cauteloso ou sutil. Leia-se o final de “Parque dos cães”. Os verbos no pretérito (brilhou, demorou a entender, começava a ser rasgada, quis afastar, teve a mão torcida, ouviu um palavrão, reconheceu a voz, viu-o abaixar as calças, etc.), em orações curtas, conduzem o leitor (ainda em estado de tensão) ao clímax.

Sem querer filiar a prosa de Chico Lopes à de outros ficcionistas (Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector, Poe, Dostoievski, Henry James, de quem é tradutor), é impossível não ver em sua obra “o homem com seus problemas interiores, sua angústia, suas meditações sobre o destino, a morte, o além”, como observou Afrânio Coutinho na literatura de Cornélio Penna. E, sem querer trazer à tona a velha questão “literatura social” em oposição a uma “literatura espiritualista”, talvez as peças de Chico Lopes representem a volta de uma literatura menos “realista” ou “naturalista”. Uma literatura muito mais próxima da arte do que da notícia.

Fortaleza, agosto de 2006.
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