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quinta-feira, 27 de abril de 2006

Teoria da desfiadura (Nilto Maciel)




Eles vão chegar, mais hora, menos hora. Ofegantes, embravecidos, cientes de me poderem pegar e matar. Porém não me pegarão nem me matarão. E voltarão decepcionados, porque eu sei o que sou e fui.

Um dia, eu tinha doze anos e o tempo não passava nunca, aquela pintura desbotada diante de mim. Na lama, afundavam-se meus pés, feito bichos medrosos. Ao meu redor tudo se expandia e eu nem olhava com pena de minha pequenez. Todo dia esse sempre estar só, muito triste. Acocorava-me ao pé da bananeira pensa, a olhar, distraído, para as minhocas que se contorciam no charco do quintal. Minha mãe não chorava, mas espantava as galinhas, os urubus e o sol para não se lembrar dos gritos de meu pai. E aguava o chão de manhã e de tarde, com medo da seca. 

Acerca de uma nota ao romance de Emília Freitas (Nilto Maciel)


Em 1980 saiu a 2ª edição (a 1.ª é de 1899) do romance A Rainha do Ignoto, de Emilia Freitas. Como obra literária, não merece ser posto ao lado de romances como A Normalista, de Adolfo Caminha; O Simas, de Pápi Júnior; Luzia-Homem, de Domingos Olímpio; e, sobretudo, Dona Guidinha do Poço, de Oliveira Paiva, todos mais ou menos da mesma época e cearenses.

A singularidade de A Rainha do Ignoto, no entanto, não pode ser negada. É, sem sombra de dúvidas, o primeiro romance fantástico escrito no Brasil, embora sua autora o chame de romance psicológico.
 

sábado, 22 de abril de 2006

Tadeu e a mariposa (Nilto Maciel)




Agora ele deve andar metido nalgum quarto de pensão a implorar à mulher com quem se deitou a se deixar fotografar lá mesmo na cama, nua e suja como estiver. Contaram-me que vive dia e noite nas zonas, desesperadamente cantando mulheres, máquina pendurada ao ombro: “Vamos tirar umas fotos, garota?” E todas lhe fogem como o diabo foge da cruz, receosas de se tornarem mais públicas, de comprometimentos com a polícia, os bons costumes. Sua má fama já se espalhou por todos os meretrícios. Não vai para trepar e muito menos para fazer outras sacanagens. Seu fraco é fotografia erótica, coisa nojenta. De certo não abre o jogo e se faz de apaixonado: “Quero te ver de novo, sempre; deixa eu te fotografar”. Ou mente e diz que é repórter de revista de nu. “Você vai criar fama, virar manequim, estrela e ganhar muito dinheiro sem precisar abrir as pernas durante toda a noite em troca de uns cruzeirinhos”. Mas a coisa ficou preta pro seu lado, nem a mais rabugenta puta aceita sua companhia, sabedora de que é um explorador como outro qualquer, falso e mentiroso. Dizem que vive constantemente embriagado, liso, sujo, remendado, a peruar de bordel em bordel, de ruela em ruela, doido por uma cliente que não lhe saiba o nome.

Os ensaios de Sânzio de Azevedo (Nilto Maciel)


(Sânzio de Azevedo)

 
O ensaísta, pesquisador, historiador, estudioso do fenômeno literário Sânzio de Azevedo é autor de uma dezena de obras, quase todas voltadas para o estudo da Literatura Cearense.

Dez Ensaios de Literatura Cearense versa temas distintos. Um deles, o primeiro, trata do conto, atendo-se a uma infinidade de escritores, ao contrário dos demais estudos do livro. Trabalho de fôlego, fruto de demoradas pesquisas. Não se trata de um estudo da natureza do conto, como já o fez Braga Montenegro, mas de uma análise de cunho histórico. 

quinta-feira, 20 de abril de 2006

Santo Yan (Nilto Maciel)


Zadik Perez odiava Sancho Peretz, desde muitos anos. Ódio mudo, fermentado entre quatro paredes, espumoso, envelhecido a rolha.

Num dia de sol quente, ouviram-se os primeiros resmungos, rangeres de dentes, curtos insultos. E as faíscas dos quatro olhos queimaram alguns curiosos. Nem anoiteceu e toda redondeza dos odientos sabia do pretérito e do presente deles, e até o futuro contava.

Um doutor em Poesia (Nilto Maciel)

(Sérgio Campos)


Conheci Sérgio Campos em 1987 e com ele me correspondi desde aquele ano até poucos dias antes de seu falecimento. Escreveu-me 52 cartas ao longo de oito anos. Escrevi-lhe, talvez, o mesmo número de vezes. A apresentação de um ao outro se deu pela mão (melhor dizer pela palavra) de Floriano Martins.

Quando nos conhecemos, Sérgio havia publicado quatro livros, que aos poucos me foi ofertando. A primeira dádiva me veio junto à primeira epístola, de 8/5/87. Não se tratava de seu livro inaugural, porém do quarto – Montanhecer. E dizia, já no segundo parágrafo: “É que circulam por aí tan¬tos livros, mormente de poesia, alguns tão sem raiz, alma, que a gente percebe estar-se deteriorando essa antes tão eficiente forma de mútuo conhecimento. Se recebo, desconfio; se envio, receio."

quarta-feira, 19 de abril de 2006

Rede de cobras (Nilto Maciel)



O nome de Pedro Campos aparecia duas vezes na notícia das “atrocidades cometidas pelos fazendeiros contra os índios”. O jornal só podia ser dos comunistas.

– Até rima com jornalista.

Os homens da fazenda olhavam para o chão, parados, feito marmotas. Nem tossiam.

– Cambada de putos!

Um pouco de Braga Montenegro (Nilto Maciel)




Estive uma vez com Braga Montenegro. Se não me engano, em 1976. Logo depois, já em Brasília, recebi dele uma carta.

Nascido em 28 de fevereiro de 1907, em Maranguape, Ceará, Joaquim Braga Montenegro viveu na Amazônia durante sete anos, de 1925 a 1932. João Clímaco Bezerra anotou: “E quase menino ainda, franzino e pobre, rumou para a aventura da Amazônia, onde acabaria de crescer diante dos rios lendários e da paisagem bravia.” No entanto, os melhores anos de sua vida de escritor ele os viveu em Fortaleza, onde leu, primeiro, desordenadamente, e, depois, “com uma sistematização e um espírito seletivo dificilmente encontráveis nos autodidatas legítimos”, no dizer de Clímaco. Faleceu aos 73 anos de idade. 

sábado, 15 de abril de 2006

Quimera (Nilto Maciel)



Visse o retrato dele por ela pintado

– Você tinha um aninho.

Destacou de entre os dedos o indicador e sorriu. Um riso de brilhosos olhos e rosadas faces, a se expandir por todo o seu corpo. E, tão depressa ele cresceu, na mesma proporção desapareceu. Murchou o dedo, caíram as pálpebras, esconderam-se os dentes empós os lábios.

quarta-feira, 12 de abril de 2006

Mestre Moreira Campos (Nilto Maciel)



Estive com Moreira Campos em duas ocasiões, apenas. Apesar disso, desde antes do primeiro encontro já sentia por ele grande amizade e, acredito, ele me dedicava o mesmo sentimento.
Não lembro quando o li pela primeira vez. Possivelmente por volta de 1964, quando passei a ler suplementos literários de jornais de Fortaleza. Nesse tempo pontificavam nas Letras cearenses os nomes de Artur Eduardo Benevides, Braga Montenegro, Eduardo Campos, Francisco Carvalho, Fran Martins, Jáder de Carvalho, João Clímaco Bezerra, Milton Dias e outros. O nosso Moreira Campos estreara em livro, com o elogiadíssimo Vidas Marginais, em 1949. Contava 35 anos de idade. Não tinha nenhuma pressa em se mostrar ao público e à crítica. Escrevia e reescrevia, como outro ilustre contista, o mineiro Murilo Rubião. E ao final de sua longa vida havia publicado apenas 137 contos.

Punhalzinho cravado de ódio (Nilto Maciel)



Caminha Ana pelo beco esburacado, perninhas de embuá, doida para alcançar a esquina. Saltita, feito catita, de ilha em ilha, com medo de se afogar nas poças de lama. Cachorros sonolentos abrem os olhos para sua figura miúda e se espreguiçam e expõem as indecências encarnadas de entre as pernas. Voltam a sonhar, sérios, acanhados, magros.

– Cambada de vagabundos!

quarta-feira, 5 de abril de 2006

Prosa de ficção: algumas noções (Nilto Maciel)




Tenho encontrado leitores que me fazem perguntas embaraçosas como esta: “O que devo fazer para aprender a escrever conto, novela, romance?” No mais das vezes, digo-lhes: “Comece lendo os clássicos.” Alguns me responderam: “Mas eu já li quase todos e, mesmo assim, ainda não sei como escrever um conto.” Ora, há dicionários, manuais, tratados que dão noções sobre espaço, ação, incidente, drama, conflito, unidade dramática, história, célula dramática, lugar, tempo, passado anterior ao episódio, tom, personagens, tipos, caricaturas, linguagem, concisão, concentração de efeitos, diálogo, diálogo interior, monólogo interior, discurso direto, narração, descrição, ponto de vista, foco narrativo, primeira pessoa, narrador onisciente, começo, fim. Também o conhecimento de tudo isto parece não ser suficiente para dar ao aprendiz de escritor o cadinho para a realização da obra de arte. E, por falar em cadinho, captei a seguinte lição de Adolfo Casais Monteiro, em Os Pés Fincados na Terra: “A arte não é invenção pura; o artista é como que um cadinho em que se realiza a mistura dos ingredientes que são o pó da experiência.” Muitos sociólogos ditos marxistas insistem em afirmar que toda pessoa é capaz de criar qualquer obra de arte, desde que se lhe dêem condições sociais, culturais para o exercício dessa capacidade. Ora, milhares e milhares de pessoas letradas, bem vividas se dizem poetas porque sabem escrever versos. No entanto, não são poetas ou não conseguem escrever bons poemas. Os gramáticos seriam então os melhores poetas, contistas ou romancistas.

Da crueldade humana (Nilto Maciel)





Está nos dicionários: Cruel. Adj. 2 g. Que se compraz em fazer mal, em atormentar ou prejudicar. Duro, insensível, desumano. (Do latim crudelis ou crudele.) Crueldade. S. f. (Do lat. crudelitas –atis ou crudelitate.). Subentende-se que a crueldade seja uma qualidade humana e não de todos os seres vivos. Assim não entendo. Os animais também são cruéis, pois também são duros, insensíveis, severos, rigorosos, sobretudo no ato de matar a presa. Mas isto não importa aqui. Quero falar do livro Contos cruéis – As narrativas mais violentas da literatura brasileira contemporânea, organizado por Rinaldo de Fernandes e editado pela Geração Editorial, São Paulo, 2006. São 47 contos “dos anos 70 (ou mesmo um pouco antes) aos dias atuais”. O organizador adotou dois critérios básicos para fazer a seleção: “convidar nomes importantes da ficção atual (de várias regiões do país)” e “incluir alguns contos já consagrados da literatura brasileira contemporânea”.

segunda-feira, 3 de abril de 2006

O sonho do meliante Guimarães (Nilto Maciel)



Acordo sempre suado, o coração fogoso, gritando pela mulher, como se ela pudesse me acudir e evitar minha queda. Ela se revira, me chama de danado, foge de minhas mãos trêmulas, pula da cama, acende a luz, chora e berra. É sempre madruga-da, tem chovido fininho e faz um frio bom para se dormir.

– Como foi o sonho? Você sonhou comigo, Guimarães?