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sexta-feira, 1 de setembro de 2006

O primeiro homúnculo (Nilto Maciel)


Chegado à velhice, Leonardo Ratisbona abandonou o projeto de criar homúnculos. Morreria insatisfeito, incompleto. Como a maioria dos mortais. Porém nunca infeliz. Pois tudo fizera para tornar real seu sonho maior. Os cálculos mais complicados executara. De todas as fórmulas mágicas se servira. As orações mais exigentes rezara. Todas as poções, todos os ungüentos manipulara. As bruxarias mais exóticas praticara.

Havia um consolo: talvez seus netos tivessem o orgulho de mostrar ao mundo a grande invenção da humanidade — o homúnculo. Sim, não se sentia totalmente infeliz. Podia morrer em paz. Quase realizado, quase feliz. Até mandaria inscrever em seu túmulo: “Aqui jaz um feiticeiro quase feliz”. 

E numa noite de muito frio preparou-se para morrer. Rezou a Deus e ao Diabo, tomou chá de beladona, untou-se de variados ungüentos, calculou o tamanho da Eternidade e deitou-se na cama repleta de signos. E era mais cedo que sempre, quase dia ainda, o sol mal morrente. Cobriu-se com o cobertor do cotidiano — sujo de todas as sujeiras do sonho — e se preparou para sonhar. Talvez a noite lhe trouxesse a derradeira idéia para a criação do homúnculo. Sua salvação, sua vida eterna. Queria, no entanto, sonhos lógicos, aristotélicos, cartesianos. Nada de absurdos, de fantástico. Pois andava sonhando com grifos infantis que o tratavam como avô caduco. Com gnomos adolescentes que o não deixavam dormir, tão barulhentos se faziam. Com harpias horríveis que tentavam seduzi-lo. Vontade incontrolável de acordar, ser homem comum!

Mal se deitou, Leonardo se entregou ao devaneio. Se sonhava ou pensava, ninguém sabe. De uma forma ou de outra, aparecia-lhe um serzinho invisível a voejar ao redor de seu nariz. Talvez um mosquito. Irritado, o feiticeiro sacudia a mão para lá e para cá, na tentativa de afastar de si o inseto. Gesto inútil, pois o serzinho se pôs a falar:

— Você não pode me atingir, Ratisbona, por mais bruxo que seja.

A princípio, Leonardo teve medo e apenas arregalou os olhos. Podia estar diante de um monstro. De quem seria aquela voz?

— Sou um homúnculo.

E o invisível ser expôs a razão de sua presença no quarto de Leonardo: queria se transformar em homem e contava com a ajuda do feiticeiro.

— E o que eu ganho com isso?

— Ensino a você a fórmula de criar homúnculos.

— Você é mágico também?

— Fui, meu caro Ratisbona.

A conversa durou mais alguns minutos. Porém os dois não chegaram a nenhum acordo. Pois, para criar homúnculos, Leonardo teria que renunciar à condição de homem e feiticeiro — ele mesmo seria transformado em homúnculo. Para sempre. Ou até encontrar um bruxo que aceitasse a idéia de se metamorfosear em homúnculo.

— Depressa, Ratisbona, decida.

E o feiticeiro deu um pulo da cama, mais assustado que nunca. Recostou-se à parede, olhos voltados para a cama tosca, como a vigiar seu invisível inimigo. Logo, porém, compreendeu a inutilidade de tanto medo — o sonho acabara.

Atordoado ainda, meteu-se no banheiro. E, enquanto se lavava, sorriu. Sim, não morreria sem criar homúnculos. Bastava transformar-se num deles. Como não imaginara isso antes! ? Grande idiota!

E correu ao laboratório. Trataria imediatamente da metamorfose. Ao lá chegar, porém, uma dúvida o paralisou: como poderia dizer a seus colegas que descobrira a fórmula de criar homúnculos? Não, não tomaria logo decisão tão radical. Amadureceria a idéia. Discutiria com outros feiticeiros. Não, isso nunca.

Súbito, um inseto entrou no laboratório e pousou num frasco onde um líquido avermelhado borbulhava. Leonardo Ratisbona nada viu. Nem mesmo a pequena chama que logo se agigantou.

Do incêndio só restaram cinzas.
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