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segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Cem anos de ficção brasileira (Adelto Gonçalves)



Houve um tempo, lá nos inícios da década de 70, em que contista bom no Brasil só podia ser mineiro. É claro que ainda há bons contistas nascidos em Minas Gerais, mas de uns tempos para cá o que se vê são grandes críticas mineiras, quase todas professoras militantes nas grandes universidades do Estado. Correndo o risco de imperdoáveis omissões, pode-se lembrar, assim de uma enfiada, os nomes de Letícia Malard, Melânia Silva de Aguiar, Maria Nazareth Soares Fonseca e Maria Angélica Guimarães Lopes, sem falar de historiadoras como Júnia Ferreira Furtado, Carla Maria Junho Anastásia, Eliana de Freitas Dutra e Adriana Romeiro.

Dessas, apenas Maria Angélica Guimarães Lopes fez carreira no magistério longe das montanhas de Minas Gerais, tendo se transferido para os Estados Unidos há várias décadas. Hoje, é professora de Literatura Brasileira da Universidade da Carolina do Sul, mas já passou pela Universidade de Pittsburgh e pela Universidade do Sul da Califórnia. É também editora da seção “O Conto Brasileiro” para o Handbook of Latin American Studies, a bibliografia bienal da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos.

Durante todo esse tempo, escreveu ensaios e resenhas de livros de autores brasileiros, quase sempre restrita à contística, gênero a que se dedicou, espalhando seus escritos por numerosas revistas universitárias norte-americanas que se dedicam às letras ibero-americanas, o que inclui as brasileiras. O curioso é que não tenha nunca se preocupado em reunir esses trabalhos num volume, pelo menos até a publicação de Coreografia do Desejo: Cem Anos de Ficção Brasileira (São Paulo, Ateliê Editorial, 2001), que saiu só nove depois de um apelo feito pelo escritor Manoel Lobato (1925), responsável pelo texto que cobre as orelhas do livro.

Quem já teve um livro recenseado pela professora Maria Angélica Guimarães Lopes, como este articulista1 , sabe que se trata de uma crítica de rara erudição, que constrói frases poéticas em meio a análises sofisticadas e sempre baseadas em autores de grande reconhecimento mundial, mas que, dificilmente, comparecem nas recensões que costumamos ler por aqui. Naturalmente, os largos anos de convivência no meio universitário norte-americano abriram-lhe outros horizontes, colocando-a em contato com os mais diversos ensaístas e ficcionistas das línguas inglesa e francesa. Por isso, fez vários trabalhos de Literatura Comparada, opondo autores brasileiros a seus pares de línguas inglesa e francesa, sempre com notável perícia interpretativa, como aponta o professor Fábio Lucas na apresentação.

Alguns desses trabalhos estão em Coreografia do Desejo. Um deles é o mais extenso e significativo dos 14 textos reunidos neste volume, “Estátuas esculpidas pelo tempo: imagética como caracterização em Quincas Borba e The Portrait of a Lady”, em que a mestra faz raras e percucientes comparações entre Machado de Assis (1839-1908) e Henry James (1846-1916), examinando tropos de teor metafórico usados na caracterização das principais personagens de dois romances contemporâneos de inegável valor.

Ambos tratam da influência da riqueza e posição social nas relações sentimentais dos protagonistas. Como se sabe, tanto o carioca como o novaiorquino eram admiradores do francês Honoré de Balzac (1799-1850), que foi quem levou mais longe esse tipo de caracterização.

Outro estudo, “O Banquete da Vida: Quincas Borba e O Nababo”, confronta o romance machadiano com aquele de Alphonse Daudet (1840-1897), a partir da temática da amizade traída pelo interesse, tendo como pano de fundo o império brasileiro e o francês. Em sua análise, a professora, além de ressaltar o parentesco entre as duas obras, procura mostrar o valor e a permanência do romance brasileiro em comparação com o francês.

De fato, hoje, como observa a crítica, Le Nabab, “apesar de sua pujança e sinceridade”, é pouco lido, tendo virado “peça de museu”, enquanto Quincas Borba, mais de um século de sua publicação, continua a suscitar estudos de críticos brasileiros e estrangeiros, sem contar que, freqüentemente, faz parte de listas de livros de leitura obrigatória para acesso a cursos de graduação.

Na mesma senda do comparativismo, Maria Angélica aproxima Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade (1890-1954), de João Ternura, de Aníbal Machado (1894-1964), “verdadeiros filhos do Modernismo, que contribuíram para trazer a pujança necessária à prosa brasileira”. A rigor, os dois livros são contemporâneos, embora o de Oswald de Andrade tenha sido publicado em 1924 e o de Aníbal Machado em 1965. É que a parte inicial de João Ternura é de 1926-1932, tendo ficado na gaveta por mais de três décadas.

Coreografia do Desejo oferece ainda a oportunidade ao leitor moderno de conhecer duas autoras brasileiras que estão esquecidas e reduzidas a poucas linhas em obras de referência e de consulta obrigatória. Uma delas é Júlia Lopes de Almeida (1862-1934), que foi mulher do escritor Filinto de Almeida (1857-1945), que, nascido no Porto, veio para o Brasil com 10 anos de idade e chegou à Academia Brasileira de Letras como um de seus fundadores. Filha de pais portugueses cultos (a mãe foi música e o pai médico e educador), Júlia de Almeida escreveu romances em que a temática era a família burguesa do Segundo Império e da Primeira República.

Embora seja acusada por José Carlos Garbuglio no Pequeno Dicionário de Literatura Brasileira, de Massaud Moisés (org.), de carecer de “maior penetração psicológica para criar obra significativa”, é vista sob outro ângulo por Maria Angélica, que nela reconhece “perícia em manipular elementos literários com os quais entretece fios ideológicos, conservando a harmonia e incisão próprios de um romance realista bem realizado”. Seus romances A Família Medeiros e Correio na Roça, diz a professora, atestam a seriedade com a qual a autora se preocupou com a instrução feminina, única alternativa que via para a mulher fugir da submissão ao mundo masculino.

Já Carmen Dolores, pseudônimo de Emília Moncorvo Bandeira de Melo (1852-1911), destacou-se mais como jornalista, lutando igualmente pela educação feminina, pelas oportunidades de trabalho remunerado para a mulher e, principalmente, pelo divórcio, embora não tenha sido entusiasta do voto feminino nem da incorporação da mulher à política.

O título do livro Coreografia do Desejo, que abarca um século de ficção brasileira, incluindo ainda autores modernos como Clarice Lispector (1925-1977), Oswaldo França Júnior (1936-1989), Manoel Lobato e Frei Betto (1944), vem do ensaio que autora escreveu para A Dama do Bar Nevada, conto de coletânea homônima de Sérgio Faraco (1940) publicada em 1987. Nesse texto, Faraco, um dos melhores contistas brasileiros da atualidade, a estória começa com um encontro casual em que uma mulher idosa muito maquilada e de trajes chamativos oferece a um jovem pobre e faminto, num bar do centro de Porto Alegre, os seus serviços mais íntimos, além de uma substanciosa remuneração, tudo dentro de uma conversa educada, regada a xícaras de chá.

Para a autora, o diálogo entre a velha senhora sequiosa por reencontrar o fogo da juventude e o rapaz “é também uma dança, coreografada pelo mais forte — a dama: mais velha, mais astuta e mais rica. É ela quem conduz o parceiro em direção aparentemente ignota e perigosa”. Basta uma observação como esta para se ter uma idéia da alta qualidade do trabalho analítico de Maria Angélica Guimarães Lopes.
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A COREOGRAFIA DO DESEJO: CEM ANOS DE FICÇÃO BRASILEIRA, de Maria Angélica Guimarães Lopes. São Paulo: Ateliê Editorial, 232 pp., 2001. www.atelie.com.br
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* Doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo, é autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage - o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: adelto@unisanta.br
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