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quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

A busca da paixão - primeira parte (Nilto Maciel)





















Constante viagem. Eterna viagem. Somos viajantes da eternidade. Odisséia de ser.

PRIMEIRA PARTE

Meus pés são raízes profundas enfiadas no chão desta cidade. Sou os próprios muros desta fortaleza, pedras entre si grudadas e na terra afundadas. Encantado, armo passos livres, intento arrancar-me, debato-me no asfalto, e o visgo dele mais me prende. Projeto o regresso, porém meu vôo morre no próprio sonho.
Engolido feito inseto, debato-me no bucho do sapo. Na escuridão, tateio caminhos de saída. Tonto, vejo expandir-se o próprio núcleo. A cidade é um poço onde me afogo. Nado, e mais me afundo. E é infindável o fundo.
Estou definitivamente aldeado nesta cidade que, quanto mais se alarga, mais me comprime. Já perdi a noção de suas quatro portas, e dia a dia mais me extravio em seus labirintos.
Aonde quer que eu consiga ir, já serei esta carga ambulante de angústia e medos. Talvez porque nascido sob o signo dos apocalipses. Desde cedo me feriram a consciência com notícias de fim do mundo.
Qual o sentido de um passeio, de uma viagem de férias, de uma visita às ruas do passado? Mais fácil imaginar-me menino a brincar de esconde-esconde.
Não, o sossego de uma ruazinha ainda calçada a pedra não me livrará da buzina que me soa nos ouvidos. O riacho mais perdido fluirá aos meus olhos como puro exotismo. Na estação de trem, onde durmam cachorros sobre os trilhos, parecerei tudo, menos um viajante e sua mala atulhada de saudades. Não terei mais bancos onde possa sentar minha solidão, nem mais águas que me lavem a ferida de tantos anos, nem mais trens que me carreguem a passeio.
Que ir fazer ao pé do altar, onde Cristo me expulsará a chicotadas? O jeito é adorar os ídolos da indústria e fugir-lhes das rodas. Que ir fazer ao pé das mangueiras, onde as frutas cairão podres sobre minha imagem de cidadão? O jeito é pedir a esmola de um aperto de mão e escapar aos esbarrões. Pois vá eu correr pelas ruas, e os fantasmas de verde me erguerão seus cajados. Vá eu esconder-me detrás dos muros, e as aranhas me espreitarão a palavra.
No entanto continuo tão perto de meu passado. Apesar disso, minha aldeia – nova Almofala* – o tempo a soterrou. E como me é difícil essa tarefa de arqueólogo! Aqui e ali redescubro pequenas aparências carcomidas pelo pó, restos de amigos e de mim mesmo, caricaturas apagadas de meus medos, destroços daquele mundo perdido.
Aqui vivo, a contar as iras cotidianas, para não roubar os que têm, sob pena de dupla punição.
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* Almofala, povoação litorânea cearense, famosa por suas dunas e por ter sido soterrada várias vezes por elas.
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Para seguir o exemplo de fulano, que, por ser manso e humilde de coração, recebe palmadinhas nas costas e decerto terá o reino dos céus. Para carregar ao lombo a lenha que acenderá o fogo do chefe, sob pena de desobediência.
Aqui estamos, eu e meu desespero, a guiar os passos para não pisar em falso e cair na arapuca.


Aqui nada lembra Palma. As casas não têm quintais, as ruas não têm jumentos a pastar, nenhuma cadeira na calçada vê a eternidade pousar nas pedras do calçamento. Não há uma serra a cem passos do olhar, verde, gigantesca, cheia de montes e picos. Não há um trem diariamente partindo, diariamente chegando. Não há, sobretudo, a menina mágica que aparecia e desaparecia, ao bel prazer dos devaneios do menino sereno.
Aqui há, sim, a idéia de partir, de buscar a bola que ficou presa no forro, um pedaço de sonho enlaçado nos punhos da rede, uma reza esquecida na hora do sono, um minuto de ternura debruçado na janela, um vago olhar a seguir os passos daquela menina incomum.


Nunca tive pretensões de ser viajante. Nunca imaginei viagens. Talvez por andar sempre à volta de mim mesmo. E estes passeios, estes volteios, esta ciranda me bastam.
Não consigo estar sempre no passado. Talvez se fosse cego o presente não me atraísse nem um pouquinho. Mas vejo, e as coisas velhas desta casa me falam de mofo. O armário de fórmica comprado há anos agora acolhe o rádio e as baratas. O rádio, enorme, de segunda mão, fala fanhoso e canta engasgado. Enche a casa de notícias obscuras.
Enquanto chafurdo no chão da angústia, meu pai cochila, embalado pela monotonia das horas. Nem se dá conta das moscas nem de mim. Talvez sonhe os velhos tempos, e nem imagine a labareda que é minha cabeça.
Vez por outra me conta pedaços de sua vida, e tudo me parece lenda. E, no entanto, quem acreditará em mim? Serei também personagem lendário? Mas inventar-se é fazer-se.
Quiçá ele venha inventando seu passado, como todos fazemos. É forçoso fundar os alicerces, quando já as paredes estão rotas e os caibros do telhado podres. Ou, se não, reforçá-los. E nisso vai sempre a invenção. Refazer também é inventar.

Vasculho as gavetas da memória e em nenhuma página me encontro. Se me encontro é perdido entre as folhagens de esmaecidos quintais. Ou a mirar heróis sem nome. Não sou nenhum deles. Sou mera figura sem vida. Ou espectador de casos. Minúsculos fatos que mal dariam uma página de romance. Figurante anônimo de comédia de costumes. Às vezes, mudo ouvinte de histórias e lendas.
Os heróis são os outros, gente morta. Nunca, porém, príncipes de contos de fada. São personagens pequenos de dramas de circo, homens desaparecidos na poeira, criaturas que não vingaram para as tragédias sociais. Nenhum Lampião, nenhum padre Cícero, nenhum Getúlio, nenhum Conselheiro.
Ainda assim, sinto-me tão personagem como os protagonistas da História. Pois vivi debaixo do mesmo sol e sob a escuridão da mesma noite deles.

Se minha epopéia se limitasse em mim mesmo, talvez eu fosse mais inteiro. Porém sou um velho retrato cortado em pedaços, como as próprias figuras que tento colocar neste álbum, de maneira mais ou menos coerente. Tarefa quase impossível, porque teimam em se misturar. Olho para meu pai, e logo me aparece a cara de outro homem. Como antigamente. Da mistura de personagens nasciam outros. Apareciam-me reis, que eram grandes homens barbudos, armados da cabeça aos pés, voz de trovão, braços cheios de músculos, roupas brilhosas e pesadas. Mulas-sem-cabeça andavam pelos caminhos, o sangue escorrendo do pescoço. Lobisomens cabeludos, focinhos de cachorro, braços compridos, tocaiados detrás das mangueiras, urravam danadamente. E bestas-feras, dragões, cangaceiros, etc.
Meus horrores nasciam das histórias contadas no alpendre, na sala, na casa de farinha. Chegava-me devagar, escondendo-me dos olhos trabalhadores, cioso de tudo ouvir. Durante a farinhada contavam-se histórias longas, e os ouvintes ora riam, ora permaneciam compenetrados, assustados.
Talvez eu fantasiasse demais e imaginasse aqueles personagens de histórias de trancoso, da carochinha e de cordel, segundo uma ótica toda minha.
Certas figuras não consigo apagar de meu álbum. Se me fosse possível, ao menos, sobrepor-lhes outras! Seria mais cômodo, no entanto, jogar tudo fora. Mas como? Quem poderá se livrar do passado?
A substituição é realizável e simples. Basta colar-se a figura de fulano em cima da de sicrano. Faz-se mister, no entanto, a semelhança das duas feições. Do contrário, os traços característicos de sicrano continuarão visíveis. Dar-se-á confusão de traços. Surgirá um monstrengo.
Se fulano se assemelha a sicrano, haverá apenas troca de atores. O drama será o mesmo. E, se assim é, para que a substituição?


Meu velho pai cochila. A morte o espreita. Moscas pousam em suas mãos enrugadas, em seu rosto gasto. Sua boca – que impropérios terá dito? – está aberta, feito a Gruta dos Morcegos. Ele também é meu príncipe, meu gerador. Porém não deve sequer saber de minha dor, tão grande, bem maior que uma caverna.
Meu pai, ele não me abandona. Sua figura pintada por mamãe e aquela por mim mesmo apreendida aos retalhos e montada pacientemente. Todas as figuras são costuradas, remendadas, quebra-cabeças. E nenhuma pode ser autêntica, se seus pedaços alguns se perderam no lixo, as traças roeram outros, o tempo os desbotou.
Meu pai! Sua fala na cabeceira da mesa, tão distante que parecia muda. Eu enfiava feijões nas brechas das tábuas, para desenterrá-los durante o cochilo da reza. Padre-nosso que estava no céu. E eu na terra, joelhos doídos, rezava meninas nuas e sujava o calção.
Quanta vergonha de ser pecador. Eu me confessava a Deus. Prometia-lhe não mais pecar, fugir das más companhias. E fugia de fato dos outros, de suas conversas escandalosas, de seus gestos e atos pecaminosos. De noite sonhava com cães celebrando missa e gatos passeando às tardinhas na praça, conversando e rindo feito mocinhas e rapazes.
Estes sonhos mais tarde me atormentaram, de tanto eu não saber encerrá-los.
As meninas de minhas noites não existiam, voavam feito borboletas nas manhãs e tardes de flores. Adiante eu as agarrava, sem querer mais largá-las. Presas entre meus dedos e punhos da rede, elas eram minhas. E eu me lambuzava no gozo, enquanto o mundo todo latia. Depois a sinfonia dos galos se alastrava pelos quintais e me despertava. Os sinos tocavam e eu espantava o sono das muriçocas com o pelo-sinal, os dedos grudados de prazer, que eu cheirava arrependido e saudoso.
Quando chovia, corríamos para casa. E pedíamos a Deus que aquilo parasse. Passado o temporal, abríamos portas e janelas. A água escorria veloz pelas coxias e carregava barquinhos de papel e lixo. E longe, bem dentro de meus olhos, uma menina brincava de se banhar na chuva, feito ninfa, feito flor.

Cutuco a memória como se fosse chão, à cata de brinquedos perdidos, de pedaços de minha vida – cacos de mim mesmo. Encontro-os sempre, mas sinto que a terra devorou muitos deles. O tempo os comeu – vermes de meu tormento.
Os trens descarrilaram nas ladeiras. Morreram os maquinistas, os passageiros. Um mundo de escombros. O matagal tomou conta dos trilhos. Não há mais estrada de ferro. Nem estação nenhuma.
Os cavalos de pau, os bois de melão, as galinhas não-sei-de-que – todos os animais se esfacelaram. Cavaleiros, vaqueiros, criadores – todos enterrados.
A própria terra onde viviam não existe mais. O mar a inundou. O grande mar do tempo. Aquele mundo é morto, destruído. País fora dos mapas. E tudo em mim é confusão. Águas tormentosas, mar encapelado, tempestade.

Havia em casa vinte portas e quatro janelas. Duas para a rua, duas para o quintal. Passarinho preso em gaiola, eu imaginava vôos e corria de uma ponta a outra. Um cachorro andava lerdo a virar latas. O burro do leiteiro capengava. Além das últimas casas o verde da serra anunciava onças. Porém tudo me parecia muito distante. E eu me lembrava do gato. Talvez vadiasse pelo quintal, à cata de andorinhas. De uma das janelas eu o avistava. Brincava de se perder entre as bananeiras. E eu seguia seus passos e me perdia. Até encontrar a menina invisível.
Enquanto as dúvidas me devoram, esquadrinho os meus arredores. Esta sala – clausura que me imponho bestamente. Estas paredes que sobem no rumo das telhas, inalcançáveis, furadas aqui e ali pelos caibrais de nossa genealogia, enfeitadas dos armadores do sono e dos sagrados quadros da família. Meu pai mira o mundo de cima de sua mocidade, minha mãe pousa seus sonhos na grinalda da servidão, e Jesus abençoa tudo, triste feito um condenado.
Por que não sair para as ruas, ver as pessoas, conversar, arranjar mulher? Tantas por aí. Não, não me dá vontade nada disso. É urgente vigiar estas moscas. Ou apenas vê-las nos quadros da parede, cevadas de defunto.
De tanto cismar, perco a noção do tempo. E diante do papel às vezes nem sei se estou em casa. Para mim esta sala era aquela onde eu me refugiava para pensar na menina de meus devaneios.
Visões, irrealidades, abstrações! Sim, mas tudo existe e não posso negar com palavras as realidades dos outros sentidos. Ainda quando passadas. Nas cavernas da memória estão gravadas as inscrições dos primeiros homens.
Ora, que importa o passado! Só o presente tem sentido. Sim, o presente.
Reparando bem, no entanto, o presente é aquela casa de aranha no canto da parede ou aquela mancha que a mão de uma goteira pintou. E já morreu.

Sou funâmbulo para mim mesmo. Na corda bamba da vida passeio. Rio e choro feito menino. Se cair – e sempre caí e um dia cairei definitivamente – chorarei a má sorte do palhaço.
Não poderei viver eternamente sobre arames ou cordas. O espetáculo não pode durar muito. O equilibrista é humano, cansa e quer descansar, dormir, sonhar.
Preso estou às teias que teci. Sou Ulisses. Meu destino tracei penelopemente. Tecido, ainda me teço. Teço o rei tido em aventuras. O rei sou eu. Meu rei, meu reino.

Eu queria apenas ser como um animal. A água do esgoto escorria sob os pés das galinhas, que cacarejavam, talvez a sonhar desconhecidos insetos, coloridos dejetos. E enfiavam o bico, sem medo, naquele pântano.
Nos becos havia sempre um jumento a espojar-se no chão. Livre para sujar-se, sem vergonha de seu corpo. Ouvido grudado ao coração úmido da terra.
Eu queria esconder-me nas copas das árvores, confundir-me com gafanhotos e lagartas. Desejo de perder-me para achar-me solto, sem compromissos nem amarras – gato doméstico voltado para sua natureza felina. Fera indomada e nunca pressentida. Correr pelo mato, alucinado de beleza e liberdade, liberto de panos pecaminosos, as roupas que nos escondem dos olhos dos outros. E dos nossos.

Ao me sentir perdido no jardim de minha intimidade, pareceu-me estar doido. O mundo rodou e eu não sabia em que lugar dele me encontrava. Daquele quintal em expansão, como se me tivesse reduzido a um olhar para dentro, ou paralisado no seu centro. Para todos os lados um fim de mundo, vastidão de terras verdes. Bananeiras, laranjeiras, limoeiros, jaqueiras.
Perdido, já não sabia onde ficava o esgoto por onde escorria a água suja e que, quando chovia, mais parecia um canal. Traria peixes em sua correnteza a caminho do Potiú? Inundaria a estação de trens, as ruelas, os morros? Levaria na enxurrada o sonho de um dia conhecer as raparigas e sua vida misteriosa? E, no seu constante escorrer, poderia engrossar o leito do rio e descer para o mar?
Não sabia mais onde ficavam as fruteiras, nem sequer os muros. Ao me achar, se me achei algum dia, todo o espanto do mundo havia feito de mim um sonhador incurável.
E por onde andava o bichano? Talvez a ressonar entre a folhagem, cansado de roncar e engolir pelancas. Velho, já não se atrevia a perseguir ratos na despensa, a meter-se entre as achas de lenha, todo fúria e unhas. Preferia arranhar as bananeiras macias e beber leite de vaca, preguiçosamente.
Em que latitude da infância eu me achava? Diante do muro, com toda certeza. Mas qual dos muros me afrontava? O dos fundos, o da direita, o da esquerda? Que direita, que esquerda? O da direita de quem vinha dos fundos era o da esquerda de quem partia de casa. Se ao menos pudesse olhar para o quintal do vizinho! As lagartixas espiavam o mundo de cima dos muros e me saudavam. Não, elas não me assustavam. Só me causava pavor ferir-me nos cacos de vidro.

Naquele dia de medo e ousadia, imaginava tudo, inclusive os caminhos da perdição. Ou o inferno cristão, o fim do mundo tão propagado nos sertões.
Naquele dia delirante todas as mínimas coisas cresceram em encanto para mim.
Para trás ficava a bola de meia no canto da parede, debaixo do armário, exposta ao sol no telhado. As galinhas de melão, os bois de sabugo, minha criação ao relento. O time de botão, toda sua grandeza e fama dentro de uma caixa de fósforos.
A voz das coisas silenciada. E como imaginar isso, se ainda permaneço o mesmo ouvinte de pedras e bichos? Meus ouvidos me acusam constantemente de ouvir palavras cruéis.
Naquele dia de perdição esqueci as rezas sem fim na boca da noite, marteladas na memória. Em nossa casa rezava-se em demasia, chorava-se diante de falecidos amados, pedia-se a proteção de um deus marmotosamente poderoso, fantasmagórico e pai de todas as assombrações.
Na angústia de me saber sem rumo, eu sentia a ausência de meu pai, do rádio velho, rouco, inerte, das pedras do calçamento mais toscas. De meu gato morto no bico imundo dos urubus. Esmagado pelo balanço da cadeira a rolinha e meu remorso. Tudo morreu naquela vez, menos o desespero de ser mortal.
Naquele dia tudo eu lembrei. Pendurado no cabide ficou o chapéu de meu pai. Perdidos no estirão da calçada os ecos de seus passos certos, contados, medidos. Mil para começar a manhã. Outro tanto para regressar e se empanturrar à mesa. Uma porção para enfrentar o sol quente. Mais mil para terminar o dia e descansar as pernas.

Perdi-me entre a última porta da casa e os muros do quintal. No pequenino território de minha primeira utopia, naquele país sem leis nem reis, cujas fronteiras o ligavam ao resto do mundo.
Tudo, porém, mudou. No mapa já não existe aquele Reino da Perdição. Agora a casa é outra e nem sequer se parece com aquela. Nem suas pedras são semelhantes às daquela, por mais minerais que sejam.
A casa de meu quintal-país era cheia de maravilhas e fadas, e nela vivi a história que nenhum trancoso escreveu. Hoje são escombros. Demoliram-na as pás da impiedade. De pé restaram apenas os muros dos castelos de areia, concretamente erguidos e firmes.
Perdi-me na geometria dos passos, por palmilhar o chão com as próprias asas. Perdi-me na geografia ilusória daquele quintal sem fim, por mera insensatez.
Perdi-me sobretudo em mim mesmo, nos tortuosos caminhos da solidão, para nunca mais me achar, nem encontrar jamais o caminho de volta, nem quaisquer outros que levem a algum lugar.

A história do quintal pode ter sido apenas sonho? Ou é sonho este momento? Como distinguir um tempo de outro, se no interior da caverna de minha consciência fujo pelos labirintos de mim mesmo?
Meus sonhos eu não os levo a ninguém. Antes, qualquer padre podia me mandar às penitências. Agora os analistas me ouviriam e se enriqueceriam de elementos para suas teorias, se eu tivesse dinheiro. Não dou mais esse prazer aos carrascos, nem vou servir à literatura dos outros. Eu me confesso e analiso todos os dias. Não me penitencio, porque sou vítima. Nem me arranjo curas, porque, se deixar de sonhar assim, terei me matado.
Vivo também o passado. É pouco viver só o presente. O homem é poço onde se mira enquanto mira.

Perdi-me em mim. Nos infinitos corredores desse labirinto de abstrações. Em vão busquei a porta de saída, o exterior de mim, a luz do sol, os outros. (Nem sei se há porta de saída. Talvez eu esteja aprisionado aqui, em mim, no infindável território da solidão. Mas, se entrei, há uma porta. E nela poderia estar a saída.) Em vão lutei nas trevas, tateando paredes, feito cego. No entanto eu via. Ora inscrições, ora insetos, ora nada. Como se lá tivessem estado outras criaturas, meus ancestrais. Como se aquilo fosse cemitério. Cidade subterrânea. O outro lado da vida.

Não busco mais saídas. Convenci-me de que em mim mesmo resido, sou. Perdi o complexo de ovo, feto. Minha casca é meu limite. As paredes da placenta me bastam. Conformei-me com ser criatura inacabada. Resguardo-me do chão de pintos, galinhas, galos. Do chão dos meninos sem razão. Ouvirei o piar de meus irmãos, longe deles. E seu canto. Seu choro.

Eu já falei da menina de meus sonhos? Se não, passo a falar. E começo dizendo que somos fictícios. Não existimos de verdade, nem eu nem ela. Imaginei-a, como ela deve ter me imaginado. Criamo-nos um ao outro.
Por que devemos ter existido de fato? Podemos ter sido apenas personagens de ficção. Nada comprova nossas existências na Terra. Como nos mitos e nas lendas.

Sentado no chão, escavaquei a terra, olhei de novo para o muro e, de repente, apareceu minha menina. Que nome tinha? Nem sei se é possível escrevê-lo. Ela, sim, existia mesmo e parecia uma fada. Seu sorriso nunca se escondia, por mais ausente que estivesse. E como adorava brincar! De ser ela mesma, de se transformar em mil seres diferentes e mágicos. Às vezes, cantora e bailarina, na cadência das nuvens, no rumo do infinito. Desaparecia depressa de diante de meus olhos e eu sossegava e me punha a inventá-la de novo. Partia do nome, aquele nome engraçado e bom de pronunciar. Dava-lhe muita boniteza, como a dela mesmo. Fazia-a rir, toda ela alegria. Convidava-a a brincar, de qualquer brincadeira, ao gosto dela.
Essa menina, de tão eterna, eu a recriei em outras. As reais, as imaginárias, as sonhadas. Os personagens dos sonhos são invenções ou recriações?
Esqueço os instantes fugidios de minha infância. Quero apenas aquela utopia deleitável da menina imaginária. Não, ela existia mesmo. Morava noutra rua, numa casa grande e azul. Devia ter mãe e pai e estudar na cartilha. Ou só vinha de férias, de outras terras, de bem longe, do mar, do sertão?
Pensar nela me dava prazer. Pensar muito, até esquecê-la, tê-la apagada de meus olhos. Esquecia-a, perdia-a de vista. E punha-me de novo a procurá-la pela casa, pelo quintal. Debruçava-me à janela, olhos inquietos a subir e descer a rua. Aguardava-a descida do sol, e chorava. Esperava-a descida da lua, das estrelas, e sonhava. Vãs esperas e buscas! Não a tendo de volta, confundia-a com outras. Surgiam na porta da rua duas pernas e um vestido que aos poucos me danavam. Aparecia no meio da praça um sorriso que logo se fazia careta estranha. Nenhuma era ela, e eu chutava a bola de meia para o céu, com força e raiva. A bola subia, não voltava mais, caía nos telhados, desaparecia.
A menina olhava para mim e ria. Sem jeito, eu também ria e olhava para ela, sua beleza. Como tinha aparecido ali no quintal? Só podia ser a menina das aparições, porque só ela aparecia assim de repente, sem aviso, quando eu menos esperava. Teria pulado o muro, vindo dos quintais vizinhos? Ou já vivia no meu quintal, escondida no meio das bananeiras, do mato, abandonada pela mãe, pela madrasta, castigada por não querer estudar, desobediência, má-criação? Tudo ela negou. E, aborrecida, ameaçou: Se eu continuasse cheio de perguntas, ia embora. Pedi que ficasse. Andava perdido, não sabia mais o caminho de casa, precisava de companhia. Chamou-me de besta. E riu. Compreendi: não queria me ofender; antes, me proteger. Aproximei-me mais dela, confiante e sem vergonha de me mostrar medroso. Mamãe podia me castigar, se eu não voltasse logo. A menina me olhou demoradamente. Também precisava ir para casa. E, súbito, desapareceu, como as fadas dos bosques. Olhei para todos os lados. Lagartixas me espiavam com olhos sutis. Entre as folhas das árvores avistei pedacinho da parede da sentina.
Que me restava fazer? Esperar infinitamente por ela? Ou buscá-la noutras latitudes, além das fronteiras daquele mundo feito de solidão, lodo e sombras?
Decidido, saltei o esgoto – como se atravessasse, de uma só passada, o Rubicão, e, vitorioso, alcançasse a Eternidade.
Chegando ao pequeno corredor, nem sequer desviei a vista para a sentina e o banheiro. Não, ela não se esconderia ali.
Na cozinha, mamãe atiçava o fogo do fogão. Nem me viu voar. Fui direto ao quarto de dormir e me escondi detrás do guarda-roupa. Sentei-me no chão frio e pensei seguidamente nela, na menina.
E ainda penso, porque a busco sempre.

Aquele tempo da menina bonita, visão de meus olhos sonolentos, do quintal e suas fruteiras, é minha obsessão. Naquela época amanhecia de repente, tivesse sido noite ou dia claro, e eu corria ao terreiro para ver o sol. Minha mãe vivia sempre na cozinha, a abanar as brasas debaixo da trempe, e meu pai não parava de chegar e sair. Os galos cantavam engrossando o pescoço e as galinhas se arrepiavam e fugiam. E tudo em mim eram lembranças e uma vontade danada de falar e contar histórias engraçadas. Calava-me, ria sozinho, e me punha a desenrolar o carretel enovelado dentro dos olhos. Enrabichava-me a minha mãe e lhe falava de estripulias em cima dum cavalo branco muito gordo. Foi sonho, meu filho. Mas os bichos existiam de verdade, eu existia, estava ali vendo a tapioca dar pulo mortal e cair estirada no meio da caçarola.
Nós existíamos e vivíamos a mesma vida.

Como é fácil enganar com palavras! Quem perceberá o quanto estou iludindo? Ou estarei me enganando com palavras? Não, não existe engano, ilusão. Nós é que estamos inaptos para as sutilezas.
Ninguém pode escapar ao sortilégio das palavras que inventa. No entanto poucos são os inventores de palavras e sonhos.
A história de cada um de nós é a história que inventamos. Nós nos mitificamos a cada sonho, a cada delírio, a cada descida ao poço da consciência.
Há tempos sonhei com uma menina-moça. Seria a mesma menina do quintal? Terá se dado um reencontro no plano do sonho, depois de tantas buscas? E, se a achei (agora não é possível o verbo inventar), buscava e busco a Paixão. Toda viagem é a busca da Paixão. É sem sentido falar-se de passado no plano da consciência. Não temos buscas e paixões. Somos Busca e Paixão.

Apesar de tudo, agora me sinto quase feliz. Como se tivesse acabado de encontrar a solidão. Não a da casa abandonada, com teias de aranha, suja, empoeirada. Não a dos cemitérios, dos jazigos, das lousas frias. Não a das selvas, das florestas, dos matagais. Não a solidão da fantasia. Mas a solidão que busquei quando menino.
Estou quase feliz. Como se estivesse de partida para o paraíso. O paraíso sou eu mesmo. Eu e meu passado. Como se fosse uma fotografia. Ao fundo o muro manchado. Uma lagartixa passeia em seu dorso. Aos lados, ervas, bananeiras e seus cachos pesados. Ao centro, meus olhos de menino – e toda a felicidade do mundo.
Então nada existia, a não ser o riso e a vida.

(continua)

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

Poisson au poison (Anderson Braga Horta)



Dois potezinhos, um amarelo e outro azul. Num deles estava a morte. Um único engano e ele faria, inapelavelmente, sua última viagem.

Entressorria, no ônibus, pensando em como lhe daria a boa nova. Diria tudo de repente? aos poucos? Ora, podia combinar os dois modos. O choque seria a antecipação inesperada de seu regresso. A outra surpresa, bem mais agradável, poderia ser primeiro insinuada, e, depois, destilada lentamente.
Estirou-se na poltrona e, cismarento, descansou a cabeça nas mãos cruzadas atrás. Enfim, um pouco de sossego! A estabilidade, após tantos anos de viagens e viagens, canseira e desconforto. Não mais noites indormidas em sórdidos hotéis; não mais apertos, poeira e solavancos de todas as conduções do interior; não mais o terno barato, o sapato furado, — não mais essa miséria de vida. Doravante, de segunda a sábado, esperá-lo-ia às tardes o calor aconchegante do lar... Domingos nunca mais dissipados em bares e prostíbulos...
— "Doce lar!"— sorriu, amargo, de olhos quase fechando.
Antegozava o sabor da surpresa.
— "Um modelo de esposa. Ela merece isto."
Sorria.

***

Ela esforçava-se por demonstrar alegria.
— "Uma incerta" — pensava. "E o cretino espera que eu me derreta em sorrisos."
Sorriu, efetivamente. E, beijando-o nos lábios, com ódio, murmurou:
— Que bom você ter voltado mais cedo.
Lembrava-se que teria de telefonar, discretamente, desmarcando .tudo. Inventaria uma desculpa e telefonaria nas barbas do marido, que não manifestava a menor intenção de afastar-se. Estava certa de que ele a olharia daquele jeito estranho, meio de lado, como de propósito para envenenar-lhe a alma. Desconfiaria? Saberia já de tudo? Ora, não, por Deus! Ele sempre tão bom, tão estúpido...
— Alô! é D. Rosinha? Olhe, não posso provar o vestido hoje. Meu marido acaba de chegar de viagem... Logo que puder, telefono. Certo? Um abraço...
Bem, pelo menos ele nem a fitara. Parecia preocupadíssimo em bebericar aquela maldita batida de limão. Deus! aparecesse meia hora mais tarde!...
— Sabe, querida? — disse, afinal. — Tantos anos de casados, e nunca tivemos verdadeiramente um lar...
Sabressaltou-se. Que quereria significar com essas palavras?
— Não temos tido um lar, é isto — repetiu ele. — Eu sempre fora, e nem ao menos uma criança para alegrar a casa e lhe fazer companhia.
— Ora, você sabe muito bem que eu nunca desejei ter filhos.
— Não a estou culpando. Mas... Bem, você compreende...
— Não, Roberto. Francamente, não compreendo
— Querida! Não se amofine sem razão. Estou apenas tentando lhe dar uma bela notícia. De hoje em diante tudo mudará para nós. Começaremos de novo.
— Não me diga que você pretende mudar-se outra vez. Eu...
— Não, não é o que você pensa. Vou me mudar, sim, mas para cá.
— Não estou entendendo.
— Fui promovido, querida. Acabaram-se as viagens. Serviço burocrático, só. As cadeiras estofadas, o ar refrigerado do escritório... Não saio mais de Brasília. É quase uma aposentadoria! A partir deste momento, sou todo seu, todos os dias...
A mulher reteve a respiração. Crispou-se-lhe a face, quase traindo a sua decepção, o seu ódio. Mas da garganta lhe saltou, felino, um gritinho histérico:
— Oh! que bom! que bom, meu amor!

***

— "Preciso matá-lo" — pensou.
Guardava habitualmente açúcar num pote azul e veneno ("para matar rato", se ele descobrisse) num amarelo. Por muito tempo esperara que o marido se envenenasse acidentalmente. Mas o diabo do homem tinha boa cabeça. Guardara a fórmula "pote azul = açúcar" e nunca se equivocava. Também jamais se preocupou em perguntar o que havia no pote amarelo:
Até então, ela tivera escrúpulo — ou receio — de agir diretamente. Agora, teria de precipitar a coisa.
— "Cretino!" — gritava intimamente. — "Com certeza pensa que estou disposta a acabar meus dias apodrecendo a seu lado!"
Acendeu as lâmpadas, pensativa.
— Amor — ciciou. — Amanhã cedo, enquanto você descansa, vou ao mercado. Quero preparar um almoço especial para você...

***

Manhã. Diante dos dois potezinhos, ele sorria, olhando ora um, ora outro.
— "Azul e amare]o. Belas cores. O amarelo ou o azul? Que confusão, Senhor! Em qual deles?"
A testa interrogativamente franzida, comprazia-se nesse jogo irônico, solitário. Sentia-se novamente criança, a fazer caretas diante do espelho. Qual a mais terrível?
— "Um modelo de esposa... Ah! Imaginava então que eu não descobriria? E me supunha capaz de cair em tão ingênua ratoeira... Não faz mal. Tudo se encaminha como eu pensava.. O caçador cairá na própria armadilha."

***

— “Filé de peixe ao molho de camarão. Seu prato favorito. E não haverá estranheza por eu não comer: ele sabe que não suporto peixe. Além do mais, estou terrivelmente indisposta..."
Ao temperá-lo, bem picante (ele gostava, e a pimenta distrairia .o paladar de algum sabor porventura estranho), ouvia-o já dizer, como de hábito quando elogiava qualquer coisa sua:
— Cláudia, este peixe está diabólico!
— "Diabólico!" — sorriu ela, pegando um dos potezinhos. Uma boa dose de arsênico e ficaria um bocado próprio o adjetivo. — "Ah! querido, ainda lhe resta fazer uma viagem. Uma só..."

***

Ele comeu o peixe sem demonstrar estranheza, apesar do sabor diferente. ("Não vamos contrariá-la antes do café..."). E não esqueceu o elogio habitual:
Cláudia sorriu docemente.
— Não quer o café, querido? — perguntou, enquanto atirava na xícara umas colherinhas do pote azul.
— Não, tome-o você. Não agüento mais nada.
— Também não quero. Estou terrivelmente indisposta...
Ele encarou-a, surpreso. Não, não havia desconfiança em sua fisionomia. Todos os gestos da mulher exalavam serenidade e doçura. Deu de ombros — afinal, não havia pressa — e foi fazer a sesta. Pouco depois, começou a sentir-se mal.
Levantou-se, indeciso. Olhou mais demoradamente a esposa; desconfiado...
— "Será...?"
Mas nada parecia ter-se alterado, a mesma impressão de segurança e meiguice vinha de toda ela.
— Que foi, amor?
— Acho que não estou muito bom, sabe? Estou...
— Não se preocupe, filhinho. Deve ser o seu grande simpático novamente.
— O grande antipático! — pôde gracejar.

***

Enfim, não era mesmo para se preocupar. Não houvera sobremesa, recusara o café. Nada a temer, portanto. E os sintomas eram os que sentia tão freqüentemente. Tomou as últimas duas drágeas de um calmante e observou que precisava pedir nova receita ao doutor. Deitou-se e morreu.

***

Já estabelecida como causa mortis uma intoxicação, o comissário deitou olhares suspicazes à viúva, ouvindo-a, interrogada, falar no que fôra o almoço.
— "Então"— monologava — "ela abomina peixe e, apesar disso, não prepara nada diferente para si?"
Podia não ser nada, poderia ter havido mesmo a alegada indisposição. Mas era uma suspeita razoável. Uma vizinha menos discreta insinuara possíveis infidelidades, a firma em que trabalhava o morto dera prontamente todas as informações sobre sua vida funcional. E, como, para o comissário, um policial que se preza devia ter um mínimo de fantasia, pôs-se ele a armar as peças de um provável quebra-cabeça — por sinal, dos mais simples: uma esposa infiel, um marido viajante, a súbita notícia de sua transferência para setor sedentário... Se se tratasse realmente de crime, já estava elucidado.
Voltou a interrogar a viúva.
— Não! joguei tudo fora! — começou ela, visivelmente transtornada.
Mas era tarde: o policial abria a geladeira e retirava as sobras do almoço.
Só então percebeu, aterrorizada, o erro de não ter mesmo dado sumiço no prato. Como pudera ser tão estúpida!
Já não conseguia esconder o nervosismo.
— "Não há dúvida" — disse para si o comissário. — "Que primarismo!"
E à viúva, mordaz:
— Não se preocupe, madame, isto não quer dizer nada. Faz parte da rotina...

***

No dia seguinte, quando tocaram a campainha, Cláudia ainda estava acamada. A expectativa dessa hora quase a enlouquecia. Nada teria comido se as moças.do apartamento de cima não lhe houvessem levado um pequeno lanche de chá e biscoitos. Gostaria de ter tido forças para interromper a espera: o pote amarelo, seria suficiente adicionar umas colheradas ao chá, mesmo perante as vizinhas. Ninguém perceberia. Mas não o pudera. Só lhe restava enfrentar o sarcástico sorriso que certamente depararia ao abrir a porta.
O que encontrou, contudo, foi um sorriso encabulado:
— Boa tarde, minha senhora. Lamento incomodá-la ainda, mas asseguro que é pela última vez.
A resposta veio trêmula:
— Esteja à vontade. Desculpe-me por um minuto só, vou preparar um calmante e volto em seguida.
Foi à cozinha, entornou quase meio vidro de Passiflorine num copo e, diante dos dois potezinhos, hesitou. Deteve~se longamente ante o amarelo, fitando-o desesperada:
— "Neste pote está a minha salvação. Basta um pouquinho. Tudo será rápido..."
Entretanto, com um suspiro de desânimo — "Não, não tenho coragem" — recuou, optando pelo azul. Derramou grande porção sobre o líqüido, mecanicamente, e voltou à sala mexendo o remédio com uma colher.
— Como eu ia dizendo, madame, fizemos a análise e...
— E encontraram o veneno!
— Veneno? Não compreendo. Claro que não! Oh! lamento que a senhora se ofendesse com o nosso procedimento. Nós...
Cláudia estacou, incrédula. Mal ouviu as explicações do policial. Balbuciou qualquer coisa confusa e afinal sorriu palidamente, sob uma onda de alívio. Tomou de um só gole o conteúdo do copo.
— O camarão é que estava estragado — continuava o comissário. Não se pode confiar em camarão, principalmente quando vem de tão longe... Mas palavra, dona — concluiu, sob o olhar aterrorizado da viúva —, palavra que nunca ouvi falar de molho igual ao seu: estava que era puro açúcar!...

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sábado, 15 de dezembro de 2007

Águas de Badu (Nilto Maciel)



















Moscas voejavam ao redor do cadáver. Choravam filhos e amigos, noras e netos, vizinhos e filhas, genros e netas. A mulher, se chorava, só Deus sabe. Nos olhos do cachorro Chué, no entanto, não se viam lágrimas. Quiçá ainda não soubesse do fim do seu protetor. Eu não chorei. Para que chorar, se o choro não conta histórias? Cabia a mim acompanhar os últimos momentos daquele ser entre os vivos. Retribuir, de alguma forma, o muito que dele ouvi. Pois de sua boca saíram dezenas e dezenas de crônicas sertanejas, todas elas por mim transformadas em contos. Consolar os seus parentes e, até, pagar as despesas do sepultamento. Antes, porém, devíamos velar o corpo mirrado do velho Balduino. Não, Balduino não, Badu, como gostava de ser chamado. Quem quisesse ser seu amigo não o chamasse pelo nome de batismo. Isso vinha desde os tempos de rapaz. Ora, se até o major Saulo o tratava por Badu, não ia permitir cerimônias de outros.
De vez em quando alguém espantava moscas da cara enrugada do finado. E dos olhos cerrados, da boca murcha, da testa franzida. Badu parecia imagem de museu. Como se estivesse apenas a dormir. A qualquer momento se sentaria na rede, pediria uma caneca d’água e passaria a contar histórias. No sertão... Não, eu não tinha vontade de chorar. Talvez porque acostumado a fins e fins e a ver nele, o velho vaqueiro, apenas mais um homem que conheci e de quem colhi histórias.
Cerca de sessenta anos atrás vivia Badu na Fazenda da Tampa, vale do Rio das Velhas, Minas Gerais. Montava cavalo e cuidava de gado, como tantos outros nas terras do major Saulo. Quem sabe fosse melhor dizer “viveu”, “montou” e “cuidou”, porque apenas dois meses durou sua estada naquele lugar, de dezembro a janeiro. Tempo suficiente para conhecer Ritinha e por ela se engraçar. Para Ritinha dele se aproximar e desprezar Silvino. Para Silvino se encher de ódio e prometer vingança. Pois esse Silvino passou, então, a dizer a uns e a outros que não tardava a hora de meter uma faca nos peitos do rival. Pretendia matá-lo na primeira oportunidade. Sangrá-lo como se sangra porco. Badu, no entanto, não queria briga. Nada de porfiar com o sujeito.
Conheci o antigo vaqueiro por acaso. Entrei num boteco do Pirambu, em Fortaleza, perto da praia, para matar a sede. Pedi água mineral. Três ou quatro velhos conversavam na calçada, sentados em tamboretes. O sotaque de um deles me pareceu estranho. Demorei-me com a água, a escutar a conversa. Ao perceber minha curiosidade, ele se calou. O que tanto eu assuntava? Pedi mais uma garrafinha. Ele falava de um burrinho heróico que atravessava uma correnteza, em noite escura. Dele mesmo nada dizia. Não se pabulava de nada. Na história só havia um herói: o burro. Dias depois pude saber o motivo do seu receio. Eu talvez fosse espião do major Saulo ou de quem o tivesse sucedido no comando da fazenda. Aquilo podia ser uma arapuca. Se não me conhecia, não podia confiar em mim.
Tudo mudou quando me apresentei como professor, pesquisador, jornalista, folclorista, o levei ao meu apartamento, apresentei-lhe minha família, meus livros, escancarei minha vida. Do alto do edifício, no Meireles, mostrei-lhe o mar. A princípio, como se em êxtase, ele não disse uma só palavra, olhos afundados nas águas azuis. Ou verdes. Nos verdes mares bravios. Súbito, sem piscar, sem tirar os olhos da vasta pintura, e como se eu fosse sábio, quis saber de onde vinham e para onde iam tantas águas. Tentei uma explicação científica. Ele então compreendeu que eu não sabia tudo. Aquilo era muito bonito, mas preferia o chão, o sertão. O homem não fora feito para as alturas. Quem vivia pendurado em galhos era macaco. E nas águas viviam os peixes. Perguntei se queria ouvir umas histórias. Só se fossem de matutos. Serviram sorvete de graviola. Corri às minhas gavetas, trouxe uns cadernos e passei à leitura. Às vezes ria; outras, se entristecia. E não deixava de mirar o mar.
Com ele saí a passeios pela cidade, como se turistas fôssemos. Caminhamos pelo calçadão da Beira-Mar, pela Ponte dos Ingleses, fomos à Barra do Ceará, ao Mucuripe, à Praça do Ferreira, vasculhamos toda a cidade. Ele não conhecia esses lugares ou os conhecia de relance. Um dia, ao voltarmos de um desses passeios, estacionei o carro diante de sua casinha e me despedia, quando ele me convidou a conhecer sua família. Mandou eu me abancar. Mostrou um banquinho de madeira. Deixou a sala e entrou pela casa. Morava com um filho, a nora e alguns netos. Falou dos outros familiares, de onde moravam, do que faziam. E se pôs a contar a sua vida ou parte dela. Sobretudo a partir do dia da grande desgraça acontecida num rio, quando ele, bêbado, montado num burro velho, em fins de vida, se salvou da correnteza, enquanto os seus companheiros de jornada morreram afogados. Cavaleiros e cavalos arrastados pelas águas. A custo o burrico alcançou a casa da fazenda. Mais morto do que vivo. Badu encharcado de água e cachaça. Apeou e se recostou na parede. Atordoado, com medo, sem rumo, resolveu arribar, fugir daquele lugar o mais cedo possível. Montou de novo o animal e enveredou para o norte. Mas o burrico, de tão velho, não suportou tanto peso, tantas veredas. Diante do cadáver, Badu chorou. Retirou o cabresto, porque disso ele não carecia mais. Nunca mais. Beijou-lhe a testa, abraçou-lhe o pescoço, ajoelhou-se diante do corpo e agradeceu por estar vivo. Abriu uma cova rasa e nela o enterrou. Fez uma cruz de paus, fincou-a sobre a terra e seguiu em frente. Sempre a pé. Pois desse dia em diante nunca mais montou burro ou cavalo. Fez a jura. Andou por veredas, matas, dias e noites de fome e sede. Para sobreviver, topava qualquer serviço. E assim aprendeu de quase tudo um pouco. Um dia cavava cacimba, uma semana apanhava feijão, um mês cuidava de porcos. Areou-se todo o tempo, sem saber se ia para cima ou para baixo. Meteu-se nas brenhas, sem avistar vivalma durante dias e noites. E, por acaso, se viu diante de muitas águas. Seria o Velho Chico? Esperou, esperou, até avistar um barco. Mas dessas peripécias ele não quis falar muito. Sem saber onde se achava, sem atinar com geografias, fugia do passado e de Minas. Queria atravessar o São Francisco e seguir em frente.
Cerca de um ano depois alcançava o sul do Ceará. Entretanto as histórias de cangaço e de lutas entre grupos políticos o empurraram do Cariri. Não queria conhecer padre Cícero? Não, não e não. Queria conhecer sossego. E se enfiou de novo pelo sertão, até alcançar a serra de Baturité. Arranchou-se num sítio nas proximidades de Mulungu. Precisava de descanso e, se não fosse pedir demais, um pouco de comida. Falava quase nada, com receio de se enrascar nas conversas. Arranjou serviço de capinar. E outros e outros serviços. Trabalhava do nascer do sol ao escurecer. Sempre calado e obediente. Precisava se aprumar na vida e esquecer pelo menos aquele dia de mortes. E conheceu a cabocla Joana, com quem se casou um ano depois. Disso também contou pouco. O tempo passava devagar. Às vezes pensava em voltar, rever os pais e irmãos. Com certeza o tinham por morto. Ora, e se não conseguisse acertar o caminho de volta? Melhor mesmo virar cearense de vez e esquecer o passado. Aprendia aos poucos a fala do povo da serra. Nascido o primeiro filho, perdeu a vontade de voltar. Joana não fazia perguntas. Só falava do ontem dela. E do hoje do menino. Badu gostava disso. O tempo andava lerdo. Outros meninos nasciam e cresciam. Joana não fazia perguntas. Só falava de seus meninos, rapazes e moças. Badu gostava muito disso. E criava bodes, cabras, galinhas, porcos. O tempo corria. O primeiro filho inventou de morar na capital. Queria ser chofer. Na serra não se viam caminhões nem jipes. Só em Mulungu, Baturité, Guaramiranga. Um tempo Badu olhou para trás, para o sítio, para os matos, para a mulher e não viu mais os filhos. Todos tinham arribado para Fortaleza. Um dia o mais velho chegou com jeito de lorde. Queria levar pai e mãe para a cidade. E levou.
Esses enredos se alongaram, sempre pacíficos, sem correntezas e sem secas. Para contar tudo, porém, seriam precisos dias e noites de fala. Até o último dia, até aquele momento de despedida: Badu deitado numa rede, sem vida. Seu povo triste, choroso. O cachorro Chué a vadiar entre as pernas das pessoas. Badu, por que esse nome Chué? O velho não ria nunca, mas sabia fazer rirem os outros. Mais chué do que este vira-lata só o mais chué dos cachorros. E Mais Chué existe? Devia existir. Em razão da idade, quem sabe, o velho vaqueiro muitas vezes confundia a natureza do animal com a de outro. Com voz sumida, chamava Chué de “meu burrinho”. Num desses momentos de afago ouvi – creiam – a promessa: “Chué, não vou deixar ninguém montar você”.
E o burrinho pedrês? O vaqueiro pouco sabia dele. E, se sabia muito, pouco dele falou. Não lhe lembrava o nome nem as características. Recordava tão-somente a sua bravura naquele dia de angústia e mortes. E quiçá nem lembrasse muito, porque a cachaça escureceu-lhe a mente durante algum tempo.
Parecia coisa do destino ou o avesso dele. Pois quem imaginava que um jegue velho, miúdo, magricela, quase cego, pudesse salvar uma vida? Que um homem bêbado sobrevivesse à travessia de um rio em rebuliço, após a chuva? E que cavalos bonitos, de estirpe, naufragassem, como pedras, e com eles levassem tantos vaqueiros valentes no roldão das águas?
A partir daquele dia Badu nunca mais foi o mesmo. Nunca mais tomou suas bicadas. Parou de beber, numa ojeriza sem par de aguardente. Não por isso, passou a ter sonhos esquisitos. Num deles, vagava no mar montado num burro. As ondas vinham, gigantescas, e os jogavam para o alto. Logo não havia mais burro. Badu montava, então, enorme peixe, porventura um peixe-boi. E mergulhava no abismo. Fazia frio, faltava ar. No fim do pesadelo, Badu não sabia mais de burro nem de peixe: agarrava-se a um pedaço de pau, um galho de árvore. E a correnteza os levava para os confins do mundo. Ancorava numa ilha. No entanto, cobras na praia não o deixavam pisar a terra.
Tudo começou quando o major determinou o ajuntamento de uns bois para serem levados à estação do arraial distante quatro léguas da fazenda, onde seriam embarcados em trens. Coisa corriqueira. Entretanto, o dia começou com chuva. Não fazia mal. Precisava, para tanto, de todos os vaqueiros, dos onze da fazenda. Mas faltava um cavalo. Sendo assim, que o burrico servisse de montaria a um dos homens. E a viagem se começou. Badu num velho poldro pampa; os outros nos seus cavalos e no burro; o major no seu cardão. Não fosse tanto boi para tão poucos cavalos, talvez Saulo não se lembrasse do jumento. Não fossem de Ritinha o amor e de Silvino o ódio, possivelmente Badu não tivesse bebido tanta cachaça. Não fosse a bebedeira, certamente Badu tivesse voltado no velho poldro. E assim teria morrido como tantos outros levados pela correnteza.
Deixados os bois nos trens, despediu-se o fazendeiro dos vaqueiros. Precisava pernoitar no arraial. Para seu lugar nomeou um deles. Conduzisse os homens em paz. Ficasse de olho em Silvino e Badu. Impedisse briga, discussão, muita conversa. Não queria saber de morte. Voltassem para a fazenda. Antes, porém, foram os homens comer e beber. Após o que, cada um pegou a sua montaria. Menos o vaqueiro do burrinho, que se engraçou do poldro de Badu. Restou o jegue, a um canto, solitário. Bêbado demais, o último a chegar ao telheiro onde os cavalos descansavam, Badu se irritou. Como voltar naquele burro sem serventia? Ora, se não quisesse o muar, que seguisse a pé. Passou a perna sobre o animal, equilibrou-se como pôde e saiu no encalço dos outros. Tudo escuro ao redor. E a chuvinha insistente. No fim da rua, os cavaleiros se haviam ajuntado para confabular sobre a situação. Quem sabe fosse melhor esperar o amanhecer. Ou o estiar. Se o córrego tivesse enchido, seria perigoso tentar atravessá-lo. Ao deixar para trás os cavalos, no passo lerdo do jumento, Badu ouviu risadas. Caçoavam dele. Não se importou com aquilo. Queria voltar para a fazenda e dormir. Mesmo debaixo de chuva e escuridão. E se deixou levar pelo animal. Seguiram-no os cavaleiros pelos caminhos molhados, aos pares. E a chuva engrossou. Pouco a pouco, tudo ao redor se transformou num aguaceiro medonho. Um balcedo só, as patas dos animais afundavam, enquanto o breu da noite envolvia o mundo.
Na sala do casebre o choro ia e voltava. Lamentavam a morte inesperada do velho Badu. Tão cheio de saúde! Deus o tivesse em bom lugar. Chué entrava e saía, desconfiado da novidade. O seu protetor jazia numa rede, calado e inerte. Nunca mais o chamaria para passear. Nunca mais passaria a mão em sua cabeça. Badu, você gosta muito de Chué? Ora se gostava. Como não gostar dos brutos, se dos homens só recebiam maldades em troca de trabalho, companhia, amizade? Por acaso algum homem é capaz de servir de montaria? De conduzir um homem bêbado de um lado a outro do rio? Chué passava horas aos pés de Badu. Ouvia-lhe histórias de burros, cavalos e bois, compenetrado, sisudo, sem um riso de deboche.
Naquela noite de breu, depois de muita chuva, o mundo parecia um alagadiço só. Mas os homens precisavam voltar para a fazenda e não havia onde se arrancharem. Galoparam, galoparam e, ao se aproximarem da margem do córrego, sofrearam os cavalos. As águas tinham inundado tudo. Então deixassem o burro ir à frente. Se conseguisse atravessar o rio... “Burro não se mete em lugar de onde ele não sabe sair!” Como se não temesse as águas, a correnteza, a escuridão, o burro meteu as patas no córrego. Chapinhou, chapinhou, alcançou o meio, afundou-se até a barriga, seguiu. Badu agarrava-se ao seu pescoço, equilibrava-se. Os cavalos se viram obrigados pelos vaqueiros a tentar a travessia. As águas, porém, aumentavam de volume e tomavam mais ímpeto.
Encerradas as rezas, as mulheres se retiraram para a cozinha. Os homens sentiram vontade de beber uns goles. A meninada andava há muito pela calçada, a correr e rir. Apenas Chué permaneceu na sala. Súbito deu alguns passos e se postou ao lado da rede. Olhou para os lados, retesou as orelhas, ergueu-se, levantou as patas e as pousou no peito do morto. A rede balançou. Badu se despedia da vida como se ninado. Despedia-se de nós, parentes e amigos, daqueles que gostavam de ouvir suas histórias do sertão, de bichos e gentes. Sua derradeira história ele me contou numa tarde muito quente. À noite, dormindo, ele se finou. Parece ter sido um sonho. Ou invenção. Ele via do alto, como se flutuasse nas nuvens, as águas saindo do mar pelos caminhos dos rios e correndo para o sertão. Ao mesmo tempo, ele caminhava pelo chão, ao lado de um burrinho que às vezes latia. Molhava os pés na beira do rio, banhavam-se, alegres como meninos em brincadeira.
Um menino entrou no recinto e viu o cão a lamber o rosto de Badu. Mas não lhe pareceu um cão como os outros. Semelhava, antes, outro tipo de animal. Talvez um burrinho. Pois nas faces do defunto aflorava um tímido sorriso, como se agradecesse o carinho. Chué se pôs a relinchar baixinho, como se dissesse ao amigo palavras de consolação. Ou como se rezasse e dele se despedisse. Como se dissesse: eu fiz o que pude, cumpri o meu dever. Cumprimos nossas sinas. O menino levou as mãos à cabeça e quis gritar. O cachorro lambeu de novo o rosto do homem e saiu cabisbaixo no rumo da rua. E Badu voltou a ser morto.
Fortaleza, junho/julho de 2005.

(Recriação de “O burrinho pedrês”, de Guimarães Rosa, para Quartas Histórias – Contos Baseados em Narrativas de Guimarães Rosa, org. por Rinaldo de Fernandes (Ed. Garamond, Rio de Janeiro, 2006)

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

O último voo de Rapina (Nilto Maciel)


















(Criança Geopolítica Assistindo ao Nascimento do Novo Homem - Salvador Dali -1943)


Todos os habitantes de Anipar voaram durante toda a noite passada. No chão, aves pernaltas cantavam sonatas. Tudo parecia sereno, até o mar e seus peixes. No bico de urubus viam-se restos de vísceras de dinossauros. Os últimos sonidos das pedras ecoaram. Um lobo vermelho passeava a resmungar. Estertoravam leões e seus filhotes, mortas as leoas. De madrugada, a primeira pessoa-ave se estatelou. Muito sangue jorrou. As penas das aves se tingiram de vermelho e houve alvoroço no sítio. Famintos, os leões e os urubus se puseram em gritaria. Rapina acordou tarde. E se iniciou a tempestade nos campos de Anipar. Não ficou pedra sobre pedra.
Em Anipar há pouco mais de vinte anos viviam sete famílias. Os chefes dessas famílias descendiam de Serope e Tisuri. Não há notícia da origem do casal. Possivelmente salvos de um naufrágio. Os filhos nasceram na seguinte ordem: Peri, Rosu, Seti, Rose, Suti, Riti, Peso, Tise, Epore, Irusi, Pores, Rusit, Peroe e Risui. Segundo o rei e a rainha, o número de letras dos nomes dos filhos deve ser sempre inferior ao do pai ou da mãe. Formaram-se sete casais, ao longo de sete anos. Casaram-se, sob as bênçãos da rainha- sacerdotisa e do rei-sacerdote, ano após ano, a partir do 14° ano do primogênito Peri, que desposou Rosu. Há pouco mais de vinte anos as sete famílias haviam gerado exatamente 49 filhos.
Rapina apareceu do nada, para espanto da tribo de Serope e Tisuri. Sobrevoou os campos e as casas durante três dias e três noites, para finalmente pousar ao meio-dia do terceiro dia. Suas asas reluziam e de seu bico agudo despontou uma serpente. As crianças corriam, gritavam, choravam, buscavam esconderijos. Os mais velhos armavam-se de pedras e paus. No entanto, a ave se pôs a cantar em tão alto volume de voz que as árvores balançavam, como numa tempestade, e do chão se evolava uma poeira grossa. Ensurdecidos, homens e mulheres se prostraram e se puseram a rezar em voz alta, pedindo clemência ao estranho ser.
Imediatamente após o primeiro cantar de Rapina, toda a tribo caiu num profundo sono e dormiu durante três dias e três noites. Tiveram sonhos horríveis e fantásticos. Contados em voz alta, por ordem Dela, coube ao mais jovem habitante de Anipar anotar um a um os sonhos. Seria o Livro Sagrado da tribo. As tábuas, a tinta e os pincéis surgiram num átimo, a uma ordem da ave. O primeiro a narrar o sonho deveria ser o rei.

(O sonho de Serope) Súbito um trovão. Serope olhou para o céu. Aves voavam espantadas, sem rumo, aos pios. O homem ergueu as mãos, em prece. Gritavam, pediam socorro. Voltou os olhos para a terra: uma fenda se formava aos seus pés. O chão se rachava, se dividia em duas partes. De um lado, ele; do outro, sua gente. Imaginava dar um salto e alcançar o outro lado do abismo. Impossível. As duas bandas de terra se separavam aos poucos e nenhum homem conseguiria, de um salto, passar de um lado para o outro. Precisaria voar. A fenda se estendia cada vez mais. Até que Serope não conseguia mais ver a outra margem do mundo.
Rapina pediu silêncio. Antes do próximo sonho queria falar de asas e vôos. As crianças se agitaram e se aproximaram dela. A ave chamou-lhes de anjos. Ao redor das cabeças dos habitantes de Anipar rodopiavam insetos. Uma revoada de pássaros cobriu o sítio. Assustaram-se galinhas, avestruzes, perus e outras aves, numa algazarra sem fim. Afugentadas das cavernas, miríades de morcegos cobriram as sombras dos homens. Rapina sorria. Costumava realizar vôos cegos pelos confins do mundo. Nunca desistissem de voar, de se movimentar no ar. Sonhassem sempre com o infinito. Voassem alto.

(O sonho de Tirusi) Alvoroço na aldeia. Tisuri havia sumido. Provavelmente engolido por um monstro, pela boca da Terra. Serope ia e vinha pelo sítio, aos gritos de socorro. Corria para lá e para cá. Ensandecida, escorregava e caía à beira do abismo. Tentava agarrar-se às pedras, aos arbustos. Tudo em vão. Perdidas as forças, tragava-a a goela negra do Nada. E descia vertiginosamente. Para seu alívio, avistava o marido, também em plena queda. Abraçavam-se no ar.
Rapina passeou pelo palco e mais uma vez se dispôs a falar. Desta vez de abismos. As crianças se acercaram dela. Adultos pediram calma. Sentassem-se todos. Onde começava e onde acabava a Terra? Seria uma reta, um quadrado, um círculo? À beira dos precipícios não havia normas. O pó das pedras oscilava entre o efêmero e o eterno. Um leão rugia longe. Um rato esgueirou-se entre as rochas à retaguarda de Rapina.

(O sonho de Peri) Primogênito da tribo, Peri falava aos seus irmãos. O sumiço de seus pais lhe dava o direito de assumir o comando da nação. Mais falava, mais se agigantava. Os dedos alcançaram o tamanho de uma pessoa. Assustados, os animais fugiram para o mato. Os súditos, no entanto, permaneciam calmos. Peri prometia descobrir um jeito de dar a todos o tamanho de gigantes. Pronunciassem palavras mágicas. Houve gritaria: quais as palavras mágicas? Peri ergueu os braços, em busca de inspiração, de conhecimento. Gritassem o nome de Serope, o pai de todos. Gritaram, a um só tempo, a palavra mágica. E se deu o milagre: todos se puseram a crescer, enquanto Peri voltava ao tamanho anterior.
Após um longo bater de asas, Rapina se pôs a falar de gigantes. Conhecia a terra dos gigantes. Os animais de lá, no entanto, não pareciam diferentes dos demais. Os bebês nasciam do tamanho de elefantes adultos. O choro deles espantava as feras e fazia tremerem árvores e chão. Quando dois gigantes se punham a brigar, os outros, principalmente mulheres e crianças, choravam e se retiravam para muito longe do palco da contenda. Um dos brigadores arrancava uma árvore como se despegasse um arbusto e a arremessava contra seu adversário. Rochas enormes eram atiradas. Ao final, feridos, cansados, os dois caíam. Alguns não suportavam os ferimentos e morriam.

(0 sonho de Rosu) Ao ver Peri encolher, enquanto os outros cresciam, Rosu o abraçou, aos prantos. E se ele encolhesse tanto, a ponto de virar nada, desaparecer? Desesperada, soprou-lhe nos ouvidos. Ele gritou de dor. Não, não queria ensurdecer. Desse-lhe um beijo prolongado. Mostrava-lhe a boca, os lábios. No entanto, em vez de sentir desejo de beijá-lo, Rosu sentia asco do marido, porque de sua boca emergiam larvas e insetos. Ele se debatia, no chão, gritava, chorava, pedia socorro. Subitamente saltaram-lhe das entranhas sapos, cobras e lagartos. E Peri se sentiu aliviado e deixou de decrescer.
Rapina impediu o prosseguimento das narrações de sonhos. Precisava falar dos seres nauseabundos. Muitos engolem seres sujos, vindos da podridão. Alguns permanecem aparentemente limpos, apesar disso. Catou-se com o bico, urinou e defecou diante da platéia. As crianças riram. Ensinar-lhes-ia como evitar a náusea e o vômito. Cada um catasse, no mato próximo, quaisquer insetos, baratas, joaninhas ou outros animais pequenos. Chupassem-nos e depois comessem-nos aos poucos. Ao sentirem os primeiros indícios de náusea, olhassem para o céu. Fosse o Sol uma barata amarela perdida na boca do Espaço, seria a Lua uma joaninha dourada.

(O sonho de Seti) Ventos fortes e contínuos varriam a Terra. As pessoas se agarravam aos troncos das árvores, às rochas, buscavam refúgio em cavernas. Seti comandava a salvação da tribo. Somente ventos amigos poderiam afugentar os ventos inimigos. Todos, pois, a postos na tarefa de criar ventos amigos. Soprassem com todos as forças. Afastassem os ventos inimigos. E todos se puseram a soprar. Uns se cansavam logo e caíam exaustos. Os menos cansados alentavam-nos com água fria. A idéia de agigantarem-se tomava novo alento. Quanto mais corpulentos, mais fortes ventos produziriam. Chamassem Peri. Somente ele conhecia a arte do agigantamento. No entanto, Peri havia desaparecido.
Como se despertasse, Rapina agitou a penugem. Não apenas males causavam os ventos. Sem eles não voariam as aves. E voar significava liberdade, novos horizontes, descobertas. Ela, então, por voar, sentia-se dono do próprio nariz, do próprio bico. Sim, as aves de rapina e sua fome, as aves agourentas e suas lendas, os urubus e sua sanha. Conhecia todas elas. No entanto, todas necessárias ao conjunto da vida. Certa feita atacaram-na dezenas de falcões. Um desespero. Quanto mais fugia, rumo ao infinito, furando nuvens, esquivando-se de raios, quanto mais se afastava da atmosfera, mais o grito de morte dos falcões a enlouquecia.

(O sonho de Rose) Deitada junto ao tronco de uma árvore, Rose descansava, olhos fechados, pensamentos em revoada. Ouvia um chiado distante. Talvez as águas do riacho. Súbito uma picada no pescoço. Arregalava os olhos e se espantava: um vampiro sugava-lhe a garganta. E outros, inúmeros vampiros a atacavam. Mordiscavam-lhe os seios, as pernas, o ventre. Tentava livrar-se deles, afugentá-los. Debatia-se, aos gritos, e nada de os morcegos se retirarem. Sangue jorrava em todo o seu corpo. Desesperada, Rose intentava fugir. Estonteada, caía, resvalava no chão, reerguia-se, tombava. Enfurecidos, os seres mais cravavam nas carnes da moça os incisivos pontiagudos.
A ave sorriu. Não inventassem histórias. Contassem apenas os sonhos. E não omitissem nada. Antes da próxima narração, no entanto, queria contar uma historinha: "Já vivi numa gruta. Minha mãe se havia refugiado, com três filhotes, nessa gruta. Fugia dos predadores. Mal imaginava ela o que nos esperava. Ao perceber a presença dos morcegos, quis fugir. Nós, os filhotes, no entanto, já não tínhamos forças para novas aventuras. Mal sabendo voar, enfraquecidos, morreríamos, se buscássemos outros refúgios. Nossa mãe não dormiu durante um dia, olhos pregados em seus filhos. Os morcegos voavam a todo instante. Um deles pousou aos pés dela. Enfurecida, ela o bicou. Ensangüentado, ele voou”. As crianças, boquiabertas, aguardavam um final feliz. “Mais tarde contarei o resto da história. Agora vamos a outro sonho”.

(O sonho de Suti) Toda a tribo dormia. Suti acordava sobressaltado e abria a porta da tenda. Nada conseguia ver. Nenhuma estrela, nenhuma luz. Um nevoeiro forte tornava o mundo escuro. Caminhava sem rumo. Esbarrava num animal aparentemente morto. Parecia um urso. Seguia sem rumo. Ouvia urros e se assustava. Voltava-se e via um bicho gigantesco a se movimentar em sua direção. Buscava grutas onde pudesse se esconder. O urso se aproximava cada vez mais. Suti tentava correr, porém seus pés se atolavam no chão, na lama. Punha-se a gritar e mais a fera se irritava. E lançava aos olhos do homem um monte de lama e gelo.
A meninada pedia mais emoções. Suti teria conseguido se salvar das garras do urso? Rapina impôs silêncio. Quando jovem, muito jovem, num dia de muito nevoeiro, perdeu-se de sua mãe. Pousou num galho coberto de gelo e adormeceu. O vento frio soprava com força. De repente surgiu uma serpente, enroscando-se nos galhos da árvore. Como voar, se as asas se haviam congelado? Pôs-se a bater as asas. Espantado, o réptil fugiu. Uma parte das crianças queria o fim do sonho de Suti, outra preferia a história da ave. Talvez fosse hora do almoço. Caçaram, pescaram, colheram frutos? Sim, duas pacas restavam para a próxima refeição.

(O sonho de Riti) Andava, sozinha, por uma trilha estreita. Gotas de chuva molhavam-lhe o rosto. Um clarão medonho inundou o céu. Raios, muitos raios atingiam árvores. Iniciava-se um incêndio. Riti buscava refúgio sob rochas. O mundo parecia todo iluminado de uma luz intensa, da cor de ouro. Os animais corriam para lá e para cá, amedrontados. Riti saltava ao lombo de um búfalo e gritava para que corresse, fugisse. O animal saía aos pulos, a se esquivar da chuva intermitente de raios. Abria a boca para cima, como se quisesse beber a tempestade. E de fato os raios sumiam, aos poucos, engolidos pelo búfalo. Riti o fazia estacar: "Guarde os raios em sua barriga. Quando precisarmos de fogo e luz, você os terá”.
A grande ave bateu palmas, abriu desmesuradamente o bico e emitiu um grito de fazer tremerem os galhos das árvores. Bastava! Nada de narrações prolongadas. Fossem breves. Quando criança dormia ao ouvir histórias longas. O pai beliscava-lhe a cabeça, a mãe puxava-lhe as penas. Como doía ouvir histórias sem fim! Um garoto pediu licença para falar: queria saber se os búfalos engoliam fogo de verdade. Uma garota se ergueu e gritou: “É por isso que eles babam sem parar”.

(O sonho de Peso) Não era noite e não era dia. A luz do céu se apagava a todo instante, aqui e ali. No chão surgiam sombras de formas variadas: círculos, triângulos, quadriláteros. As crianças brincavam com as sombras. Quem fosse atingido por um círculo viraria estátua. As mulheres fugiam dos triângulos, apavoradas. Os homens mais corajosos pisavam o chão com ira. De ninguém se formava a sombra, como se todos fossem translúcidos. Exceto Peso. A sombra dele se movimentava, quando ele se movia. Os outros perceberam o fenômeno e se puseram de joelhos diante de Peso. E uma luz intensa tomou conta daquele pedaço da Terra.
A meninada permaneceu quieta e silenciosa, após calar-se Peso. Seus olhos arregalados emitiam luzes de pirilampos. Rapina sorriu e bateu as asas: “Vamos, acordem. O sonho acabou”. Segundo ela, as sombras não representam as trevas. Podem significar manchas, como as que surgem nos corpos vivos. Ou nódoas, máculas no espírito. Talvez o sonho de Peso tivesse um valor subjetivo. As crianças continuaram como em sonho. Algumas fecharam os olhos. Outras se arriaram no chão ou nos colos maternos.

(O sonho de Tise) Sentada ao pé de uma árvore, Tise meditava. O sol se escondia devagar. Pássaros voavam em cantos vibrantes. Súbito escureceu. Tise imaginou a noite das trevas. Olhou para as montanhas e não as viu. Dirigiu a vista para o arvoredo e nada enxergou. Contemplou sua casinha e não a avistou. Observou as pernas e tudo lhe pareceu vazio. Ainda sentada, chamou, aos gritos, Peso e os filhos. Percebeu a chegada deles, e também não os viu. “Estou cega ou é a grande escuridão?”
Rapina bateu as asas, como se batesse palmas. Deu parabéns a Tise. Belo sonho, bela narrativa! Continuassem nesse ritmo, mas nada inventassem. Fossem fiéis aos sonhos. E meditassem no seguinte: A escuridão está fora de nós ou dentro de nós? Um garoto se manifestou: “Às vezes a escuridão está fora de nós, quando escurece. E pode estar dentro de nós, se dentro de nós for sempre escuro”. A ave sorriu e fez um elogio ao menino. Uma garota quis competir com o colega: “Quando fecho os olhos tudo fica escuro. Então a escuridão só existe quando fechamos os olhos, quando queremos a escuridão”. Mais elogios de Rapina: “Vocês são muito claros, meus filhos. Procurem ser sempre assim: nunca sejam escuros”.

(O sonho de Epore) Sentia-se Epore perdido numa caverna, verdadeiro labirinto. Metia-se num trilho, a imaginar a saída, e mais se encafuava. Gritava, a pedir socorro. E seu grito ecoava longe, como se outras pessoas também pedissem socorro. Cansado de tanto caminhar, sentou-se à beira de um lago, viu-se no espelho da água e falou à imagem: “Epore, você está me vendo?” A pergunta correu em todas as direções. Gostou da experiência e bradou: “Nós precisamos sair daqui”. O eco de suas palavras parecia um lamento. Decidiu falar continuadamente o seu nome, bem como o de seu pai, o de sua mãe, o nome de cada um de seus irmãos, até que algum fenômeno ocorresse. E depois de mil ecos uma explosão se deu, uma luz surgiu, a saída – a salvação – se apresentou.
A grande ave permaneceu calada por alguns instantes, como se esperasse ouvir mais um ato da narrativa de Epore. No entanto, o marido de Irusi já se tinha sentado, a demonstrar nada mais ter a contar. Rapina balançou a cabeça e se fez sisuda: “Você certamente andou ouvindo histórias da mitologia grega”. As crianças quiseram ouvir o resto do sonho: Epore conseguira sair da caverna? Por que os ecos causaram a explosão? Rapina não quis dar a palavra a Epore e anunciou a vez de Irusi contar seu sonho.

(O sonho de Irusi) O céu escurecia. Nuvens baixas pintavam o horizonte de cor de cinza. Iniciava-se a chuva. Os moradores de Anipar corriam para suas cabanas. Irusi decidia permanecer ao ar livre. Chamavam-na Epore e seus filhos. O aguaceiro se agravava. Diante das choupanas formava-se um riacho. Irusi retirava as vestes e mergulhava na correnteza. Meninos e meninas ajuntavam-se a ela. O riacho se transformava em riachão. As águas carregavam algumas choças. Animais tentavam fugir para o seco, nadavam e se afogavam. O riachão se convertia em rio caudaloso. As árvores desapareciam. Irusi não via mais ninguém. As águas cobriam o mundo. A mulher buscava uma tábua de salvação. No entanto, só havia água ao redor de Irusi.
Rapina ergueu a cabeça, abriu os olhos e olhou nos olhos de cada um dos aniparenses. Os derradeiros sonhos talvez fossem os mais aterrorizantes. Preparassem-se para o final do dia e da história. “O dilúvio está no inconsciente de todos. Mas pode não ser a maior catástrofe”. As crianças tiritavam de medo. Queriam brincar, em vez de ouvir narrações de sonhos. A ave não permitiu dispersão do grupo. Restavam somente quatro sonhos. Tivessem um pouco de paciência. “Ouvir histórias também é diversão”. Pediram comida. Rapina pediu silêncio.

(O sonho de Pores) Andava Pores e seus pares pelas plantações. Uns colhiam frutos, outros arrancavam mandiocas; uns espantavam passarinhos, outros afastavam espantos. Um gafanhoto pousou diante de Pores, e outro e mais outros. Num repente milhares de gafanhões comiam e devoravam tudo ao redor de Pores e seus parentes. Os espantadores de passarinhos viraram enxotadores de insetos. E todos se punham a gritar e açoitar o ar e o chão com galhos de árvores. Nada, porém, impedia a sanha e a fome dos saltadores. Desesperados, homens e mulheres fugiam daquele inferno. Corriam para lá e para cá, e para onde iam davam de cara com a praga. Exausto, Pores tombava. Os gafanhotos o cobriam, prontos a devorá-lo vivo.
A ave demostrava cansaço e sono. A meninada se espichava no chão, cabeças nos colos das mães. Rusit coçava a cabeça, ansiosa por contar o seu sonho. Sossegasse um pouco – aconselhava o olhar de Rapina. Antes meditassem no sonho de Pores, na praga de gafanhotos. “As pragas acontecem não apenas quando a natureza é molestada pelo homem, mas também quando quer dar equilíbrio à vida”. Serope não gostou das palavras da ave. Bastava de filosofices. Rapina se fez circunspeta. “Um rei não deve melindrar os estrangeiros que visitam seu reino. Estou aqui em missão de paz. E não apenas isto: Vim mostrar o caminho da salvação”. O silêncio se instalou no recinto. “Rusit, é a sua vez.”

(O sonho de Rusit) Deitada numa relva, Rusit ora fechava, ora abria os olhos. Borboletas sobrevoavam o corpo da moça e pousavam nas ervas. Maravilhada, Rusit se punha a cantar e falar aos insetos: “De onde vieram vocês?” Eles não paravam de dançar no ar: “Nós somos anjos”. A jovem ria. Não acreditava no que via e ouvia. “Anjos são invisíveis”. Eles desapareciam por um instante. “Onde estão vocês?” Assustada, ela se erguia e fazia menção de fugir. “Volte, Rusit. Estamos aqui para protegê-la”. E a cercavam, aos milhares.
Rapina cravou os olhos em Rusit: “Os sonhos bons devem ser longos”. Um garoto quis saber se eram anjos ou borboletas os seres do sonho da moça. A ave deu a resposta: “Os anjos estão presentes nos sonhos dos poetas e dos sensíveis”. O menino insistiu: “E as borboletas?” Rapina não titubeou: “As borboletas são anjos também”. Passarinhos passaram em bando no rumo da montanha. “São anjos ou passarinhos?” Rusit quis voar. Deram-lhe água fresca.

(O sonho de Peroe) Dançava a tribo ao redor de uma fogueira. Em dado momento Peroe se viu frente a frente com Risui. Uma labareda alta se formou e Risui desapareceu aos olhos de Peroe. E a cada volta em torno da fogueira Peroe perdia de vista mais um aniparense. Até que o homem deixou de ver todos os outros. No entanto, via a fogueira, as árvores, o chão, o céu. As pessoas se tinham feito invisíveis. Apenas invisíveis, eis que Peroe as tocava, ouvia, e sentia-lhes o cheiro. “Vocês estão me vendo?”
Rapina se disse apavorada, apesar de já ter vivido dias e noites de extrema tribulação. “A invisibilidade é um atributo dos deuses”. Peroe se prostrou diante da ave. “Levanta-te, homem, pois não sou uma deusa”. Risui se curvou aos pés do marido e se pôs a adorá-lo. Crianças choravam, cheias de medo. Rapina pediu calma e silêncio: “Murilo Mendes escreveu – o invisível não é irreal; é o real que não é visto”. Houve gritaria geral. Estariam fadados à invisibilidade? Como viver sem ver os pais, os filhos, as esposas, os maridos, os amigos? A ave se irritou: Pois se preparassem para a eterna invisibilidade.

(O sonho de Risui) Uma voz sussurrava ao ouvido de Risui: “Vai começar o período das transformações”. A moça não se assustava, apesar de não saber quem lhe falava. “Todos vocês serão transfigurados em animais, plantas e objetos”. Risui suplicava: “Não me transforme em serpente, por favor” E à sua frente foram aparecendo acauãs, bonecos, cactos, doninhas, éguas, flautas, gerânios etc. Concluída a metamorfose – Risui se viu feita jequitibá –, a voz se exaltou: “Agora estamos num tempo anterior ao homem. Tudo é apenas natureza. Nada de cultura. Vivam, pois, no Paraíso”. E se calou. Risui queria falar, locomover-se, abraçar Peroe e os filhos, porém só conseguia mover galhos e folhas e emitir sons sem significado. No entanto, – consolava-se – podia ver e entender quase tudo, quando antes só via o mais próximo de si e entendia pouco de pés, chão, árvores, seres vivos.
Rapina iniciou um canto de louvor e alegria. As pessoas riram e se puseram a dançar em ciranda. Ela voou para o centro da roda, abriu as asas, balançou-as pausadamente, provocando vento. Pediu silêncio por um instante. Daquele momento até o anoitecer todos deveriam se dedicar a jogos, corridas, danças, banhos no rio e nas cachoeiras e tudo o mais que os divertisse. Ao se pôr o sol, exaustos, todos deveriam se dirigir à grande cabana, para o sono coletivo. “Nesta noite vocês terão sonhos espetaculares. Num deles eu voltarei a voar e lhes darei asas. Voaremos, em bando, pelos céus mais altos, até alcançarmos o éden, o paraíso, a terra-sem-males, onde viveremos para sempre. Em outro sonho, o chefe espiritual de vocês, o pajé, o xamã, seja lá como o chamem, dará a seguinte ordem: “Enquanto ela estiver dormindo, vocês amarrarão pernas e bico e arrancarão as penas. Impedida de voar e de me defender, vocês a sacrificarão, queimarão e comerão a carne, para que adquiram os poderes dela”. O terceiro sonho terá um pouco de cada um dos outros, com um final diferente: Eu me livrarei de vocês e voarei para o mais longe daqui, para nunca mais voltar, e vocês ficarão nesta terra como sempre estiveram.” Boquiabertos, os habitantes de Anipar se prostraram diante da ave: Não, não queriam aqueles sonhos. Não queriam o paraíso nem voar nem devorar Rapina. Queriam apenas a mesma vida de sempre. A ave não lhes deu ouvido: “Quem não tiver os sonhos já programados dormirá para sempre”.
A aldeia amanheceu coberta de sombras estranhas, como se grandes aves voassem serenamente.

domingo, 9 de dezembro de 2007

Gilberto Mendonça Teles: 50 anos de poesia (Adelto Gonçalves*)


(GilbertoMendonça Teles)


Meio século de poesia não é para qualquer um. Ainda mais se a poesia é de alta qualidade. Pois foi exatamente meio século de atividade poética que Gilberto de Mendonça Teles comemorou em 2005. Para assinalar a data, Eliane Vasconcellos reuniu no livro A plumagem dos nomes/Gilberto: 50 anos de Literatura, de 812 páginas, não só poemas dedicados ao poeta – entre os quais se destacam dois saídos da pena de Carlos Drummond de Andrade em 1970 e 1971 – como poemas do autor traduzidos para outros idiomas, além de depoimentos, resenhas e ensaios publicados em jornais e revistas, prefácios, excertos de teses e dissertações, entrevistas do homenageado, cartas recebidas e fotografias de várias épocas.
Que o livro só tenha saído em 2007, pela Editora Kelps, de Goiânia, com o apoio da Secretaria de Cultura da Prefeitura local, explica-se pela dificuldade da organizadora em juntar tão farto material sobre o poeta. Além de textos publicados em jornais e revistas de todo o mundo lusófono, reúne as comunicações apresentadas no seminário “50 Anos de poesia de Gilberto Mendonça Teles”, realizado de 10 a 14 de outubro de 2005, na Pontifícia Universidade Católica (PUC) do Rio de Janeiro.
Deste articulista, consta a resenha “A influência de Camões no mundo lusófono”, publicada no suplemento Das Artes Das Letras d´O Primeiro de Janeiro, do Porto, de 18/7/2004. De autores ligados a´O Primeiro de Janeiro, consta ainda o prefácio que Arnaldo Saraiva, professor de literatura brasileira da Universidade do Porto, escreveu para Falavra (Lisboa, Dinalivro, 1989), destacando que Gilberto Mendonça Teles pertence à raça dos poetas-professores, uma linhagem que abriga nomes como Samuel Beckett, Dámaso Alonso, Vitorino Nemésio, David Mourão-Ferreira, Manuel Bandeira e Cecília Meireles, entre outros.
Mas há ainda contribuições de outros críticos e professores portugueses, como Agostinho da Silva, Fernando Cristóvão, Jacinto do Prado Coelho e João Bigotte Chorão e da professora Vânia Pinheiro Chaves, há muito tempo radicada na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa. Além, é claro, de textos de grandes poetas brasileiros como João Cabral de Melo Neto, Murilo Mendes, Joaquim Inojosa, Ferreira Gullar, Ledo Ivo, Manuel Bandeira e Ivan Junqueira e críticos e professores como Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde), Afrânio Coutinho, Alfredo Bosi, Antonio Carlos Secchin, Fábio Lucas, José Guilherme Merquior, Adriano Espínola, Fernando Py, Leodegário A. de Azevedo Filho, Silvio Castro e Melânia Silva Aguiar, bem como estrangeiros de renome como o crítico espanhol Carlos Bousoño, o poeta espanhol Jorge Guillén, o alemão Curt Meyer Clason, tradutor de Guimarães Rosa, e a professora italiana Luciana Stegagno Picchio.
II
Gilberto Mendonça Teles nasceu em 1931 em Bela Vista de Goiás, antiga Suçuapara, e morou em várias pequenas cidades do interior goiano, acompanhando a saga do pai comerciante. Viveu em Goiás até 1965, quando, já professor experiente, ganhou bolsa para estudar em Lisboa e Coimbra. Depois, já professor concursado da Universidade Federal de Goiás, lecionou de 1966 a 1970 no Instituto de Cultura Uruguaio-Brasileiro, em Montevidéu, por conta do Ministério das Relações Exteriores do Brasil.
Foi aposentado em 1969 por ato discricionário do regime militar (1964-1985) em 1969, o famigerado Ato Institucional nº 5, tendo se transferido no ano seguinte para o Rio de Janeiro, onde começou a lecionar Literatura Brasileira e Teoria da Literatura na PUC-RJ, apesar das investidas da polícia política da ditadura. A seguir, transferiu-se para Porto Alegre, onde obteve os títulos de doutor em Letras e livre-docente em Literatura Brasileira na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Em 1983, foi nomeado professor catedrático visitante de Literatura Brasileira na Universidade de Lisboa, onde ficou até 1985. Depois, transferiu o cargo de professor titular da Universidade Federal de Goiás para a Universidade Federal Fluminense, aposentando-se nele em 1990.
Apesar de todo esse périplo, é natural que a paisagem goiana assuma-se como pano de fundo de boa parte de sua produção poética. A paisagem, no entanto, é apenas pretexto para evocar a infância, as lendas do sertão e as figuras que povoaram o seu tempo de menino, numa poesia que lhe permite homenagear a terra natal, como o faz em “Lira Goiana”, de Saciologia Goiana, que reúne poemas escritos entre 1970 e 1981: (...) quero ser como um instante de arco-íris/ nos olhos das mulheres de Goiás.
Situado arbitrariamente na geração de 45, provavelmente porque em seus primeiros versos ainda convirjam influências parnasianas e simbolistas, Gilberto Mendonça Teles é um legítimo representante da geração de 60 não só por uma questão de idade como por praticar uma poesia impregnada de irreverência, inconformismo e, especialmente, experimentalismo, como são prova os poemas de Improvisuais, livro parcialmente inédito até a edição de Hora Aberta: poemas reunidos, que saiu em 2003 pela Editora Vozes, de Petrópolis-RJ, com organização de Eliane Vasconcellos e prefácio (que mais é um estudo introdutório) do professor Angel Marcos de Dios, catedrático da área de Filologia Galega e Portuguesa da Universidade de Salamanca, Espanha.
Hora Aberta guarda algumas das experiências mais avançadas já feitas em poesia – que se confundem com arte fantástica, surrealista, sem deixar de recordar os experimentos dos concretistas. Lírico assumido – “No fundo, eu sou mesmo é um romântico inveterado”, diz na abertura do poema “Modernismo” de Cone de Sombras, que reúne peças escritas entre 1980 e 1985 –, o autor chegou, no 50º aniversário de sua atividade poética, a um estágio em que seu trabalho já prescinde dos rótulos e começa a influenciar novas gerações.
III
Ao estrear em 1955, aos 24 anos de idade, com Alvorada, e publicar logo depois, em 1956, Estrela d´Alva, ambos em edição de autor, e Planície, em 1958, ainda em Goiânia, Gilberto Mendonça Teles já despertara a atenção pelo lirismo que marcava seus versos. Não houve quem, ao resenhar seus primeiros livros, não saudasse o aparecimento de um poeta lírico e de aspirações nobres e previsse produções futuras da melhor qualidade.
Com mais de mil e cem páginas, Hora Aberta, além de abarcar 16 livros, quase todos premiados, inclui Álibis (2000), Arabiscos (inédito) e Improvisuais, cujos poemas têm sido divulgados em antologias. Traz na íntegra os dois primeiros livros, Alvorada e Estrela-d´Alva, de que se havia publicado – nas três edições anteriores – uma pequena seleção, reunindo ainda Poemas Avulsos, saídos à luz em jornais e revista antes da estréia e, no fim do volume, Caixa-de-Fósforo, aparecido em 1999.
Ao optar por reunir na abertura suas produções mais recentes, como as peças de Arabiscos, o autor convida o leitor, logo de imediato, a conhecer o seu estágio atual como sinalização autocrítica para o que veio antes. Dessa maneira, é possível, de modo inverso, acompanhar o percurso de um trabalho que pode ser dividido em três
passagens, como sugere no prefácio o professor Angel Marcos de Dios.
A primeira compreende o período de assimilação das técnicas retóricas dos clássicos, românticos, parnasianos e simbolistas, que corresponderia aos dois livros iniciais em que o poeta dirige-se ao seu “eu-poético”, voltado apenas para o seu interior, suas emoções: Deixa rolar no caos do pensamento largo/ a profunda amargura, o sofrimento amargo/ que habitam na tua alma entre ânsias sufocadas,/ entre anseios de amor e esperanças frustradas, diz no poema “Exortação” incluído em Alvorada.
Versos juvenis, os poemas de Alvorada trazem em seu bojo as matrizes românticas que presidem as primeiras manifestações do poeta, como se vê em “Lamento”: Pobre de ti, não tens uma ilusão sequer!/ Nunca provaste um lábio ardente de mulher/ virgem. Pungentes ais, nem suspiros tiveste/ De um seio de mulher. Qual sombrio cipreste/ passaste a mocidade à beira de um jazigo,/ desse jazigo obscuro e que trazes contigo/ dentro do coração, onde, parvo, enterraste/ todo o teu ideal e tudo o que sonhaste. No artista ainda jovem, surpreende a domínio que exibe da métrica tradicional, embora nunca deixe de acrescentar aspectos de renovação aos sonetos.
Já a segunda passagem do itinerário começaria com Planície, seguindo até Arte de Amar, de 1977, em que o poeta já se mostra mais preocupado com a linguagem. É exatamente a fase em que Gilberto Mendonça Teles alcança o reconhecimento como um dos críticos mais importantes do País, autor de pelo menos três obras fundamentais nos estudos literários: Drummond – a Estilística da Repetição, de 1970, Camões e a Poesia Brasileira (hoje na 4ª edição, revista e aumentada) e Vanguarda Européia e Modernismo Brasileiro (hoje na 16ª edição), ambos de 1972.
Da segunda etapa, são pelo menos três grandes livros – Sintaxe Invisível, de 1967, A Raiz da Fala, de 1972, e Arte de Amar, de 1977. De A Raiz da Fala, é o poema “Signo” em que as experiências com metalinguagem se radicalizam: A tua forma é o movimento/ da música na fraude do pântano./ O teu rasto, o sinal cifrado/na linguagem do mar.
Neste período, que duraria quase duas décadas – pouco mais que o tempo de uma geração, segundo o célebre critério de Ortega y Gasset –, muitos críticos acreditam que a poesia de Gilberto Mendonça Teles tenha alcançado o seu maior grau de transcendência, o que deixaria supor que, a partir daí, teria entrado em declínio. Essa avaliação, no entanto, não corresponde à verdade porque é na fase seguinte – a atual – que o poeta aparece livre de todas amarras e influências, com uma linguagem própria, inconfundível.
Essa terceira fase, que se refere aos livros mais recentes, é de uma poesia mais denotativa, com uma linguagem o menos metafórica possível que busca decididamente a ironia e o humor. É marcada não só por um retorno à infância como por um psiquismo doloroso inspirado nas idéias de Gaston Bachelard, que, aliás, oferece a epígrafe que abre Plural de Nuvens, livro que reúne poemas escritos entre 1982 a 1985.
Se tudo o que o poeta toca não vira ouro, a exemplo do Rei Midas, pelo menos se transforma em linguagem: Tudo em mim é desejo de linguagem, diz o primeiro verso de “Poiética (fragmento)”, poema de Álibis, de 1997, que bem define a sua atual fase. Esse verso, aliás, pode ser tido como a metáfora-catalisadora de sua obra, até porque resume a atitude poética que levou muitos críticos a considerá-lo o “poeta da linguagem”, epíteto que desde então o acompanha.
Em “Poiética (fragmento)”, a contradição entre razão e experiência está posta de forma rigorosa: (...) minha própria emoção, esta passagem/ à espessura das coisas, o convite/ ao mais além da sombra e do limite/ e esta confirmação da realidade/ na plumagem dos nomes, na verdade,/ têm seu lado e segredo, é pura essência/ do que se fez em silêncio e reticência. O entendimento não alcança o que vai além do corpo, mas a poesia pode intuí-lo: (...) a criação se dá quando o perdido/ se transforma em sinal que alguém atende,/ alguma boa fada, algum duende,/ uma força maior que nos excita/ a deixar logo alguma coisa escrita.

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A PLUMAGEM DOS NOMES/GILBERTO: 50 ANOS DE LITERATURA. Organização, introdução e notas de Eliane Vasconcellos. Goiânia: Editora Kelps, 2007, 812 páginas. E-mail: kelps@kelps.com.br
HORA ABERTA: POEMAS REUNIDOS, de Gilberto Mendonça Teles. 4ª ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2003, 1113 páginas. E-mail: editorial@vozes.com.br

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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

O sétimo aniversário de Branca de Neve (Nilto Maciel)





No final da tarde, Sandra e Morais davam ordens aos garçons e os últimos retoques no salão de festas, arrumavam os docinhos, os enfeites. Não paravam de falar aos filhos para que se comportassem. Nada de briguinhas, confusões. Queriam uma festa sem defeitos. Luzia, fantasiada de Branca de Neve, ia e vinha pelo salão, sorriso em todo o rosto. Olhava os ornamentos das mesas e paredes. Vistoriava o pequeno palco. Bruno se acercava das guloseimas, pronto a dar o bote. Saulo brigava com o irmão. Não metesse a mão em nada. Morais completava a admoestação. Nenhum deles devia se antecipar ao início da festa, servindo-se antes da chegada dos convidados. Impacientavam-se todos. As crianças corriam, os pais fumavam e se irritavam. E nada de convivas. “Será o trânsito?” Inquieto, Morais chamou um garçom. Sandra se exaltou. O marido não devia beber antes da chegada dos amigos. “Cerveja ou uísque?” A senhora acendeu mais um cigarro e se pôs a andar pelo salão, a revistar adornos e manjares. Um rapaz se apresentou, carregando uma filmadora. Morais pôs-se a dar-lhe instruções. Os meninos ora corriam, ora se abeiravam das mesinhas repletas de gulodices. O sol se punha atrás dos prédios.
A chegada de Xênia, Osvaldo e filhos causou exaltação nos anfitriões. Alegria geral, abraços, risos. Iniciaram-se as filmagens. A menina Ana correu ao encontro de Luzia e entregou-lhe um presente. As demais crianças se fizeram arredias. Sentaram-se os quatro adultos. Morais sorvia goles de cerveja. Cheio de euforia, gritou pelo garçom: trouxesse copos para o casal amigo. Sandra reclamou: queria também um copo. Luzia abriu o embrulho, com pressa, sob as vistas dos irmãos e visitantes. Bateram palmas, deram vivas. A aniversariante arrastou a amiguinha pelo braço: iria mostrar-lhe todo o salão. Branca de Neve e os Sete Anões, desenhados e pintados em folhas de cartolina e isopor, anunciavam fantasias. O palco, a cortina, o pano de fundo. “Vai haver uma peça, sabia?”
Sandra anunciou a chegada de Elizabete, Jonas e a pequena Vanessa. E levantou-se para recebê-los. A menina correu na direção de Luzia, presente à mão. Mais abraços, beijos, parabéns. Morais gargalhava, enquanto Jonas se esforçava para mostrar a musculatura do braço. Sandra falava alto. Os garçons serviam bebidas e salgadinhos.
Adão surgiu de mansinho, a esbanjar fumaça pelas narinas. Os anfitriões se disseram surpreendidos. Não o esperavam para tão cedo. O convidado conduzia um objeto embrulhado em papel colorido. Perguntou pela aniversariante. Gritaram-lhe o nome. Luzia sorriu e correu. Apresentavam Adão aos casais convidados quando se anunciaram Onira, Getúlio e duas meninas. Elizabete cruzou as pernas. Onira ajeitou os óculos, enquanto acariciava a filha: “Continua dando aulas?” Morais fumava, Sandra ria e gargalhava: “Continue filmando, rapaz.” Elizabete gritou por Vanessa. As meninas recém-chegadas se dirigiram a Luzia. Queriam entregar uma lembrança, apenas uma lembrancinha. Getúlio passava mão na testa, e parecia rir ou chorar. Osvaldo olhou para o relógio de pulso. Adão dava risada a gosto. Luzia controlava o sistema de som. As crianças iam e vinham pelo salão, olhos nas iguarias. Umas dançavam, outras conversavam. Sandra chamou a aniversariante. Hora de dar início à encenação. Rebuliço no salão. Mais convidados chegavam, carregados de mimos e sorrisos. “Vamos iniciar o teatro. Apaguem as luzes e silêncio.” Bateram palmas. A anfitriã dava ordens ao cinegrafista: não deixasse escapar uma só ação da peça. No palco, acendem-se algumas luzes. Dois personagens se mostram em vestes reais. Mimam uma boneca: a filha há tempos esperada. O rei (Morais) se dirige à rainha (Sandra): A filha teria por nome Branca de Neve. A platéia bate palmas. Xênia ajeitava o cabelo, olhos fitos no palco. O narrador anuncia a morte da rainha. O rei se põe a chorar. Sandra retira-se do tablado e corre à mesa, a rir. Movimento inverso realiza Xênia. O narrador anuncia: O rei terá nova esposa. Um padre passa a celebrar o casamento real. Getúlio mete mão no bolso. A meninada permanecia silenciosa. A nova rainha se mira frente ao espelho mágico: “Existe alguém mais linda do que eu?” A garotada grita “existe, existe.” Jonas alisava o queixo. Sandra fumava. Luzia entra em cena: “Sou Branca de Neve.” A rainha se observa diante do espelho e pergunta quem é a mais bela do reino. Uma voz vinda dos fundos grita: “Há uma menina muito mais bela do que Vossa Majestade”. Morais se retira do palco e chama um garçom: “Mais cerveja, que o rei está morto”. Risos e gargalhadas. Luzia pede silêncio, irritada. Sobe ao estrado Jonas. A rainha se dirige a ele e ordena: “Leve a menina ao bosque, mate-a, arranque o coração e o traga a mim”. Onira cochichava para Sandra. O caçador arrasta a princesa pelo braço. A menina grita e cai. Riem na platéia. Sandra brada: “Cuidado com minha filha.” Luzia se ajoelha e pede clemência: “Não me mate, por favor.” Jonas, o caçador, ergue a mão, olha para a menina e também se ajoelha: “Perdão, princesa. Vou enganar a rainha. Ela quer o seu coração, como prova de que a matei. Vou, pois, matar um cervo e arrancar-lhe o coração. Fuja para bem longe daqui”. Luzia corre para o fundo do palco e Jonas sai pela lateral. Reaparece no salão, a rir e ajeitar a camisa. Batem palmas. Onira olha de viés. Xênia se ergue e se retira. Branca de Neve reaparece no palco; ao fundo o desenho de uma casinha. Deita-se numa caminha e adormece. Jonas esfrega as mãos e levanta os ombros. Entram no palco sete anões, representados por meninos e meninas. Onira cutuca um pé de Sandra. A princesa desperta. Os anões se põem a conversar com Branca de Neve. Sandra quebra um copo. Alvoroço no salão. Morais fumava e batia pé no chão. Reaparecem a rainha e o espelho: “Quem é a mais bonita do reino?” Uma voz rouca ecoa no salão: “A mais bela de todas é Branca de Neve.” A rainha se desgrenha. Risos, vaias. Getúlio ajeita o cabelo com mão. Uma bruxa (Sandra), disfarçada de velhinha, carrega maçãs numa cestinha e bate à porta da casinha dos anões. Jonas enche a boca de empadas. A bruxa oferece uma maçã à princesa. Gritos, conselhos: “Não aceita a maçã; é envenenada.” Luzia sorri, olha para a platéia: “Eu tenho que aceitar e comer. Faz parte da história.” Dá uma mordida na maçã e cai. Os anões gritam, choram. Os convidados batem palmas. Xênia olhava para as coxas de Getúlio. Entra em cena o príncipe, representado por Saulo. Elizabete aproxima-se de uma das mesas, rebolando-se. A princesa ressuscita. Luzia se ergue e abraça o irmão. O narrador fala do casamento da princesa. E encerra, em voz pausada: “E viveram felizes para sempre.” Mais palmas, assobios, aplausos. Xênia pinta-se diante de espelhinho, calada. As luzes se acendem. Palmas, gritinhos, ovações, agitação na platéia. As crianças se dispersam, correm. Sandra olhava para a barriga de Jonas. A aniversariante pergunta se está na hora dos parabéns. Sua mãe levanta-se, retira-se da mesa e grita: “Vamos cantar os parabéns.” A criançada se agita e corre em direção à mesa maior. Luzia se posta junto ao bolo. Todos cantam “Parabéns pra você”. O grande bolo com sete velinhas é cercado de adultos e crianças. Aparecem fotógrafos de todos os lados. Luzia sopra e apaga as velas do bolo. O primeiro pedaço entrega à mãe ou ao pai? Abraços, beijos, gritos, cantos. Inicia-se a distribuição do bolo em pratinhos. Osvaldo não pára de falar: “Bebida é fundamental, tudo é droga.” Getúlio ajeita a cabeleira e anuncia, baixinho, para Osvaldo: “Sonho que sou escravo.” “Escravo da mulher? Só se for da melhor.” “Com mulher de farda nem o Diabo pode.” Onira deixa a mesa, irritada. Sandra sai atrás dela. “Ele tem outra.” Getúlio olha para elas e se volta para Osvaldo: “Casamento não foi feito para mim.” Adão ajeita os óculos e discorre sobre sexo imaginário. Xênia alisava a face: “Amizade com mulher, até certo ponto.” Onira olhava para o busto de Xênia: “Sabia do nascimento do bebê de Oxesiscrana?” Adão ajeitou os óculos, cigarro nos dedos, e separou-se do grupo. Osvaldo chupou o copo: “Todo governante é ditador.” “Todo ditador é governante.” “Não, toda mulher quer governar homem.” Morais olhava para Jonas: “Clube de futebol virou negócio.” “Tudo é negócio mesmo.” “Como é aquela frase? Tempo é dinheiro.” “Time is money.” Adão acendeu um cigarro: “Droga significa volta à inocência.” “Usar droga para não ser adulto?” “Ele quer dizer o seguinte: drogado parece criança.” “Não é bem isso.” Elizabete piscou para Sandra: “Homem tem de ser fogoso.” “Muito fogo para se queimar.” “Não vá me queimar com esse cigarro.” Sandra fumava e olhava para os quadris de Elizabete: “Homem só pensa em sexo na hora, pouco antes, muito antes, mas só por um minuto.” Sandra, Elizabete, Xênia e Onira se dão as mãos e se põem a dançar. “Na Idade Média o casamento...” “A idade média para o casamento deve ser aos vinte anos.” “Cadê os sete anões?” “Mais cerveja aqui, garçom.” “ E a aniversariante já fugiu com o príncipe?” “Quem quer bolo?” “O príncipe se escafedeu, se safou.” “Morais, ainda tem uísque?” Jonas mordeu orelha de Elizabete: “Adoro orelhas.” Ela se esquivou: “Adoro minhas crianças e odeio cigarro, bebida, conversa fiada.” Um casal com filhos se despedia dos anfitriões e da aniversariante. Derrama-se cerveja numa mesa. Crianças pulavam, corriam, se esgoelavam. Onira chamou o marido. Adão tentava conversar com Getúlio: Sabia o significado dos anões? “Uma louca!” Sabia? “São os sete pecados capitais?” Mais convidados se retiravam. “Por que já vão?” Espoucavam balões. “Mais cerveja?” Sandra se pôs a cantar como os anões. Palmas, assobios. Um dos anões chorava, aos berros. Outros se iam, atrás dos pais. Os anfitriões agradeciam os presentes e as presenças dos convidados. Os garçons cambaleavam. O cinegrafista ria. Pedaços de bolo e salgadinhos espalhados no chão. Cerveja e refrigerante derramados. Gritavam, vociferavam, gargalhavam, dançavam, corriam, caíam, choravam, reclamavam.
Súbito as luzes se apagaram. “É o fim do mundo.” “Passam anos e vêm anos e é essa mesma coisa.” “É o caos, meu amigo.” “Mãe, cadê você?” O vulto de uma bruxa passeava pelo salão. Uma voz sibilava: “A morte vem vindo.” Havia medo nos olhos das crianças e angústia em cada adulto. Meia-noite.