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sábado, 4 de novembro de 2006

A guerra da donzela (Valdivino Braz)




Nos "Primórdios" da narrativa um fato já desponta de modo a fixar-se na mente do leitor e aí permanecer sedimentado durante toda a trama engendrada pelo escritor (ou, por outro lado, pela personagem Thaumaturgo), vindo à tona sempre e à medida que o nome de Antônio Jucá vai surgindo em meio à trama. Um fato comum, o querer o filho vingar a mãe com a morte do pai, mas tratado com técnica e arte, de modo a descortinar um outro painel, paralelo e rico de conteúdo. O desfecho do romance, quando tudo culmina como um clarão, ligando a parte final aos primórdios, constitui uma prova disso. Uma trama bem urdida, capaz de prender o leitor e conduzi-lo até o fim. Ao final, tem-se todo um quadro de situações para se refletir e dele depreender realidades, posto que armado a partir do verossímil.

Sutileza – eis um pouco do que encontrei n’A Guerra da Donzela, romanceada de forma hábil e engenhosa. Para quem, como eu, ainda se situa entre a faixa de leitores que se limitam a gostar ou não gostar de um romance, conto ou poema, não creio ter assimilado bem o que vai de implícito na trama – um plano com múltiplas situações, a sugerirem outras. Metafórico, algo satírico, simbólico, alegórico. Acho que sobretudo alegórico, na sua seqüência de metáforas, o sentido oculto no reverso das palavras.

Bichos sendo vistos como gente, durante a caçada humana, como se se caçassem gente-bicho – interessante, isso. Verossímil. A simbologia dos nomes: Sombra, Doutor João Forte (JF – que coincidência!), Thaumaturgo (do grego thaumatourgos: que, ou aquele que faz milagres – remember o “milagre"?). Sombra misto de cabo eleitoral, puxa-saco, bobo da corte, pseudo-intelectual, etc., tudo a serviço do sistema – Palma –, e, no fim, apenas sombra. Doutor João Forte – ex-prefeito, caduco, demagogo: “Pobre povo". Padre Queiroz – a Igreja impotente perante os políticos e a lei: o poder e seus aparelhos ideológicos. O povo ingênuo de Palma, facilmente levado pelo engodo e habilidade de Thaumaturgo: a farsa do rapto da donzela. Muito artimanhoso, como diria Odorico Paraguassu. A maneira como ele, Thaumaturgo, vai conduzindo a Coluna, a Cruzada, o Regimento (em nome da lei e da ordem, da justiça, da família e da sociedade; em nome do de sempre, bases que sustentam o Estado) rumo ao "culpado", bode, expiatório de seu crime: "Um homem!", "Um homem chamado Antônio Jucá", "Um sujeito corpulento, pardo, mal encarado" – um retrato falado por etapas: o homem, o nome, a descrição física, tudo no momento certo. Realmente muito esperto, o nosso Thaumaturgo, como sóem ser as raposas políticas.

A Guerra da Donzela – algo quixotesco. O grotesco das situações. Os absurdos em nome da lei e da ordem: invasão de domicílio, saque, violência, etc. A força do simbolismo alinhavando a narrativa, cada elemento simbólico equivalente aos respectivos significados (os que me foram dados a entender). Toda a narrativa se desenrola de forma a relatar como Thaumaturgo procura se livrar de Antônio Jucá, seu filho com Mirtes, que jurou castrá-lo e sangrá-lo. (Pergunta no ar: se todos sabiam de quem Antônio era filho, como é que ninguém desconfiou da farsa do rapto quando Thaumaturgo jogou sobre ele a culpa? Quanta ingenuidade!) Está claro que o autor do romance não procura apenas relatar uma história linear, sugere, por via de simbolismos, uma outra realidade. Ainda que o leitor – do médio para cima – não esteja imbuído de política, tenderá a ligar alguns aspectos à realidade vigente no país (ou estarei apenas raciocinando de forma premeditada?).

Senão vejamos: "O delegado recebeu sua parte" (no cabaré de Ana Souto) – corrupção, “aparato”, "desfile", "patriotismo", "unidos pelo movimento", "coluna", "cruzada", "regimento", "combate", "todos mandavam e ninguém obedecia" (cap. VI), "os civis sigam os militares, conforme manda o regulamento de guerra" (Tenente Bezerra - cap. VIII), "O povo, por muito tempo, viveu em paz e esquecido da língua" (final do cap. XI), "em nome da lei e da sociedade", etc. Não é preciso discorrer sobre todos esses exemplos para exprimir-lhes os significados. São signos que falam por si mesmos. São sutilezas entremeadas ao longo da narrativa, a sugerirem uma outra realidade. Alegoria que me põe a pensar numa certa donzela de 17 anos...

De resto, os cariris extintos do Ceará. Não vislumbrei uma ligação direta com a trama. Existe? Estou interessado, por desconhecer a história dos cariris.

(Revista Meya Ponte nº 12, Pirenópolis, Goiás, set/dez/2001)
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