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quinta-feira, 14 de agosto de 2008

Notas poéticas: Pietà de Dante Milano (Henrique Marques Samyn)

(Dante Milano)


Pietà, de Dante Milano

Essa Mulher causa piedade
Com o filho morto no regaço
Como se ainda o embalasse.
Não ergue os olhos para o céu
À espera de algum milagre,
Mas baixa as pálpebras pesadas
Sobre o adorado cadáver
.Ressuscitá-lo ela não pode,
Ressuscitá-lo ela não sabe.
Curva-se toda sobre o filho
Para no seio guardá-lo,
Apertando-o contra o ventre
Com dor maior que a do parto.
Mãe, de Dor te vejo grávida,
Oh, mãe do filho morto!
Em 1987, Carlos Drummond de Andrade referiu-se, em uma entrevista, a um “grandíssimo poeta”, “de extraordinária qualidade” que ninguém conhecia, embora tivesse “quase noventa anos”. Quase vinte anos depois, Dante Milano – este grandíssimo poeta – continua pouquíssimo conhecido, embora a recente publicação de sua Obra reunida (Academia Brasileira de Letras, 2004) dê uma nova chance, aos leitores da melhor poesia, de conhecer a esplêndida obra milaniana.
Poeta de precisão clássica e de lucidez implacável, muitas vezes agônica, Dante Milano construiu uma obra de solidez exemplar, erigida sobre a tríplice base da morte, do amor e do sonho, como analisou Ivan Junqueira em seu atinado ensaio sobre a obra milaniana (Dante Milano: o pensamento emocionado). Uma poesia sempre avessa a quaisquer concessões ao trivial ou ao vulgar, capaz de desvelar, em meio à marginalidade mais brutal – os bêbados, mendigos e vagabundos que vez por outra despontam em seus versos – , a imponderável dignidade das criaturas que acolhem, fiéis, o peso da existência dolorosa, mesmo sabendo-se incapazes de sustentá-lo; a dignidade, enfim, dos que caminham por “Essa rua cuspida / E por todos pisada, / Que é a verdadeira estrada / Por onde passa a vida”.
Em Pietà, o olhar milaniano debruça-se sobre o tema da morte crística, motivo que levou à criação de algumas das mais belas obras de arte de todos os tempos; basta pensar na escultura de Michelangelo ou nas pinturas de Bellini ou El Greco. Dante Milano concentra-se na experiência psicológica da mãe que tem, entre os braços, o filho morto, opção já ressaltada nos três primeiros versos da composição: “Essa Mulher causa piedade / Com o filho morto no regaço / Como se ainda o embalasse”. A inicial maiúscula em “Mulher”, note-se bem, aponta para uma dupla direção: de um lado, para a condição superior de Maria, mulher eleita por Deus, consoante uma perspectiva cristã; de outro lado, segundo uma visão mais alegórica, para a percepção daquela mulher como sendo, na verdade, uma representação de todas as mulheres – leitura sem dúvida pertinente, uma vez que o poema trata da desolação perante a perda definitiva de um ente querido; experiência, portanto, intrinsecamente humana.
A centralidade da dor é ressaltada, no poema, tanto por sua dimensão descritiva – a mãe que “Não ergue os olhos para o céu / À espera de algum milagre”; que se curva sobre o cadáver e, tomada pela dor, aperta-o contra o ventre – quanto por sua dimensão formal; no tocante a esta, à guisa de exemplo, note-se a belíssima passagem do verso “À espera de algum milagre” para “Mas baixa as pálpebras pesadas”: no primeiro, a acentuação destaca consoantes foneticamente oclusivas (p, g), fechando o verso uma constritiva (l), além de uma alternância de vogais abertas e fechadas (e, u, a), o que sugere uma situação de incerteza e expectativa, tanto por conta da respiração exigida pelas oclusivas, algo aliviada no final pela presença da constritiva, quanto por conta da já mencionada inconstância da sonoridade vocálica; já no segundo verso, note-se o destaque concedido pela acentuação à vogal a, gerando uma continuidade sonora que não se fazia presente no verso anterior, além da forte repetição das oclusivas bilabiais p e b, o que altera o sentido da expectação: esta sonoridade, associada à dimensão semântica do verso, intensifica a idéia de pesar e dissolução da esperança sugerida no verso anterior, tanto por conta da força da coliteração quanto por conta da monotonia fonética das vogais. Nos versos finais, Dante Milano abandona a atitude descritiva para assumir a atitude empática que já fora sugerida no verso inicial, de modo a fechar o poema ressaltando sua humanidade; a repetição do termo “Mãe” em momentos capitais dos versos – abrindo o ritmo trocaico do penúltimo verso e o iâmbico do verso final – intensifica a afetividade desta relação com a padecente mulher.
A Pietà milaniana é, enfim, um poema que trata, de modo singular, da dor – não da dor de uma santa, mas da dor de uma mulher; vivência que, radicalizada, torna-se uma suprema representação de uma experiência humana, demasiado humana.
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