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sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

Labirinto de tramas em Inventário das sombras (Nilto Maciel)




Depois de estrear com o volume de contos Dulcinéia em Hollywood (2006), sob o nome Cherlanyo Barros, mostra-nos Renato Barros de Castro o romance Inventário das sombras (Fortaleza: Governo do Estado, Secretaria de Cultura, Expressão Gráfica Editora, 2009). A obra tem duas apresentações de peso: de Tércia Montenegro e Ana Miranda. Para a primeira, as personagens de Renato “transitam por uma Polônia antiga, com paisagens misteriosas e solenes”. Segundo a jovem e talentosa contista, o forte no romance de Renato é a fabulação. Ou as intrigas e aventuras. A maravilhosa Ana Miranda, que inventou Gregório de Matos, refere-se à urdidura do romance, aos momentos de intensidade dramática, às tramas que se entrelaçam, com suas semelhanças com o conto gótico. E Renato se espreme entre essas duas maravilhas do mundo literário, sem desaparecer.

Inventário das sombras se passa numa Polônia imaginária, com referência a algumas cidades, como Cracóvia, e localidades no campo. Três notas explicativas do autor ajudam o leitor a situar a história. Na primeira parte, os personagens Michal Nowak e Irena Kaminska se acham em Cracóvia. Ao tentar pagar o trabalho de pintora dela, que lhe havia feito um retrato, ela o deixa surpreso: “Em lugar dessas moedas, me mostre a cidade. Afinal, nada conheço aqui”. Não há muitas descrições de ambiente (“a velha igreja, cuja assimétrica e intrigante fachada”; “as arcadas de um velho prédio da Praça do Mercado, depois ao lado do soberbo Castelo de Wawel e até mesmo nos arredores, nas galerias esculpidas em sal de Wieliczka”). Há descrições, sim, do aspecto das pessoas fictícias. Pode-se ver até certa glamurização da figura feminina em Irena: “Sua boca era rosada, e seu olhar mais lembrava o das virgens e ninfas dos antigos quadros da pinacoteca da cidade”. E este parece ser o ponto de vista de Michal, enamorado.

Não há nenhuma alusão a fatos históricos ao longo da narrativa. Nenhuma data, nenhuma menção a acontecimentos políticos ou sociais. Assim, o leitor não sabe se a história se passa na Polônia de hoje, na Polônia socialista ou numa Polônia mais antiga. Talvez o romancista tenha querido se esquivar de tratar assunto tão polêmico como o das transformações sociais e políticas ocorridas naquele país e naquela parte do mundo após a aniquilação do regime dito comunista no leste europeu, tendo à frente a Igreja católica (cardeal Karol Wojtyla, depois papa, e o sindicalista Lech Walesa, depois presidente da república) na luta contra o comunismo. Personagens andam de trem, mas também de carruagens. Nenhuma referência a automóveis. Entretanto, em todo o romance o que mais sobressai é o empenho das pessoas por aquisição ou conservação de propriedades imóveis, causa dos principais conflitos da narrativa.

A princípio, o leitor se depara com apenas dois personagens (Michal e Irena) e tem a impressão de que a história se desenrolará em torno deles. Entretanto, já na página 17 ocorre uma brusca mudança de foco, com o surgimento de diversos personagens alheios a um e outro (para o leitor). Os primeiros são Elzbieta, Bozena e Stanislaw Fiodorini, pai de Elzbieta. A moça, a caminho de um casamento, “com o filho do mais rico proprietário de toda a cidade de Torun”. Bozena, enteada daquela, está interessada em salvar a propriedade onde moram. O narrador se refere a um jantar das duas na casa do tal homem rico, Jan Poznanscy, pai de Polak e Antoni. Este se interessa pela visitante jovem. Surge o primeiro conflito: e Alicja? Como se vê, em poucas páginas, uma chusma de personagens invade a história e toma o lugar dos supostos protagonistas. E se inicia uma intercalação de pequenos dramas: Michal volta à cena, numa gare, em busca de Irena, enquanto Bozena e Elzbieta (que não o conhecem) também viajam no mesmo trem. Dá-se, então, a aproximação deles, e os jovens dialogam.

Michal aparece como protagonista desde o início e pode-se até fazer uma conjectura: a de que ele fosse o narrador. O romancista teria mudado o foco narrativo, entregando a um narrador onisciente a missão de contar a história. Pois Michal volta ao papel principal logo no capítulo (ou parte) dois. A participação de Michal no entrecho, no entanto, vai, aos poucos, se desvanecendo. Até se tornar um personagem secundário, quase uma testemunha, ou um repórter.

Note-se a presença de servas na taverna de Piotr, onde Michal se hospedaria, na cidade de Zamosc. O que nos remeteria a uma sociedade pré-capitalista. Inicia-se mais um conflito. O dono da pousada se irrita com o viajante, ao perceber neste interesse em conhecer o “casarão da montanha de Zamosc”. E o expulsa. “Uma noite fria e tempestuosa o aguarda lá fora”. Sem saída, o hóspede pede desculpas e promete não mais tocar no assunto casarão. Entretanto, mais adiante, toca noutro assunto que irrita profundamente Piotr, ao perguntar por Irena. Mais uma vez consegue se livrar da frialdade da rua e termina acolhido. É quando surge outra personagem capital para o drama: a criada Jalanta. “Na primeira noite de chá, Jalanta chegou ao quarto trajando um longo vestido que lhe caía, vistoso, sobre as pernas roliças”. E o leitor se vê diante de ingredientes de um romance de aventura. Jalanta termina também narradora de alguns episódios, revelações e mistérios. Conta histórias ao visitante, como a da origem da família de Irena e a casa dos Sete Erros: “Há muito tempo, quando menos ainda construções e gente existiam em Zamosc, chegara aqui um forasteiro acompanhado de uma mulher, vindos de uma terra a qual todos desconheciam” (p. 43). Surge a figura de Cyprian Kaminski. O narrador faz um longo flashback. E o personagem Michal mais uma vez se mostra como estranho ao ambiente, um estrangeiro numa Polônia sombria, como se fosse mero espectador, testemunha de oitiva de histórias misteriosas, quase que alheias ao seu entendimento. A impressão que fica é de se trata apenas de testemunha ou de repórter perdido. Se narrador fosse (e poderia sê-lo), não passaria de narrador-testemunha.

Toda a narração é permeada de diálogos bem elaborados, com os tradicionais travessões e os verbos de elocução. Aqui e ali, uma descrição de ambiente ou de personagem, sempre necessários à composição do enredo. Renato aprendeu bem a lição dos mestres do romance, principalmente os europeus. Mas não se limitou a imitá-los. Um pouco de romantismo, um pouco de realismo, muito mistério, tramas bem urdidas, como num labirinto de ações, e temos um romance pleno de intrigas.

Fortaleza, janeiro de 2010.
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