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sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Belíssima Cangalha (Reynaldo Domingos Ferreira)



É difícil ficar indiferente ante o lirismo da prosa de José Humberto Henriques, em CANGALHA, romance dedicado ao varal dos ventos ou das ventanias, que narra a saga familiar dos Assunção, desde seu patriarca – Major Fernão Zulião – bandeirante deixado no caminho, porque atacado de febres, em terras confluentes de Minas e Goiás, até Jerome da Cangalha. Este narrou ao autor como foi que o pai, Prospério Coladino Assunção, deixou-lhe a vida de certa forma madrasta, de certa forma até que doce, de certa forma nada.
Escrito, como se vê, em estilo barroco, com fortes inclinações para o fantástico, CANGALHA mostra nosso homem do interior, dotado do furor ingenii - de acordo com alguns mestres do barroquismo - pelo qual desenvolve o egocentrismo, que o leva à melancolia, à solidão e à falta de atrativos para continuar vivendo. Nessa perspectiva, pela linha narrativa, vê-se então um universo de temas opostos, que se confrontam entre o sublime e a realidade às vezes mais repulsiva do homem, como é do espírito barroco.
Não é de se estranhar, portanto, como advirto, que alguém, furtando-se à força do lirismo da narrativa e de seu propósito religioso, considere o livro grosseiro e de passagens asquerosas. Tem-se de estar preparado para tudo diante de uma obra desse porte, dessa envergadura, em que autor joga com a ambigüidade, admitindo influência do escritor inglês, Laurence Sterne (1713-1768), um dos criadores do romance moderno, que não só explorava o jogo de palavras, como também usava pontuação de ordem muito pessoal.
O autor revela, à guisa de prólogo, que a história da família Assunção lhe foi narrada por Jerome da Cangalha, filho bastardo, mas depois legitimado em cartório, de Prospério Coladino Assunção, de quem não só herdara semelhança física – o que se podia comprovar por um retrato que trazia no bolso – mas também as possessões de terras situadas às beiras do Arapuá, chamadas inicialmente de Fazenda Patativa, mudadas mais tarde para Maracangalha e, finalmente, para Cangalha, que passou a ser assim alcunha de Jerome.
E o que era a Cangalha? Pode-se dizer na maneira arrevesada do autor, que tirante os arredores muito juntos do Arapuá, era uma palma de mão, um estirão de planície muito comportado de declives, sendo preciso esclarecer-se, entretanto, que ia além dos dois mil hectares, quando inteira, nos tempos de Jerome, situada pelos lados de Abaeté, Patos e Paracatu, próxima, portanto, à atual Brasília. Era, na verdade, uma imitação de planície que podia ser chamado de brinco de terra. Gema. Por sua vez, os acidentes - morrotes e murundus, pirambeiras e esbarrancados, tabocais de brejo, lasca de cascabulho, corte de lajedo, faixas sem água, outras com sobra, as veredas vertenciais, os capões de mato e capoeira, os espigões espichados e pesados de capim gordura – eram todos muito sinceros de tamanho, como o autor descreve.
Confesso que, ao conhecer pela prosa vibrante e poética de José Humberto Henriques a belíssima Cangalha, com seus incríveis personagens, não tive como deixar de lembrar da Jacuba, fazenda entregue à decadência, ao marasmo, que eu costumava visitar a cavalo, ao final dos anos cinqüenta, pra lá do Capão da Onça, no Triângulo Mineiro. A sede era um casarão antigo, ao estilo colonial português, de alicerces de pedra tapiocanga, esteios de aroeira e adobe, com grandes portas e janelas, estas distribuídas tanto para o nascente como para o poente.
À entrada da fazenda, havia uma grande e secular gameleira, sob cuja sombra amarrávamos – eu e meu cunhado - os animais, ao lado dos carros de bois sempre encostados. No topo da escada de pedra do casarão, à soleira da porta de entrada, nos aguardava Zé Onofre, herdeiro das terras da Jacuba, homem de rompante, tipo viril, queimado do sol que, pela constituição física, magra, esguia, dava mostra de não ser um acomodado, mas afeito ao trabalho duro do campo.
Não se compreendia, portanto, pela compleição do proprietário, por que as terras da Jacuba, de massapé bruto, se mostravam tão abandonadas. Ante minha indagação, meio que fechando o olho esquerdo para espantar a fumaça do cigarro de palha, Zé Onofre se queixava da eterna falta de crédito para tocar a lavoura, de dívidas que se acumulavam, de ano para ano, junto ao Banco do Brasil e, com a lerdeza da prosa dos mineiros, debulhava uma série de outros reveses que o impediam de tornar as terras produtivas, como teriam sido no passado, segundo notícias trazidas ao presente pelas fotos colocadas nas paredes e sobre alguns móveis de seus bem situados antepassados.
A mulher de Zé Onofre, tímida, medrosa, acuada, raramente aparecia na sala para nos cumprimentar ou dar boas-vindas. A água e o café ralo, de sobra da borra adormecida no coador, como desconfio, eram servidos pela criada sobre a qual o proprietário parecia ter também completo domínio. Pois a prosa de José Humberto Henriques me traz de repente senão a reconstituição da arenga do Zé Onofre – destituída certamente dos ornamentos literários da do escritor – pelo menos o ambiente tradicionalista, reacionário, da Jacuba, que, ao que suponho, ao longo desses anos, em nada deve ter mudado.
Além disso, percebo que, como Zé Onofre, com quem eu costumava ficar horas conversando, o autor de CANGALHA, embora afirme que não deve um homem de pronto demonstrar um prazer, pois lhe fica a alma superficial, não consegue dissimular a nostalgia que também sente de seus tempos de infância, que guarda como se fora uma de suas mais secretas obsessões. Haverá por sinal, acredito, um dia, estudiosos da obra de José Humberto Henriques que se deterão especificamente na questão do relacionamento dele com os seus personagens. Pois, ao que se observa, existe um conflito latente entre eles, não se sabendo delimitar, com precisão, qual é o território de um e o dos outros, gente com seis dedos nas mãos, de pregas entre os dedos, um testículo, três testículos, duas cabeças no desavergonhado, papos, manchas nos rostos, mamas sob as axilas e outros aleijões de metafórico alcance, como observa Hélio Pólvora, na boa apresentação do livro.
É bem possível que neste caso específico as palavras do escritor alemão Hermann Hesse (1877-1962), em um de seus textos autobiográficos, encontrem algum sentido, quando o autor de “O Lobo da Estepe” diz: Quase todas as obras em prosa que escrevi são biografias da alma e nenhuma delas se ocupa de histórias, de complicações, nem de tensões. Pelo contrário, todas elas são basicamente um discurso no qual uma pessoa singular – aquela figura mítica – é observada em suas relações com o mundo e com o seu próprio eu.
De fato CANGALHA é basicamente um discurso em que o autor, essa pessoa singular, como diria Hesse, utiliza personagens fictícios - meras peças funcionais - para expor suas relações com o mundo e com o seu próprio eu, extremamente carente, a meu ver, de complementação, seguindo a linha existencialista, que acolho, do filósofo dinamarquês, Sören Kierkegaard (1813-1855).
Essa complementação - como é preciso observar - é de ordem metafísica, essencialmente mística, mas, na contemporaneidade, assume um tipo de inconformismo gerado pelo fato de o indivíduo se sentir como homem-fração, sem importância e sem propósito para si mesmo, senão como elemento constitutivo do corpo social. O que conta, como explica James Collins, em “El Pensamiento de Kierkegaard”, não é a qualidade do juízo e do caráter individual, mas da opinião pública, da pressão que ela exerce sobre cada um de nós.
Isso explica de algum modo, a meu ver, a opção de artistas contemporâneos, deístas e ateístas, pelo estilo barroco, tendo em vista o princípio de que as formas de expressão estão ligadas às formas de recepção. Esse poder da opinião pública atual fez ressurgir, portanto, o barroco, que já prevaleceu, na Península Ibérica, nos séculos XVII e XVIII, quando o poder despótico era exercido pela autoridade (Igreja, Estado, Sociedade). Como explica Ana Hatherly, em “A Experiência do Prodígio”, numa sociedade em que os desníveis de toda sorte eram enormes, e em que os detentores do poder eram praticamente onipotentes, seria preciso a todos (e proporcionalmente aos interesses em jogo) conquistar o favor dos poderosos, inclusive os do além, os do outro mundo.
As complicadas obras daquele período – como as de hoje, de leituras cifradas – se destinavam, portanto, a um público de “especialistas”, que se compraziam e se deleitavam ante suas formas originais, como atualmente o fazem alguns professores, mestres universitários, que se exercitam no esnobismo, isto é, em estéreis e prolixos comentários a fim de tentar explicar vazios simbolismos por eles sugeridos, inventados, extraídos dos mais corriqueiros procedimentos de inexpressivos personagens.
“CANGALHA”, de José Humberto Henriques, que tem registro das oberabas, é pois autêntico romance de estilo barroco, assim como o é “MEMORIAL DO CONVENTO”, de José Saramago, que, a propósito de narrar a história da construção de um convento em Mafra, no século XVIII, faz a crônica também da humilde e pobre família Mau-Tempo, lavradores do Alentejo, desde épocas muito distantes até a chamada “Revolução dos Cravos”, de 1974, sem esquecer a de outras duas famílias, a dos Sete Sóis e a das Sete-Luas.
Ambos os escritores não só retomam formas do passado - o barroco é pródigo em opções - como também inventam outras de cunho mais moderno, algumas abeberadas de cineastas que, no afã de épater les bourgeois – como dizem os franceses -, fragmentam histórias, personagens e subvertem por completo a linha cronológica das narrativas, que, de tanto uso, já se tornaram pouco originais. No caso do romance de José Humberto Henriques, por exemplo, há congelamento de seqüências, que são mais adiante retomadas, no desenrolar dos acontecimentos. É o que acontece, por exemplo, com a chegada do negrinho Miquilino, que tinha jeito especial de dizer o já dito, conduzindo um cego à fazenda do Major Fernão Zulião, pego defecando de cima de uma árvore, como é um quase costume dos mineiros do interior, insanos ou não.
Esse negrinho Miquilino é uma personagem especial, que atravessa três gerações dos Assunção, sofre as dores da família e por isso suporta de certa forma a estrutura da narrativa, muito bem arquitetada por sinal pelo autor. Foi testemunha do nascimento de Prospério em meio ao barro e à sujeira dos porcos, tendo prestado ajuda à mãe, Dona Oniça, a sair daquela imundície, levando-a, com a criança, para dentro de casa a fim de se lavarem, num episódio que, pela natureza do relato, lembra um pouco “SALÓ”, de Píer Paolo Pasolini (1922-1975). Miquilino se tornaria padrinho de batismo e de crisma de Prospério, que, por sua vez, se afeiçoaria muito a ele desde a infância. E com o padrinho, ao que se dizia, passaria a guardar semelhança, tanta, que os próprios pais, Joaquim Zodoaldo e Oniça, diziam, rindo a mais não poder, que parecia que o filho mamara em Miquilino. Foi ele, antenado nas novidades de fora, como assíduo ouvinte de rádio, quem escolheu o nome do caçula da família, Ueston Regildo, e acabou assumindo as rédeas da família depois da morte de Zodoaldo, primogênito do Major Fernão Zulião – figura dominadora do romance - cuja morte também ajudou a concluir.
É evidente que a impressão que causa uma obra, como CANGALHA, de característica muito própria – ao que ficou mais ou menos evidenciado, espero, neste breve comentário - é de ordem particular. É preciso reconhecer, porém, que se trata de amplo inventário dos costumes, das tradições, das crendices e superstições da gente do Triângulo Mineiro, desde os tempos da colonização portuguesa, como nunca, ao que me consta, se ousou fazer antes. Por isso é obra valiosa que coloca seu autor, José Humberto Henriques, entre os mais importantes escritores brasileiros da atualidade, embora, até o momento, pouco se saiba disso porque, neste país, pouco se lê. E menos ainda se divulgam obras desse nível, dessa qualidade. BELISSIMA CANGALHA!...
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sábado, 13 de dezembro de 2008

Carnavalha (Dias da Silva)



(...)
Carnavalha é recente romance. Romance bem original, diferente. Cheio de histórias de inúmeros personagens e sem história. É um romance em que o leitor depara personagens sem conta (sem protagonista), lineares, iguais no absurdo incompreensível da vida. São coisas tão ilógicas como a vida. Como num sonho. Os enredos – o romance não tem um enredo – estão no papel como saídos do inconsciente: sem um roteiro como é a própria vida, as pessoas e as coisas.
Francisco carvalho escreve na orelha do livro: “Seu discurso mistura ingredientes simbólicos como a realidade linear do cotidiano. O erudito e o popular se completam num paralelismo sintático onde até mesmo as reticências do narrador desempenham o papel de figuras de retórica”.
Ao longo do romance, prende a atenção da gente o predomínio, quase absoluto, da frase cortada, curta, fragmentada. Aliás, esse é o modo singular de escrever de Nilto Maciel. Sem frase de efeito e feita, o Autor, pelo súbito da expressão, deixa impacto dentro do leitor. Nilto Maciel é um artista na flexibilidade e manipulação da palavra.
(Publicado no jornal Binóculo nº 85, Fortaleza, agosto de 2008)
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quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

A Imortalidade pela Poesia (Henrique Marques-Samyn)


(Poeta Francisco Carvalho)

A morte é uma forte presença no mais recente livro de Francisco Carvalho, algo já evidenciado por seu título – “Mortos não jogam xadrez” (Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2008), aliás inspirado numa citação de Ibsen que serve como motivo para o poema homônimo, um dos mais belos do livro, onde lemos:

O amor é moeda falsa
não vale o pulo de um gato
mortos não jogam xadrez
no meio do quinto ato.

Esse cenário de desesperança, ao que tudo indica, tem raízes biográficas – afirmação em que parece haver algo redundante: sendo todos mortais, como seria possível para nós, demasiado humanos, não falar sobre a morte a partir de uma perspectiva biográfica? Não obstante, estamos aqui falando de um dos mais importantes poetas brasileiros, que ademais se debruça sobre um tema que, neste momento, lhe surge como urgente a partir de uma perspectiva existencial. Explicita-o o “Poema de aniversário”, obra em que o impecável domínio formal de Francisco Carvalho confere à dicção direta e franca uma rara riqueza estética, o que por outro lado torna a obra ainda mais contundente:

Estou numa faixa
etária em que as pessoas
costumam morrer.

Não se trata duma questão
de pessimismo. Velho otimista
não passa de uma fraude.
[...]

Um minúsculo trombo
nas artérias, e tudo desmorona.
Velho não tem pulso

nem o direito de ignorar
quando o bonde
chega ao fim da linha.

O que pode ser notado já por esses versos, e melhor constatado por uma leitura de todo o volume – onde encontramos verdadeiras obras-primas como “Explicação do corpo”, “Notícias de Canudos” e “Soneto para uma Rainha”, entre outras – é que o estro de Francisco Carvalho, longe de esmorecer, faz-se mais forte perante a angústia trazida pelo peso do tempo. E assim, de fato, deve ser: se todos estamos condenados à morte, e se diante dela chance nenhuma temos no xadrez da existência, um dos caminhos para a imortalidade é precisamente a arte – e não resta qualquer dúvida de que a poesia alçará para a História o nome deste vate cearense que, ao longo de oito décadas, vem erigindo uma catedral de versos destinada à eternidade.
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segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Jam (Aldemar Norek)


(Aldo Bonadei, Abstrato, 1962)


encerrado no corpo
encapsulado
também preso à carceragem do tempo
– a pele (limite úmido e quente com o mundo)
rasgada pelos grafitos do acaso
rasuras arabescos (e
toda subtração
que as provisões do que há por dentro possam suportar)
a pele percebe que você quer sair – e arma a estratégia
que lhe contém.

(tem a ver com a raiva do corpo:
só o corpo odeia com a impureza de um hormônio
e ama com a mesma impureza
– a alma contaminada nem gravita em torno
com uma vaga impressão
daquilo que se apreende
ao universo torto:
consciência é mera distorção)

foi nos becos sujos desta alma (ou corpo?)
que falanges de anjos excluídos de olhar vago
fortemente armados
sitiaram os desejos os projetos
num último bonde antes do apocalipse
entre projéteis
e um deles (o que sorria)
olho no olho
quando seu joelho tocou a terra
esculachou:
perdeu maluco
perdeu

encerrado no corpo
o mundo é o que lhe foi amputado
porque pulsa e é sempre
além
por mais que você
se jogue em qualquer
abismo
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sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Invenção do desenho: do público e do privado (Adelto Gonçalves)

(Alberto da Costa e Silva)


I
Foi o nova-iorquino filho de lituanos Karl Beckson (New York, A Reader´s Guide to Literaty Terms, The Noonday Press, 1960, p. 119) um dos primeiros críticos a dizer, com acerto, que as memórias, como gênero literário, têm como objetivo inserir o indivíduo em seu coletivo. Entre nós, Massaud Moisés (São Paulo, Dicionário de Termos Literários, Cultrix, 12ª ed., 2004, pp. 279-280) observou que as memórias distinguem-se por constituir um relato na primeira pessoa do singular que visa à reconstrução do passado, com base nas ocorrências e nos sentimentos gravados no cérebro de quem as registra.
Distorcido pela memória, diz Massaud, o passado transfigura-se como se parecesse inventado, uma vez que o intuito reside menos no pacto autobiográfico estrito do que na reconstituição das lembranças que restaram do fluxo e refluxo dos dias. Como Proust Em busca do tempo perdido, diz, o autor, “ao rememorar os dias vividos, sabe que a sua visão é subjetiva, por vezes idiossincrática, mesmo quando trata das outras pessoas com quem lhe foi dado conviver”.
É o que faz Alberto da Costa e Silva (1931) em Invenção do desenho: ficções da memória, ao reconstruir fragmentos de uma vida e uma época, demonstrando a importância do contexto histórico na formação da subjetividade. Trata-se de um relato em que o autor rememora, reinterpreta e mesmo exorciza alguns fantasmas da história recente de Brasil e Portugal, trazendo-nos de volta como gente de carne e osso figuras que já fazem parte da História canonizada destes países no século XX. Ao mesmo tempo, estabelece uma íntima conexão entre subjetividade e História, ao partilhar histórias cotidianas de toda uma geração, ou seja, daqueles que neste século começam a se aproximar das oito décadas de existência. Nada mais justificável, portanto, o subtítulo que deu ao livro: ficções da memória.
A exemplo do que já fizera em Espelho do príncipe (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1994), memórias da infância, Costa e Silva dramatiza em Invenção do desenho a inter-relação entre o público e o privado, dando continuidade a suas lembranças pessoais do período que vai de sua adolescência até os 30 anos de idade, ou seja, do afastamento imposto pelos militares ao ditador Getúlio Vargas em 1945 como condição sine qua non para a redemocratização do País até a inesperada renúncia de Jânio Quadros à presidência da República em 1961.

II
Não é à toa que uma dessas lembranças situa-se por volta de 1946, quando o rapaz de 15 anos, que vivia no Rio de Janeiro, filho do poeta Da Costa e Silva (1885-1950), a caminho do consultório de seu irmão Mário, viu descer de um bonde um senhor parecidíssimo com o presidente Dutra. Era mesmo o presidente, que vinha acompanhado por seu secretário, sem a companhia de um só agente de segurança. Viera do Palácio do Catete rumo ao Centro do Rio de Janeiro, atravessando a Avenida Rio Branco em direção a um barbeiro que havia na rua de Santa Luzia, sem que ninguém dele se aproximasse, ainda que com discreto aceno de cabeça respondesse a um e a outro cumprimento. A recordação breve fica ali a título de não só mostrar que esse era um outro tempo, em que presidentes da República podiam circular pelas ruas como qualquer mortal, mas também para registrar a memória coletiva dos anos pós-guerra em que o Brasil viveu uma larga experiência democrática que viria a ser brutalmente interrompida em 1964 por um golpe militar. E serve ainda para resgatar a memória literária daqueles anos 40, tempo de revistas literárias a que o grupo de amigos que Costa e Silva freqüentava não se mostrou infenso, lançando também a sua publicação.
Data dessa época a amizade de Costa e Silva por Antônio Carlos Villaça (1928-2005), seu colega de ginásio que, àquele tempo, já havia traçado para si um futuro recluso de monge beneditino e de outras ordens religiosas, o que, se lhe pouparia de viver as experiências ditas normais de todo jovem, dar-lhe-ia todo o tempo de que necessitava para entender a santidade e construir uma obra literária que inclui ao menos uma obra-prima, O nariz do morto, o que não é pouco.

III
De sua juventude, recorda-se Costa e Silva do Congresso Internacional de Escritores, realizado em 1954 dentro das comemorações do IV Centenário da cidade de São Paulo e de vários de seus participantes, como Miguel Torga, com seu estilo “carrancudo e quase intratável”, um montanhês perdido na urbe, ou o norte-americano William Faulkner, que ficou quase todo o tempo no hotel, entre o bar e o quarto, e só compareceu a uma sessão plenária de poesia, ou do professor M. Rodrigues Lapa, que fascinou a platéia ao falar sobre as origens da poesia lírica medieval portuguesa.Por essa época, o jovem Alberto da Costa e Silva começou a se preparar com o objetivo de enfrentar os exames para Instituo Rio Branco, pensando na carreira diplomática que haveria de seguir por quase meio século. A partir daí, suas memórias, em meio a algumas lembranças estritamente pessoais, como o seu casamento com Vera de Campos Queiroz e o nascimento de seus filhos, concentram-se nos primeiros tempos desse novo ofício atuando na divisão comercial do Itamaraty, o Ministério das Relações Exteriores. Logo então, encantou-se com a história da África, a partir da leitura de Casa grande & senzala, de Gilberto Freyre, até tornar-se o africanólogo respeitado dos dias de hoje, sempre convidado a participar de toda coletânea de ensaios que se prepara sobre as relações entre Brasil e África.
Lotado na Embaixada do Brasil em Lisboa, o jovem diplomata nos anos 50 e 60, viria a fazer um grande círculo de amigos entre os intelectuais portugueses da época, como Ferreira de Castro, Urbano Tavares Rodrigues, Alfredo Margarido, Alberto de Lacerda (que já morava em Londres e vinha a Portugal só para encontrá-lo), E.M. de Melo e Castro, João Gaspar Simões, Vergílio Ferreira, Alexandre O´Neill, Sophia de Mello Breyner e Ruben A., que, inclusive, era funcionário da representação brasileira e assessor especial do embaixador Negrão de Lima.
Dessa época, recorda a visita que o presidente Juscelino Kubitschek fez a Lisboa, quando, entre outras atividades, teve de homenagear o escritor Vitorino Nemésio, presidente do Centro de Estudos Brasileiros da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, de quem nunca ouvira falar.
Mas bastaram-lhe algumas palavras do diplomata Costa e Silva sobre o autor de Mau tempo no canal, durante o trajeto de carro do Palácio de Queluz, onde estava hospedado, até o Campo Grande para que a saudação e o elogio a sua obra feitos por Juscelino na Universidade encantassem e até arrancassem lágrimas do escritor. Desse tempo, o diplomata, acostumado a conviver no Brasil com amigos que tinham pensamentos políticos diametralmente opostos, lembra a dificuldade que tinha em Lisboa em aceitar a escassez de pontes num Portugal assolado pelo salazarismo. “Ali, ou se era favorável ao governo ou da oposição, e só se procuravam amigos entre os que pensavam da mesma forma”, escreve.

IV
Com uma prosa delicada e extremamente lírica, Costa e Silva, em meio a outros momentos de sua vida pessoal, resgata ainda as peripécias de suas primeiras viagens ao continente africano, como a que fez como integrante de uma missão especial do governo brasileiro. Na Nigéria, conta que se surpreendeu ao conhecer uma cidade chamada Porto Seguro, um vilarejo tipicamente brasileiro, com pequenas casas de alvenaria, pintadas de branco, azul ou amarelo, em que algumas casas comerciais se destacavam porque tinham no alto das fachadas ou em placas de madeira os nomes Lima, Barbosa, Da Rocha, Oliveira, Medeiros, Sousa e Da Silva. Eram casas de agudás, ou brasileiros, descendentes de ex-escravos que haviam retornado do Brasil para a África.Como se vê este é também um livro de viagens. E não só daquelas que se faz através dos livros, trajeto igualmente cumprido pelo autor, cujo percurso intelectual teve início ainda na adolescência, com a leitura de clássicos na Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, onde também ainda muito jovem começou a trabalhar, por indicação de Josué Montello. E é também um livro de retratos, e não só daqueles que privaram da amizade com o autor, mas também de grandes figuras que marcaram o século luso-brasileiro para o bem ou para o mal.
VAfricanista que escreveu livros já clássicos na historiografia brasileira como A enxada e a lança: a África antes dos portugueses (1992), A manilha e o libambo: a África e a escravidão, de 1500 a 1700 (2002), vencedor do Prêmio Jabuti de 2003 da Câmara Brasileira do Livro, Um rio chamado Atlântico: a África no Brasil e o Brasil na África (2003), Francisco Félix de Souza, mercador de escravos (2004) e Das mãos do oleiro: aproximações (2005), todos publicados pela Nova Fronteira, do Rio de Janeiro, Costa e Silva aproveitou também sua experiência de diplomata de carreira que serviu durante largos anos na África para contar uma história que é um sinal da devoção que ex-escravos dedicaram ao poeta Castro Alves (1847-1871) em Castro Alves: um poeta sempre jovem (São Paulo, Companhia das Letras, 2006).
Poeta de igual brilho e incontáveis méritos, como sabe quem leu seus Poemas Reunidos (Rio de Janeiro, Nova Fronteira/Biblioteca Nacional, 2000), recolha de trabalhos de oito livros anteriores, Costa e Silva, embaixador do Brasil em Portugal de 1986 a 1990, na República de Benim e na Nigéria, serviu na África em várias oportunidades, o que, a par da sabedoria livresca, lhe deu o conhecimento da terra e dos costumes de um continente tão múltiplo, o que lhe valeu o título de doutor honoris causa pela Universidade Obafemi Awolowo, da Nigéria.
Em 2002, publicou pela Academia Brasileira de Letras uma coletânea de ensaios literários, O Pardal na Janela, que reúne textos que já haviam sido publicados em O vício da África e outros vícios (Lisboa, Edições Sá da Costa, 1989). Foi ainda presidente da Academia Brasileira de Letras de 2000 a 2004.

___________________INVENÇÃO DO DESENHO: FICÇÕES DA MEMÓRIA, de Alberto da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 239 págs., 2007.
E-mail: sac@novafronteira.com.br______________________
Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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terça-feira, 2 de dezembro de 2008

Contos versáteis (Fernando Py)






















É de estranheza a primeira impressão que nos causam os contos de A Leste da Morte, do cearense Nilto Maciel (Porto Alegre: Editora Bestiário, 2006). Pois, além da grande versatilidade de temas e tramas e o virtuosismo do autor, com um excelente domínio de linguagem, todas as histórias apresentam um quê de insólito muito bem encaixado no desenvolvimento geral. São contos de feição quase sempre surrealista, expondo muitas vezes o que há de fantástico e absurdo nas situações vividas pelos personagens, bem como a reação destas. Vejamos uns poucos exemplos: o caráter surreal das histórias se observa em textos como “Os dez dias de Raimundo”, onde um menino, nascido de proveta, mostra um desenvolvimento intelectual bastante precoce e, em dez dias, vive uma existência inteira, indo da juventude à velhice e à morte. Alguns contos são pura fantasia de crianças, como “Trem-fantasma”; outros exibem a realidade fundida ao sonho (“Paisagem celeste”) ou a um pesadelo (“Menino insone”). Em “Sombra não identificada”, o mundo real e o virtual se interpenetram. Por sua vez, “A música” representa um caso de existência virtual que se torna real por algum tempo, antes de regressar ao mundo virtual; em “O menino e o lobo” há uma fusão de caracteres, como se o menino fosse o lobo, e este o menino; em “O livro infinito” tem-se um jogo de desencontros de personagens; em “A leste da morte”, o indivíduo capturado simboliza o sujeito “estranho” como seria tratado pelos que o desconheçam e temem, algo semelhante acontecendo com o comportamento irracional da autoridade em “O último troiano”. Em “O invisível Isaías”, o personagem que ninguém vê ou conhece é certamente criado pela imaginação das pessoas (como o de um conto de Anatole France, ‘Putois’). Parecido com este é “A fila”, de um nonsense que lembra Kafka; já “Mea culpa” é uma espécie de parábola sobre a agressividade íntima que todos carregam consigo. O volume se encerra com “Águas de Badu”, no qual Maciel cria o possível futuro de um personagem sobrevivente da grande tragédia (a enchente) do conto “O burrinho pedrês” de Guimarães Rosa (em Sagarana). Assim estas histórias, tão diversas, devem agradar justo pela variedade e versatilidade – ponto positivo para o autor.
(Tribuna de Petrópolis, 15/8/2008, caderno ‘Lazer’, p. 5)
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segunda-feira, 1 de dezembro de 2008

Soneto (Ailton Maciel)

A Altamir Xavier



Palerma, sem escrúpu1os, pedante,
trêfego, com trejeitos pueris;
metido a gente sábia e importante,
com acervo demais em seus quadris!


Doente de acoria, intolerante,
ao olhar-se no espelho tão feliz
parece até uma miss debutante
com traços de fútil meretriz.


Fala demais. Rebola sem cessar,
canta fino, e aos domingos vai orar
na capela. É doente de acrania


e de acédia. Há dez anos que estuda
mas da série primeira nunca muda.
É cheio de desgosto e hipocrisia!
Fortaleza. 9/2/65
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