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quinta-feira, 25 de janeiro de 2007

Never more (Nilto Maciel)


Ivo subiu à calçada. De longe avistou umas pernas desnudas. Quem seria aquela criatura? À esquerda um carro parado. O motorista de bigodes ria. De quê? E se também estivesse a olhar pelo espelho as pernas da garota? Cabelos louros a esvoaçar, distraída. Porém não podia ficar ali parado, feito um vagabundo. Havia mais gente na praça. O coração bateu mais intensamente. De relance viu a calcinha branca. À direita um homem e uma mulher conversavam, em pé. Riam também. Alguma piada. A mulher sacudia-se toda.
O homem olhou para outra pessoa, sentada no banco, à direita. Com certeza esta também já percebera as perninhas alvas à mostra. A areia parecia mais seca. O vento de vez em quando levantava poeira. Há dias não chovia. Inquieto, Ivo meteu as mãos nos bolsos. Sentiu-se excitado. O sangue queimava-lhe a pele. O coração em ritmo de batucada. Podia ter um enfarte. Melhor sair logo dali, não olhar mais para as pernas da garota. Um cachorro atravessou a praça, distraído. Cruzou exatamente a linha imaginária que ia das pernas escandalosas ao olhar de Ivo. Maldito cão! O homem do carro ainda ria ou escondia os bigodes com a mão. Talvez ouvisse piadas pelo rádio. O casal conversava, sem perceber quase nada. Dois rapazes também conversavam, mais para a direita. Um deles podia estar vendo a causadora do pecado de Ivo. Porém só a veria de perfil. O cachorro desapareceu. Ivo se aproximou vagarosamente da pequena. Não podia parar. Ela se sentiria olhada, mirada, vasculhada. E os outros o recriminariam, com certeza. O homem do carro talvez até chamasse a polícia, se ele mesmo não fosse policial. Porém aquele instante poderia ser único na vida de Ivo. Olhou para trás. De perfil, o nariz do motorista lembrava o bico de um corvo. Never more. As costas do homem que contava piadas estavam molhadas. O velhinho do banco parecia cochilar. Os dois rapazes andavam no sentido contrário ao de Ivo. Ainda bem. Mais de perto viu como eram alvas as pernas da criatura inatingível. Porém não viu mais a calcinha. Nem sequer as coxas. Caminhou, mais devagar, e mesmo assim tudo foi ficando para trás. Não podia parar. O instante maravilhoso já havia passado. O medo e a emoção se misturavam em Ivo. Never more.
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