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quinta-feira, 8 de março de 2007

O mistério tem os seus fascínios (Francisco Carvalho)



 
De 1974, data de sua estréia com o livro de contos Itinerário, até 2003, quando publicou sua obra mais recente, intitulada A Última Noite de Helena (Editora Komedi, 108 p., São Paulo), Nilto Maciel consolidou seu prestígio como um dos melhores ficcionistas brasileiros da atualidade. Em vinte e nove anos de atividades literárias, sua bibliografia reúne treze livros de ficção e um de poemas. Em todos esses títulos sobram evidências de que o rigor estético e a qualidade constituem preocupações fundamentais do autor.

Nomes expressivos da crítica literária no Brasil tiveram oportunidade de analisar algumas das obras do ficcionista cearense, a quem não poupam elogios, o que geralmente acontece quando se trata de escritores de projeção nacional. O leitor não deixará de admirar a riqueza estilística das narrativas de Nilto Maciel, nem o cromatismo da linguagem, nem a mestria com que delineia os caracteres de seus personagens.

É da maior relevância destacar o fato de que os nomes dos personagens do livro são, todos eles, de origem grega, de acordo com observação do próprio autor. A começar por Helena, que nos remete aos primórdios da antiguidade clássica. Àquela que, na época de Homero, teria sido o pivô da guerra de Tróia. Homero, o narrador dos fatos e controvérsias ligados à morte de Helena, é xarapim do célebre poeta grego, o cego iluminado a quem se atribui a glória de haver escrito a Ilíada. Esse pormenor, aparentemente de pouca significação, gera um clima de autenticidade que avaliza a atmosfera simbólica do livro de Nilto Maciel.

Inúmeros personagens, de diferentes gradações sociais e/ou profissionais, fazem parte da trama do romance. Trata-se, na realidade, de uma tarefa essencialmente cabalística: explicar se a estranha morte de Helena, “ao cair da torre da igreja matriz” de Palma, configurava a hipótese de assassinato ou de suicídio. Era esta a senha para destrinchar os fatos que intrigavam os habitantes da cidade. Homero, o narrador da odisséia em que se transformara a morte de Helena, procura obstinadamente encontrar razões plausíveis para o desfecho da história. Mas os depoimentos arrolados no processo, em lugar de esclarecer dúvidas, tornavam o enigma cada vez mais obscuro.

Quem matou Helena? A moça teria sido empurrada do alto da torre da igreja matriz? Ou simplesmente teria praticado suicídio? Qual o móvel do crime? Se prevalecesse a tese do suicídio, quais as pessoas ou motivos que a levaram a tomar essa decisão tenebrosa? A tudo isso se acrescentavam outras hipóteses não menos absurdas. Autoridades policiais e depoentes anônimos diziam o que lhes vinha à cabeça, mas tudo esbarrava em dilemas intransponíveis. Um único fato concreto, em toda essa polêmica, era a falta de consenso dos espectadores da tragédia. Até mesmo o tenente estava “impelido a mudar o enredo de sua história”. Anotações no caderno de um garoto não passavam de obra de Lisandro, o professor: “Aqueles corações flechados escondiam braços e mão mais fortes, aqueles ditos amorosos mascaravam lábios calejados de safadezas, aqueles versinhos medidos dissimulavam desejos de perdição”. Homero joga mais poeira no ventilador ao dizer que sabia “de uma novela onde só na última linha o leitor descobria o assassino”.

Esses exemplos, colhidos ao acaso, demonstram claramente a extraordinária capacidade de Nilto Maciel para urdir a trama de suas narrativas. Seu discurso mistura ingredientes simbólicos com a realidade linear do cotidiano. O erudito e o popular se completam num paralelismo sintático onde até mesmo as reticências do narrador desempenham o papel de figuras de retórica. Mais importante do que provar quem foram os responsáveis pela morte de Helena, Nilto Maciel dá provas cabais de sua competência de tecelão de enigmas. Para o observador Homero, que fala em nome de Nilto Maciel, já não importava a causa da morte de Helena. Tudo não passava “de um sonho ou um passeio imaginário?” O leitor dispõe de precedentes e circunstâncias presumíveis para decifrar o mapa da mina. Não adianta esquentar a cabeça. Vá em frente e não esqueça a advertência de Homero, porta-voz de Nilto Maciel: “O mistério tem os seus fascínios”.

(Revista Literatura n. 29, maio/agosoto/2005)
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