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domingo, 3 de junho de 2007

A última consoada (Robson Ramos)

























Caía a tarde, entrava a noite. Ele permanecia sentado na cadeira de balanço, quieto, embriagado pelas lembranças, vagando pelos pensamentos. Acompanhava o cair do Sol e o correr de um pequeno rio. O fiel cachorro, que nunca o deixara só, permanecia deitado, igualmente quieto, apenas as orelhas se mexiam, vez por outra, para espantar os mosquitos.
Há anos repetia esse mesmo ritual: terminados os afazeres, banhava-se, colocava as cadeiras no alpendre, chamava o cachorro e conversava com sua senhora durante o anoitecer. Naquela mesma hora, rezavam, para se proteger dos maus agouros. O Destino, porém, subvertera o curso natural da Vida por duas vezes: primeiro quando ele tivera que enterrar um dos filhos, o mais moço, quando o natural é o filho enterrar os pais; segundo quando sua mulher morreu subitamente, vítima de uma doença que a consumiu silenciosamente e, quando descoberta, era tarde demais. O Tempo também não o deixara impune. Estava velho: os cabelos brancos e ralos; a face enrugada; a visão curta, quase imprestável; a audição falha; os braços e as pernas já não atendiam como antes.

Um vento frio percorreu o campo e pairou sobre o alpendre. Ele desconfiou, mas teve certeza quando o cachorro se levantou e latiu: Ela havia chegado, não com a mesma ferocidade de antes, chegou leve, sutil. Se ele a pudesse ver, veria uma bela dama vestida de negro, sentada na cadeira vazia ao seu lado. O cachorro a encarava, mas nada fez, sabia que não havia coisa alguma a ser feita. Ele também não esboçou nenhuma reação anormal. Já era sua hora, cumpriu aquilo que lhe foi designado: nasceu, cresceu, casou-se, multiplicou-se e agora morreria. E ainda havia amado, amado muito. Poderia um homem querer algo mais?

Recolheu-se à casa, certo de que não estava só. A mesa já estava arrumada, os pratos nos devidos lugares, cada coisa em seu lugar, como era seu costume. Comeu um bocado e rejeitou o resto. Tomou um pouco de água, guardou a louça e se preparava para se deitar. Sentou-se na cama, chamou o cachorro para junto de si, afagou-lhe a cabeça, agradecendo os anos de lealdade e se despediu. Não tinha medo, estava consciente da situação. Rezou. Ao fechar a janela, viu o rio correr, corria para longe, desembocando no mar, completando seu ciclo.

Deitou-se na cama e o mesmo vento frio pairou pelo quarto: Ela fez-se presente. Sentiu o ar frio tocar o seu rosto, era um beijo de adeus. E agora ele, ao fechar os olhos, assim como o rio, completara também o seu ciclo.
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