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segunda-feira, 31 de maio de 2010

Sobre danças e morte (Belvedere Bruno)


Hoje, veio-me à mente a imagem de Candinha. Todas essas comemorações em torno do Dia das Mães trouxeram à tona a simplicidade e sabedoria com que ela vivenciou seus dias. Aliás, dias esses em torno dos oitenta anos, quando a conheci no frescor de minha juventude. Gostava de falar a respeito de tudo, inclusive morte, para ela assunto sem mistérios. Causava-me admiração sempre que dizia: "Quando eu morrer, não me visitem no cemitério, pois lá jamais estarei. Sempre que quiserem estar comigo, coloquem um jarro com flores sobre a mesa e dancem, cantem, assim como faço para meu filho há dezoito anos!". Era pura magia vê-la dançar, tamanha sua entrega e emoção. Na ingenuidade de nossa a adolescência, não entendíamos que naquele momento ocorria uma catarse. A dor da perda, a saudade eram daquela forma exteriorizadas.

Decidi, então, homenageá-la. Pensaram, um tanto preocupados, que eu pudesse estar com algum problema emocional. Talvez ande um tanto nostálgica, confesso, mas coloquei um ramo de flores do campo num jarro, bem no centro da mesa da sala e fiz mais ou menos como ela fazia: cantei, mesmo sabendo-me uma desafinada por natureza. Misturei canções de Chico, Gonzaguinha, Jobim... Por aqui, nenhuma lembrança acerca dessa pessoa, cuja personalidade era admirável por ser tão fora dos padrões estabelecidos naquela época. Após muito refletir, sinto que as lembranças nunca chegam por acaso. Através delas, me descubro, de certa forma, parecida com Candinha. Portanto, quando daqui me for, não me busquem em cemitério...

Por instantes, transporto-me a um passado longínquo, mas consigo sentir, ainda, o aroma das flores ao mesmo tempo em que ouço Candinha: "Que meu exemplo seja de alguma forma perpetuado. Se apenas um de vocês fizer o que venho mostrando há tempos, meus ensinamentos não terão sido em vão. Tenham certeza de que não vale viver trancafiado em dores, pois lá fora a vida sempre vibra. Incessantemente. Um dia vocês entenderão tudo isso."

E pareceu-me ver o seu sorriso envolvendo toda aquela minha confusa, mas bem intencionada celebração.

http://www.belvederebruno.prosaeverso.net/

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sábado, 29 de maio de 2010

É preciso ser contido, às vezes (Nilto Maciel)


(O cronista e a falta de tempo para ler tudo)

Mesmo depois da extinção da revista Literatura, os escritores não deixaram de me mandar livros. Não os leio todos, por falta de tempo. Que me desculpem os amigos e os colegas.

Os mais recentes vieram de São Paulo (Daniel Lopes), Itapema, SC (Pedro Du Bois), Crato, CE (Emerson Monteiro), Brasília (Alaor Barbosa e Lustosa da Costa), Goiânia (Valdivino Braz), Mangaratiba, RJ (Emil de Castro), e Madri, Espanha (Manuel Garcia Centeno).

Conheço Alaor, Valdivino, Lustosa e Emil, de longas datas. Convivi com o primeiro por muitos anos, em Brasília. O segundo é de frequentar minha casa e de me receber na sua. O terceiro é meu conterrâneo e habita também a capital federal, sem deixar de visitar a cearense de vez em quando. O quarto nunca vi, mas com ele me correspondo há cerca de 30 anos.

Comecemos, pelo final da relação. Ou pelo mais longe de mim. Manuel Garcia “vive entre Madrid e Zalamea”. Nesta nasceu, em 1947. O livro que me mandou se intitula ¡Chachó! Contos curtos ou relatos (como está abaixo do título). Apenas 60 páginas. Impresso na Itália: Capri Leone, Messina, 2010. O primeiro parágrafo do primeiro relato é este: “Observé unos ojos ansiosos y sorprendidos que me miraban con fijeza tras la puerta entreabierta”. Infelizmente, não terei tempo de ler mais. Outros livros me esperam. Meus olhos estão ansiosos.

Daniel Lopes achou meus blogs e me mandou uns contos. Gostei do seu modo despojado de narrar, o desapego à norma culta. Agora me mandou exemplar de seu É preciso ter um caos dentro de si para criar estrela que dança. Reunião de contos. Edição do autor, 2008. Ou do site WWW.osviralata.com.br Assim o povo brasileiro fala: não usa o substantivo no plural. Daniel também emprega palavrões, gosta de narrar (contar) e de dar voz aos personagens (não deixa para trás os travessões). Escreve como se fala.

Também o gaúcho Pedro Du Bois me achou na Internet. E passou a me mandar poemas todo dia. Como é bom poeta, não deixo de publicar os poemas dele nos meus blogs. Agradecido, presenteou-me dois volumes de versos: Desnecessidades reentrâncias & alguns reingressos e Concretude da casa, ambos de 2009. Não transcreverei aqui versos dos livros. O leitor os encontrará em pedrodubois.blogspot.com

O outro que não conheço é Emerson Monteiro, cearense de Lavras da Mangabeira, terra dos poetas Filgueiras Lima, Linhares Filho, Batista de Lima e Dimas Macedo. O livro recebido por mim intitula-se É domingo (João Pessoa: Edições Fabulação, 2006). Nada de versos; são crônicas e contos ou “narrativas de proveito”, como está sob o título.

Agora chego aos livros dos amigos. O de Lustosa da Costa é Sobral que não esqueço (Fortaleza: Expressão Gráfica, 2010). Dito de memórias. Como quase todas as obras do jornalista. Lustosa é incansável escritor. Sempre apegado ao Ceará. Vive em Brasília desde 1974, mas não esquece Sobral nunca: “Este é mais um livro tendo Sobral, capital da civilização do couro no Ceará, que elegi como minha e como principal tema de meus escritos”. Falta algum vocábulo na frase, mas o leitor entenderá. O título da introdução do livro é “Não sou universal, sou apenas municipal”.

A obra recebida de Alaor Barbosa é o romance Memórias do nego-dado Bertolino d’Abadia (Goiânia: AB Editora, 1999). Epígrafes de Camões e Shakespeare. Cerca de 300 páginas. Tem início assim: “Este texto das memórias do singularmente aventuroso e desventurado goiano de Imbaúbas Bertolino d’Abadia, anotadas pelo ilustre advogado Rafael Santoro Noronha, está guardado comigo faz muitos anos.” Lembra Cervantes? Nas abas se lê o anúncio: “Poderosa criação literária, a um tempo rica em imaginação e em verdade documental, densa narrativa,escrita em linguagem apurada, base firmíssima da sua previsível perenidade. Há muito tempo não se vê aparecer,no Brasil, um livro tão bem escrito.” É ler para conferir.

Do também goiano Valdivino Braz é outro romance: O gado de Deus – Livro do Ressentimento (Goiânia: UCG/Kelps, 2009). Há semelhanças entre um e outro. Num “esclarecimento e advertência” o escritor adverte: “Fruto azedo do advento 64, este romance, sazonado entre os anos 80 e 90, inicialmente intitulado como As dores da terra antiga – agora O Gado de Deus, com outras dimensões, mantido o fulcro original –, seria o primeiro livro de uma espessa obra, desenvolvida há décadas, a espaços esporádicos, anunciada e sempre protelada, ainda por terminar, estacionada em estado caótico. Ambicioso, pretensioso, megalômano projeto”. Valdivino apareceu há alguns anos como contista (dois volumes) e poeta (dez). Como Alaor, meu amigo Braz sabe escrever.

Estou perdendo o fôlego. Mas ainda posso falar do livro de Emil de Castro: Vozes do mar (Rio de Janeiro: Edições Galo Branco, 2009). São poemas. Poucos e curtos. A primeira parte tem o mesmo título do volume. Poemas sem título. A segunda é “Exercício de marujo demente”, com 17 poemas titulados. Emil tem diversos livros: poesia, ensaio, história, infantil. O primeiro, em 1969: O relógio e o sono, de versos. Se se entusiasma com o mar (a vida), consegue se conter no dizê-lo: “Vão lentos / soprados / pura paina / espuma sobre o mar. / Se perdem no longe”.

Também consigo me conter ao escrever.

Fortaleza, 28 de maio de 2010.
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terça-feira, 25 de maio de 2010

Os abismos são para os profundos (Daniel Lopes*)





May you always do for others

And let others do for you…

...May you stay forever young

Bob Dylan


Eu era o cara velho em roupas novas que observava tudo no canto da sala. O quadro, O escolar de Van Gogh, emitia sua energia louca, parecia haver um campo magnético ou qualquer coisa assim em volta dele. Havia Modiglianis muito bons, havia Gauguin e havia Delacroix, mas Van Gogh é outro papo. Todo o museu, melhor, todo o mundo, parecia girar em torno daquele quadro. Seria o Aleph? O princípio e o fim? E a tristeza nos olhos e no olhar vazio do menino? Eu podia ver a dor do artista desesperado naqueles traços. Eu podia ver o seu amor e seu carinho pela humanidade. Eu podia ver a ternura e a tormenta em cada canto vermelho ou alaranjado. Eu tinha impressão de que, se tocasse aquele quadro, abriria uma porta pra outro mundo, pra outra dimensão, onde eu poderia abraçar Vincent e conversar sobre as coisas da vida. Eu também tinha sofrido demais. Eu também tinha perdido tudo e fracassado. Muitos amigos meus haviam desaparecido. Muitas mulheres tinham encontrado homens mais interessantes e meus filhos agora estavam longe. Há muito tempo, eu chegara a acreditar que poderia realizar algo de bonito e grandioso, agora eu era só o cara velho em roupas novas e a menina que observava o quadro era tão jovem e tão bonita. O museu estava praticamente vazio neste dia por causa da chuva. Havia cinco dias que não parava de chover na cidade e o feriado prolongado tinha feito muita gente fugir pro interior ou pro litoral. Eu gostava de dias assim. Eu gostava de passear pela cidade vazia olhando as coisas. Quando estava vazia, a cidade era meu espelho. Quando havia pessoas nela, a cidade me lembrava cocaína e eu tinha vontade de fugir e de morrer. A simples idéia do suicídio havia me ajudado a passar muitas noites difíceis, pois eu sabia que um dia me mataria mesmo e então não haveria mais nada, além da brancura de uma folha vazia.

A menina se distanciou um pouco mais do quadro, como para senti-lo de outra forma. Ainda não havia me notado no canto da sala. Na verdade, ela se parecia um pouco com a minha segunda esposa, aquela que... melhor nem falar dela. Na arte de odiar as mulheres são inigualáveis, além disso, eu... então o elevador parou e dele desceu um rapaz magro, despenteado e barbudo. Parecia muito doido. Atravessou as outras salas da exposição quase que correndo e se ajoelhou ao lado da moça, olhando pro quadro. Ela riu um pouco e então olhou pra trás e me viu no canto da sala. Acho que o rapaz também havia se dado conta da magia e da força. Não acredito em santos e nem em messias, mas acredito em Van Gogh. Acho que o garoto pensava como eu. Ele ficou lá ajoelhado por uns cinco minutos, enquanto a moça me olhava e fazia gestos indicando que o rapaz devia estar maluco.

- Eu preciso me salvar! – ele disse ao se levantar, abraçando a moça. Tem cada malandro nesse mundo.

- Não existe salvação. – Eu falei.

- Velho, você não entende, você já fez o que tinha de fazer e eu não, eu preciso conseguir.

- Essas coisas só pioram com o tempo. Porque você sente que a morte está chegando e nada muda. Então você renova as esperanças e tenta outra vez e nada muda novamente. Quando você se dá conta, as rugas já tomaram conta do seu rosto e você continua agindo feito um menino. É ridículo. Uma piada das mais sem graça.

Então a menina abriu a boca:

- É tudo tão triste. – Disse.

Droga, eu também era um menino, mas o meu corpo era velho. Isto é mesmo ridículo. Em algum lugar dentro de mim morava um homem que queria amar, mas o corpo, o corpo estava fechado para o amor. Os lábios dela eram bailarinas e o meu espírito tinha de agir como velho porque meu corpo era velho e a gente só pode ser por meio do corpo. Além do corpo ninguém sabe o que será.

- Não, não tem nada de triste. Nós ainda podemos conseguir. – Disse o menino e abraçou a moça ainda mais forte.

Ela olhou pra mim outra vez meio encabulada e eu me lembrei que também já tinha sentido as coisas daquele jeito e me lembrei dos meus amigos artistas que agora estavam mortos e eu me lembrei das minhas mulheres artistas que agora estavam mortas. Todas as pessoas pra quem eu esculpi, todas as pessoas pra quem eu pintei, estavam mortas agora. O monstro cria gerações e mais gerações pra se alimentar delas. Moloch! E toda geração acha que vai ser diferente, mas no fim fica tudo igual. Somos todos crianças sempre. Alguém aí se lembra de Judy Garland? Alguém aí se lembra de Etta James? Eu chorei ouvindo Etta James. Mantenha suas mãos ocupadas, velho! Mantenha ágeis os seus pés!

- Eu preciso beber alguma coisa. Não quero ficar com essa coisa ruim por dentro. Não para de chover e essa dor está me matando. A moça falou ajeitando os cabelos atrás da orelha.

- Eu bem que gostaria de te pagar alguma coisa, mas não tenho dinheiro. Nunca tenho dinheiro. – Disse o moleque.

- E o senhor? – Ela perguntou olhando na minha direção.

- Vamos.

Atravessamos outra vez à sala. Eu disse adeus ao Escolar e a moça apertou o botão pra chamar o elevador. Tinha um arco-íris pintado em cada unha.

***
Entramos no primeiro bar aberto. A menina pediu um copo cheio de vodka. Tinha uma sede daquelas. O rapaz pediu uma cerveja e três copos. Eu emborquei meu copo e pedi um refrigerante. Não bebia mais, havia sofrido por mais de trinta anos nas garras do mais cruel dos alcoolismos. Eles começaram a conversar. Jovens e velhos desesperançados na mesma mesa imunda. Eu fiquei quieto ouvindo. A sobriedade, como tudo o mais, tem suas vantagens e suas desvantagens. Era mesmo linda a menina. E parecia tão triste quando sorria! A tristeza deixa as pessoas magnéticas. Mesmo o humor, o melhor dos humores, esconde uma grande dose de dor e de insatisfação.

Eles beberam mais. Continuei firme no meu refrigerante. Lá fora o céu desabava. Imensas gotas azul-claras escorriam pelos vidros e pela lataria dos automóveis.

- Um dia ainda escrevo um grande livro! Posso senti-lo germinando na minha cabeça. Quando ele sair vai ser como o Werther. - Disse o menino.

- Torço por você, garoto.

- Não aguento mais beber... não tenho mais casa... não quero ir pra casa! – Disse a menina.

- Também não posso te levar pra minha casa. Moro de favor na república de uns amigos. - Emendou o rapaz enquanto pegava um dos meus cigarros sobre a mesa.

Então a menina fez uma coisa. Levantou-se. Cambaleou até mim e escorregou a ponta dos dedos pelo meu rosto.

- Você é um velho tão feio. Tem rugas tão profundas. - Disse e aí me beijou na testa, como se fosse ela a minha mãe e passou os dedos entre meus cabelos ralos.

- Se quiserem podemos ir pra minha casa. Falei.

- Eu adoraria.

Chamamos um táxi e nos escondemos ali dentro prontos pra atravessar a cidade. Não demoramos a chegar. Era mesmo bom ter vazia a cidade. Paguei a corrida e subi na frente pra cobrir os meus trabalhos. Eu não precisava mais que os outros os elogiassem. Eu era um velho. Voltei ao portão e os coloquei pra dentro. Eles beberam algumas cervejas que havíamos trazido e eu bolei um bom baseado como nos velhos tempos. E foi bem nessa hora que ficamos felizes e somamos nossas idades e dividimos por três para sermos iguais, mas, porra, eles eram mais jovens que meu filho mais novo. Sei que cai no chuveiro pra um bom banho e, quando voltei, eles estavam dormindo abraçados no meio da minha sala. Descolei uma coberta e joguei por cima. E aí peguei um lápis, uma folha de papel e os desenhei. Eram lindos. Quando terminei o desenho, peguei a câmera que eu levava sempre à mão e tirei uma fotografia. A menina abriu lentamente os olhos e, no meio de um bocejo, disse:

- Deita aqui com a gente.

Dizer a verdade é preciso, fiquei indeciso por alguns segundos, mas, ao final, também entrei embaixo das cobertas. Ela me abraçou e beijou meu rosto. Na televisão passava um velho vídeo dos Stones que minha quarta mulher havia deixado quando partiu. Um novo tipo de afeto crescia dentro de mim. Uma coisa misturada, não definida, uma coisa que eu sabia que ninguém mais havia sentido no mundo, algo feito o surgimento do amor romântico nos tempos mais cruéis do cristianismo, quando as chamas eram bem mais que uma metáfora. O que era aquilo eu não sabia, mas como todas as outras coisas intensas da vida, também me levaria para o abismo. Pouco me importava, pouco me importa. Os abismos são para os profundos. Lá fora continuava a chover.
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* Daniel de Souza Lopes é professor da rede pública estadual e municipal de São Paulo. Tem textos publicados nas revistas literárias eletrônicas Germina e Amálgama. Edita o blog: www.pianistaboxeador21.blogspot.com . Lançou em 2008 o livro É preciso ter um caos dentro de si para criar uma estrela que dança.
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sábado, 22 de maio de 2010

Conto de Nonato Costa

VELHO COSTUME – (Parte II)


Desde que chegara, sentara-se no banco próximo à porta e observava. Havia pessoas ali. No recanto à direita, sentada, uma senhora nos seus quarenta anos. Nas mãos, a xícara do café tilintava no contato com o pires trincado. Ao seu lado, os dois netos não se aquietavam. No outro, dois senhores com os seus chapéus na cabeça. Usavam bigode. Um deles tinha costeletas longas. Mantinham-se cabisbaixos e silenciosos. Esperavam a hora de sair. Em avançado estado de gravidez, uma mulher também esperava e espiava. Eram notórios o seu cansaço e o cochilo que tirava, recostando a cabeça na parede.

quinta-feira, 20 de maio de 2010

Em comum

Inocêncio de Melo Filho






Nós, homens de letras e palavras
Fomos feridos pelas mãos carrascas do tempo
Caminhamos entre os nossos contemporâneos
Como se as nossas chagas intraduzíveis
Estivessem ocultas.


Querem que falemos de nós.
Querem que sejamos específicos, objetivos.
Querem que mudemos a expressão dos olhos e da face.
Nos negamos às falácias e às vontades alheias.
Os nossos enigmas são nossos.
Tornaram-se bens, propriedades privadas de nossa essência
Não podemos partilhá-los com ninguém
É o que nos restou dos árduos combates...




Veja mais no blog transitoriodiamante.blogspot.com
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domingo, 16 de maio de 2010

Pequeníssima história infantil... (Pedro Silva)




Era uma vez um ursinho muito feio. Era tão feio que assustava-se com a sua própria imagem reflectida no espelho. Mas Deus, na sua sabedoria, dera a essa urso um bom coração, tornando-o bonito por dentro. Porém, a vida desse urso era tudo menos simples. Sentia-se triste e sozinho, qual sem-abrigo abandonado à sorte. E sofria! Muito, mesmo. Os seus dias eram monótonos e vazios, visto que o seu interior, ainda que bonito, ansiava por algo mais. Como todos os ursos da sua idade ele queria encontrar alguém a quem oferecer o seu interior, alguém com quem partilhar os seus sentimentos. Mas os seus horizontes eram muito amplos e, quiçá por isso mesmo, ou por ser feio por fora, a dificuldade em encontrar a ursinha especial fez-se sentir de tal forma que, cansado de esperar, decidiu desistir. E como desistiu!

A pouco e pouco o seu interior deixou de ser tão especial e o sofrimento foi-se apoderando da sua alma. Todos aqueles que lidavam com ele notaram a diferença mas deixaram o urso entregue a si próprio. E porquê? Porque todos se consideravam tristonhos e infelizes, pelo que aquele urso não deveria receber nenhum tratamento especial. Mas estavam todos enganados – aquele urso era especial pelo que, obrigatoriamente, deveria merecer um tratamento diferente. Quanto mais não fosse porque quando eles precisavam aquele urso estava sempre pronto a ajudar. Só que a ingratidão do mundo, aliada à indiferença natural que reinava entre os ursos, fazia com que fosse mil vezes mais fácil ignorar. E, enquanto isso acontecia, o urso feio por fora ia-se tornando menos bonito por dentro. E esse ursito, ainda que infeliz, arranjava sempre um bocadinho de ânimo ou de boa vontade para ajudar um seu próximo que sofresse. Era sempre o primeiro a acorrer a um urso em apuros, sempre o primeiro a dirigir uma palavra de reconforto a um urso sofredor, enfim, o seu interior continuava a demonstrar preocupação, carinho, amor...

Entretanto, ao seu redor, o mundo dos ursos não parava – implacável e imparável. Tal como todos os outros ursos, aquele urso especial tinha de cumprir a sua obrigação – arranjar comida para sobreviver. Foi num certo dia, ao desempenhar a sua função, que encontra uma ursa muito bonita, que irradiava uma luz muito especial, mas ao mesmo tempo com o semblante mais triste que jamais vira. O urso feio sentiu algo de tão forte que na altura não conseguiu explicar. Mas Deus, do alto do seu trono, sabia bem o que era e a definição correcta não era amor! Era algo de mais forte, muito mais forte!

O urso feio sentiu necessidade de acorrer em auxílio da pobre ursa bonita mas infeliz, só que embateu num muro de frieza. Não havia dúvida nenhuma que aquela ursa havia sofrido muito na sua escassa vida – e o urso feio era, devido ao seu interior especial, o único urso no mundo capaz de compreender, aceitar e tentar modificar o rumo dos acontecimentos, ou seja, o mesmo é dizer, fazer aquela ursa feliz. Porque o urso feio sentia que era capaz e porque estava dentro de si a noção de que todos os ursos tinham direito a ser felizes. Acima de tudo, acreditava que Deus o iria ajudar a concretizar os seus intentos.

Tentou uma aproximação suave – a ursa recuou, como num instinto de sobrevivência que, notava-se, havia sido alcançado à custa de muito sofrimento. E nesse primeiro encontro nada de muito especial surgiu, a não ser a tomada de conhecimento da existência, para ambos, do outro no mundo. O urso feio, porém, sentiu algo no seu interior que o deixava algo apreensivo – parecia que o seu corpo estava inteiramente descontrolado e que deixara de ser propriamente seu. Quem passara a ser o dono é que não sabia. Mas no dia seguinte, o certo é que voltou àquele lugar e, ainda que pelo caminho fosse bastante incrédulo em relação ao facto de voltar a encontrar aquela ursa bonita, o certo é que sentia que tinha de ir.

O urso feio desconhecia por completo que fora Deus que o colocara no caminho daquela ursa e que aquela força que o impelia a dirigir-se de novo àquele local era-lhe superior. Foi só quando, ao chegar ao lugar exacto, viu a ursa de novo ali sentada, que o urso feio sentiu que algo de muito especial estava a passar-se. E mais intrigado ficou quando, numa tentativa de aproximação mais forte, a ursa decidiu começar a falar. Trocaram nomes próprios e pouco mais, mas a ursa bonita já não parecia a mesma – ainda que se fosse notando cada vez mais o sofrimento que possuía, o certo é que o à vontade, que aumentava a cada instante, fazia acreditar que aquilo a que o urso feio se propusera podia realmente acontecer – assim Deus o ajudasse.

Nos dias seguintes, e como a ursa bonita sempre ali se encontrava, cada vez mais deliberadamente à espera do urso feio, as conversas foram-se tornando cada vez mais profundas – a ursa sofrera de terríveis acometimentos que a fizeram sentir-se a ursa mais infeliz de toda a comunidade. Incapaz de sentir-se inteiramente livre, mercê de um asfixiamento inconsciente por parte dos seus progenitores, tentara a fuga para a frente, ou seja, decidira abandonar aquela comunidade para viver noutra. Porém, desde cedo entendeu que embora todos lhe achassem muita graça, à medida que foi crescendo entendeu que o Mundo era todo igual e não havia, em lado algum, alguém interessado em ouvi-la. E o seu desencanto era de tal forma que a sua aprendizagem de vida, ainda que bastante intensa, foi de tal forma angustiante de chegara à triste conclusão que a liberdade em sofrimento era pior que a prisão com algum descanso.

A sua vida tornou-se mais pacata durante algum tempo, mas havia dentro de si algo que a atrofiava – o seu interior pedia sempre mais, mas do quê nem ela própria sabia. A vida em comunidade era muito pouco para ela e de novo sentiu-se demasiado apertada para o seu gosto. Sentindo, tal como todas as outras ursas da sua idade, o apelo do contrário, deixou-se enlear por uma necessidade e conheceu um urso garboso que lhe parecia de todo inofensivo em termos pessoais, mas que a levaria a concretizar todos os seus desejos e ambições – uma vida louca pelas florestas, livre das amarras super-protectoras dos pais ursos. E o certo é que a relação com esse urso garboso a fazia sentir-se, pelo menos, solta.

Só que a visão provocada pela ansiedade de liberdade cedo esfumou-se. Sem saber como, o certo é que a sensação positiva se deteriorou – eram ursos de feitios diferentes e, ainda que tivessem alguns gostos semelhantes, o certo é que a relação assemelhava-se a uma laranja seca: por mais que espremesse não saia uma única gota de sumo. A pouco e pouco a ursa foi-se desvanecendo da vida o urso garboso mas, no entanto, e apesar de sentir vontade de ser feliz, afirmava que era uma vergonha, perante a comunidade dos ursos, o expor de uma situação dessas. Afinal de contas, nunca nada semelhante tinha acontecido.

O urso feio tudo ouvia e registava. Tentou, do fundo do coração, ajudar aqueles dois ursos a fim de que não sofressem do mesmo mal que ele – de solidão. Tentou ajudar a ursa a levar as más palavras ao bom sentido, aproveitando tudo aquilo que de bom o urso garboso tinha. Mas a ursa bonita era demasiado livre para ser aprisionada, demasiado ela própria para ser o que os outros ursos queriam que ela fosse. E sentiu-se tentada a avançar em frente. Mas o urso feio, desconhecedor da situação, continuou na mesma toada de reconciliação, insistindo no continuar da relação entre os ursos.

Mas, com o passar dos dias, começaram a tornar-se visíveis os sinais de ruptura total – a ursa afirmava que não gostava de passear com o urso garboso na floresta e o urso feio sentiu-se tentado a desistir. Mas Deus, sentindo que só ele poderia ajudar aquela ursa, impeliu-o a continuar com o seu acto de caridade. Foi então que, com o passar dos dias, ambos se detinham mais em falar de si próprios do que de outros ursos. Existia algo entre eles – a sua relação fora feita no Céu e pelo próprio Deus. Só podia ser assim mesmo, dada a alegria que ambos agora irradiavam, isto apenas e só quando estavam juntos, porque quando afastados a tristeza voltava e dava lugar à depressão.

Parecia um lindo conto de fadas e passavam os dias a contar os minutos que os separavam do encontro – só viviam para isso. Ao fim de algum tempo começaram a sentir que alguma coisa de realmente especial estava a passar-se – afinal de contas quanto mais a ursa bonita comparava o urso feio ao garboso mais infeliz se sentia no espaço de tempo em que não estava com o seu novo confidente. Mas o urso feio não era diferente e ainda que sentisse um certo remorso ao notar que a ursa bonita aproveitava aquela oportunidade para criticar o urso garboso, o certo é que achava que aquele tempo passado com a ursa era como um pedaço de Paraíso na Terra.

Os dias foram passando e ambos os ursos sentiam já que aquilo que realmente desejavam era que aqueles momentos pudessem ser prolongados por todo o dia. Mas isso era impossível enquanto a ursa bonita não dissesse ao urso garboso o que não sentia por ele. E, o urso feio, cego de amor, pediu a Deus que a ursa o conseguisse fazer feliz. Mas Deus ficou triste com aquele pedido – o que ele lhe estava a pedir era o sofrimento de outro urso. Nem parecia próprio daquele urso que sempre tanta preocupação revelara com o se próximo. Mas, atendendo ao sofrimento que ele passara e à felicidade actual da ursa na sua companhia, decidiu atender ao pedido e, em pouco tempo, o urso garboso soube que a ursa já não tinha gosto em passear com ele pela floresta. Deus ajudou-o e ele tornou-se rapidamente feliz com outra ursa, mais simplória, mas que o fez sentir amor verdadeiro.

Tal facto abriu portas ao relacionamento entre o urso feio e a ursa bonita. Foi nessa mesma noite que o urso feio recebeu a visita de Deus na sua caverna, tendo-lhe pedido que tratasse a ursa bonita da melhor forma que o seu coração permitisse, de modo a que ela fosse feliz para todo o sempre. Porém, caso o urso feio falhasse no seu compromisso, seria castigado de uma forma que não possibilitaria recuo – a ursa deixaria instantaneamente de gostar dele e, em consequência, iria abandoná-lo de forma definitiva. O certo é que, até hoje vivem os dois, felizes, na floresta.

(A história continua... E que assim seja por muitos e bons anos!)
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Pedro Silva é português.
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domingo, 9 de maio de 2010

Pedro Salgueiro e o culto do livro (Nilto Maciel)


(Pedro, Nilto e Raymundo Netto, na casa do segundo)

Meu conhecimento de Pedro Salgueiro vem de 1995, quando participou do primeiro concurso de contos promovido pela revista Literatura, por mim dirigida. Enviou a peça “Dos valores do inimigo”, que obteve o terceiro lugar e foi publicada na edição nº 8, referente a junho daquele ano. Pouco depois (não poderia ser antes, tendo em vista que o certame se reservava a obras inéditas), ele me enviou exemplar da primeira edição de O peso do morto, no qual a pequena narrativa está incluída. Na dedicatória, chamou-me de “amigo e companheiro de ofício”. Na mesma época, Dimas Macedo, correspondente não oficial da revista no Ceará, me falou dele com muito entusiasmo. No ano seguinte, recebi O espantalho. Até então eu não o tinha visto, com ele não havia conversado. O que se daria em janeiro de 97, quando estive de férias em Fortaleza. Organizava ele, ao lado de Tércia Montenegro, o Almanaque de contos cearenses. Em golpe de mestre, planejou uma reunião de escritores no bosque da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Ceará, que receberia o nome de Moreira Campos. Para dar mais importância ao encontro, convidou a viúva do homenageado, Dona Zezé Moreira; a filha (escritora) do casal, Natércia Campos; o pesquisador, professor e poeta Sânzio de Azevedo; e os escritores “de fora” Nilto Maciel e Caio Porfírio Carneiro. Algumas fotografias obtidas naquela tarde estão reproduzidas naquela publicação.

No final das férias, regressei a Brasília, voltei à minha lida de burocrata do judiciário e aos meus velhos passatempos: ler livros de escritores novos, escrever cartas, editar revista. Nem me lembrava mais do projeto do almanaque, que projetos de editar jornais, revistas, almanaques de literatura, no Ceará, só se realizam de 30 em 30 anos, com muito esforço de um ou dois escritores (a maioria não sai da platéia, embora queira subir ao palco, e no papel de protagonista). Pedro me enviou alguns exemplares da coleção. E não deixou de mandar seus livros: a 2ª edição de O peso do morto, em outubro de 97, e Brincar com armas, em 2000. Em retribuição, eu lhe remetia a revista. Não éramos amigos, embora já fôssemos companheiros de ofício. Para que a primeira oração fosse rezada, precisávamos nos aproximar. Não para isto, decidi vir morar em Fortaleza, em setembro de 2002. Precisava fugir da secura de Brasília, da solidão das superquadras, do burocratismo arraigado na pele das pessoas, do clima de academia de letras que ronda os escritores de lá. Fugir dos espantalhos, dos mortos que andam, respiram e escrevem versinhos, dos inimigos escondidos atrás das pilastras dos prédios, que matam com armas de brinquedo.

Ao aqui chegar, procurei uns e outros escritores. Levaram-me a clubes à beira-mar, a jantares à luz de velas, a academias de musculação linguodental. Mas não me levaram aos botecos, aos bares, ao bate-papo, às sirigaitas da Beira-mar. Telefonei a Pedro: queria conhecer o Dragão, tomar uns chopes, ver a noite, ouvir as estrelas e andar de carro pela cidade que abandonara havia 30 anos. Eu conduzia o veículo e ele me guiava: entra à direita, vira à esquerda, segue em frente. Na primeira noite ocorreu um sinistro: sorvi doze chopes e falei de literaturas. Ele tomou dois e não conseguiu dizer nada. Ao se erguer da cadeira, tombou. Deitou-se no banco do carro, vomitou e dormiu. Para as seguintes noites, convidou Astolfo, Pieiro, Napoleão e outros candidatos a contistas. Ao fim da pândega, eu conduzia o embriagado narrador ao seu lar e rumava para o calçadão da Beira-mar, onde me aguardavam as raparigas em flor.

Ao cabo de alguns meses junto àquelas mesas do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, o contista Pedro Salgueiro se disse viciado em álcool. Sua mulher (de então) pediu a separação. E me acusou de desviar a conduta social (e sexual) do seu até então casto e abstêmio marido.

Passavam-se os anos, surgiam outros projetos literários, os novos escritores nos mostravam seus rabiscos, eu me mudei para o Benfica, fez o mesmo Pedro, descobrimos o bar do Assis e mais nos tornávamos amantes do álcool. Vez por outra, aparecia Carlos Emílio, a resmungar, a se dizer perseguido, copiado e plagiado. Astolfo se irritava com as observações de Pedro pela ausência de vírgulas em suas composições. Carmélia Aragão destilava francês ao redor das mesas e prometia peças como há muito não se escrevem. Raymundo Netto lia crônicas de uma imaginária Fortaleza antiga. Adolescentes ávidos de fama cercavam o pobre Salgueiro: leia esta obra literária, publique minha história. Ele fazia promessas de mundos e fundos, piscava um olho para mim, emborcava o copo e se punha a contar piadas, velhas anedotas, sempre repetidas. “A mesma história tantas vezes lida”, como escreveu Florbela Espanca.

Passaram-se os tempos. Agora os encontros se dão em minha mansão na Parquelândia. Mais atento ao hoje do que ao ontem, Pedro tenta, então, imitar Fagner, cantarola o hino do Fortaleza Esporte Clube e me pede para ligar a televisão. Quer ver o jogo do Barcelona. Faço de conta que estou surdo. Ele olha para mim com rancor leonino e deita um litro de álcool goela abaixo. Cansado disso e daquilo, conta a piada de anteontem. Todos riem. Ele bebe mais. Quando se sente menos lúcido, põe-se a analisar as próprias narrativas: Conto sempre as mesmas histórias: homem que foge da cidade, homem que regressa ao lugarejo natal; no desfecho, mato uns e outros. Por isso me chamam de Pedro Sangreiro. Na noite seguinte, conta as piadas de ontem, imita Roberto Carlos e Fagner, e fala de suas (dele) obras.

O melhor de tudo se dá quando me visita: traz com ele dez ou mais amigos. Vai logo às prateleiras, à cata de “novidades”. Vai prestar culto aos meus livros, que são dos outros. Surrupia um Cervantes aqui; alisa um Quevedo ali; pede, por empréstimo, um Dante envelhecido. Ajoelha-se diante deles, faz prece, venera os velhos tomos. Os outros visitantes não se sentem logo à vontade, descrentes. Primeiro bebem muito e falam demais. Alguns se dizem poetas de meia-tigela; outros, prosadores de meia-pataca. Um deles até quer assim ser chamado, teima nisso. Mas é poeta de muito valor: O Poeta de Meia-Tigela. Uns quebram copos e garrafas, outros sujam o tapete de lama. (Quem se lembra da canção “Edredom vermelho”, de Glória Martins e Herivelto Martins?). Esses estróinas (no sentido de singulares) das letras, muito jubilosos quando se sentem entorpecidos, logo se põem a cantar como Nelson Gonçalves. Conhecem toda a música popular brasileira. E a erudita. Netto faz da caneta, às vezes, varinha de maestro, e arremeda Zubin Mehta. São todos muito corteses: lêem meus poemas em voz alta, prometem musicar minhas composições, tencionam me filmar e me dizem eterno enquanto durar. Pedro, o padrinho desses mancebos, se mostra encabulado diante de tantas estroinices e pede licença para ir ao banheiro. Não vai, me engana. Vai ao cômodo (altar) onde repousam os mestres: Anacreonte, Baudelaire, Camões... Todo o alfabeto literário. Nosso livro sagrado.

Fortaleza, abril de 2010.
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sexta-feira, 7 de maio de 2010

A galinha e o trigo (João Soares Neto)



Reconto, com adaptação minha, estória atribuída a George Orwell que corre há décadas. Ela mostra a diferença entre os que não plantam e os que cuidam de plantar. Consta que existia uma galinha vermelha. Ela achou alguns grãos de trigo e perguntou a seus colegas de fazenda: vocês me ajudam a plantar? A vaca disse: não. O pato: nem eu. Eu também não, falou o porco. Eu, muito menos, completou o ganso. Então, eu mesma planto, falou. E o trigo foi plantado, cresceu e amadureceu em grãos dourados. Da mesma forma, na colheita, perguntou: quem me ajuda a colher o trigo? O pato disse um não, seco. Não faz parte das minhas funções, disse o porco. Não, estou só contando o tempo de serviço para me aposentar, disse a vaca. Vou nada, posso perder o seguro-desemprego, respondeu o ganso. Então eu mesma vou colher o trigo, disse a galinha. Um dia, ela convocou a todos, mais uma vez, para ajudar a preparar e assar o pão. As respostas continuaram a ser negativas: um queria hora extra; outro gozava, agora, do seguro-doença; uma disse que não sabia fazer. Enfim, nada. Ela assou, sozinha, cinco pães. Cheiravam, estavam bonitos, e todos se achegaram seguindo o aroma de pão novo e querendo comê-los. A galinha falou que não, pois estava cansada de trabalhar só e faminta. Foi aí que houve uma reunião dos quatro. A vaca falou em egoísmo e sovinice. O pato chamou-a de capitalista safada. O ganso exigia os seus direitos e o porco só grunhiu. Resolveram ir até o governo da fazenda, mas antes pintaram faixas com palavras de ordem, tipo justiça social e pão para todos. O funcionário do governo, um jaboti, os recebeu, ouviu cada relato, mandou que preenchessem formulários em cinco vias, pediu que reconhecessem as firmas, cobrou uma taxa e os despachou para o chefe. Este, do alto de sua crista, pois era um galo, disse: que se faça justiça, todos têm direito aos pães. E mandou uma intimação à galinha, dizendo que ela deveria, sob pena de prisão, repartir os pães e que aquilo era apenas redistribuição de renda, meta da fazenda. Ela aceitou calada e nunca mais fez nada. Consta ter ela entrado em um movimento social e recebe uma bolsa qualquer.
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quinta-feira, 6 de maio de 2010

Podesres (Pedro Du Bois)

Subverto o poder, condicionado ao mito,
retiro da força o apego ao gênio
literário; esmoreço o começo e me arrojo
ao mundo abaixo das vistas, entrevejo
a glória incensada das orquídeas, símbolos
e dogmas repisados ao orgulho determinado
do poder – agora subvertido – ocultado.

Reafirmo a crença no vazio
da pedra concreta da inação
do tempo: a temporalidade
do minério escavado ao corpo

despreparado, escuto gritos reais
de descobertas: o encoberto jogo
do poder sacralizado ao todo.


http://pedrodubois.blogspot.com/
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terça-feira, 4 de maio de 2010

Eça de Queiroz em aquarelas (Adelto Gonçalves*)



I

Filho de A. Campos Matos (1928), notável queiroziano, o arquiteto Rui Campos Matos (1956) herdou do pai a paixão pelos livros, pela poesia, pela literatura de um modo geral e pela obra de Eça de Queiroz (1845-1900) em particular. É o que mostra em Os Maias – Uma Antologia Ilustrada (Lisboa, Parceria A.M.Pereira, 2009) em que, acompanhando trechos do clássico romance de Eça de Queiroz, enfileira a cada página aquarelas em que procura retratar e reconstituir lugares e personagens da obra.

Quem leu Clepsidra e outros poemas, de Camilo Pessanha (1867-1926), em edição preparada por Daniel Pires (Lisboa, Livros Horizonte, 2006), e deslumbrou-se com as ilustrações que o acompanham já sabe a qualidade que vai encontrar nestas aquarelas. A única diferença é que, desta vez, não são coloridas como naquela edição de Clepsidra. Todo queiroziano, por certo, também há de recordar os pastéis que Rui Campos Matos produziu para O Mandarim, que seu pai publicou em Fotobiografia de Eça de Queiroz, Vida e Obra (Lisboa, Editorial Caminho, 2007).

Como observa Pedro Larsen no prefácio, em precisas imagens, Campos Matos, “num traço dúctil, espontâneo, seguríssimo, detecta o essencial dos ridículos das personagens queirozianas, fazendo-nos reviver episódios e situações que havíamos esquecido e nos despertam depois, além do contentamento e da surpresa do reencontro, a hilaridade do discurso desenhado”.

Entre essas personagens, Larsen destaca a baronesa de Craben, seguida de seu rubicundo marido, o pai Monforte e Maria, sua capitosa filha, o Alencar, sempre emburrado, “a braços com o realismo que tanto lhe atormentou a existência”, o melancólico Cruges, “de batuta entalada no colete”, o melífluo Dâmaso, o truculento João da Ega, e Maria Eduarda, com seus cabelos de ouro, figura enigmática e atraente que levaria Carlos da Maia a dar um passo tão trágico como é o do incesto, entre outras personagens menores – mas nem por isso menos importantes na galeria eciana – da Lisboa da época da Regeneração que, olhada através de um olhar de mais de um século, não regenerou em nada os costumes.

Além do prefácio descontraído de Larsen, o leitor, antes de penetrar diretamente nesta galeria eciana, encontra ainda um guia escrito pelo próprio autor que lhe permite recordar a trama que permeia Os Maias, romance publicado em 1888.

II

Para quem não recorda, é bom lembrar que a narrativa de Eça tem início com Pedro da Maia, filho de Afonso da Maia, personagem educado de acordo com padrões românticos, que se casa com Maria Monforte, filha de um traficante de escravos e, por isso, também conhecida como “a negreira”. Dessa união, nascem dois filhos: Maria Eduarda e Carlos. O casal se separa logo depois. A menina fica com a mãe e o menino com o pai, que se suicida, depois que a mulher foge com um napolitano.

Descendente de uma família nobre da Beira, educado pelo avô, segundo padrões britânicos, Carlos da Maia forma-se em Medicina, mas nunca exerce a profissão a sério. É um doidivanas, um desocupado que está sempre acompanhado de João da Ega, ex-estudante de Direito em Coimbra, um tipo espirituoso e adepto do Naturalismo em Literatura. Após alguns encontros amorosos com a condessa Gouvarinho, Carlos conhece, por intermédio de Dâmaso Salcede, um tipo medíocre e balofo, a mulher de Castro Gomes, um brasileiro rico, e apaixona-se por ela. A amada rompe com Castro Gomes, com quem não era casada legalmente, e vai viver com Carlos da Maia, acompanhada de uma filha, criança ainda.

É quando Joaquim Guimarães, um velho jornalista, entrega a João da Ega uma caixa de documentos a ele confiada por Maria Monforte em Paris, para que ele a encaminhasse a Carlos. Este julgava que a irmã, como a mãe, estivesse morta há muito tempo. Ega lê os documentos e, aterrorizado, vai mostrá-los a Carlos: ele e sua amada, Maria Eduarda, a antiga madame Castro Gomes, eram irmãos.

Desnorteado, Carlos volta a encontrar-se com a irmã, numa atitude de incesto consciente, de que, mais tarde, arrepende-se. Surpreendido com o reaparecimento da neta, que surgia como amante do irmão, o austero Afonso da Maia falece. A situação entre os irmãos só é solucionada após o funeral: Maria Eduarda, com a identidade esclarecida e seus direitos reconhecidos, volta para Paris, refaz sua vida e lá se casa. Já Carlos viaja para a América e o Japão, em companhia de Ega. Só dez anos mais tarde retorna a Lisboa, fixando depois residência também em Paris, onde alia a falta do que fazer ao diletantismo.

III

O que nesta obra Eça de Queiroz faz com mestria é a reconstituição da alta burguesia portuguesa e sua incapacidade de fazer a nação sair da mesmice e do atraso econômico e cultural, em que, aliás, pouco difere de sua congênere brasileira que, mais de 120 anos depois, o que conseguiu foi construir um país injusto, desigual, atrasado e imerso em violência social. Com aquele objetivo, o romancista cria muitas personagens claramente inspiradas nas figuras insossas de seu tempo e suas mesquinharias. Como observa Rui Campos Matos, a definição final desse painel da alta burguesia de sua época o escritor a dá pela boca de João da Ega, alter ego do autor, que reflete um pouco a filosofia dos “vencidos da vida”, grupo de intelectuais de que Eça também fez parte: tinham fracassado porque eram românticos, ou seja, “indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão”.

O que Rui Campos Matos procura fazer com o lápis é o que Eça de Queiroz fez com a pena: imaginar como teriam sido fisicamente essas figuras, quase todas ridículas e balofas, além de retratar alguns edifícios marcantes na obra, como o “Ramalhete”, mansão em que residiam os Maias, ou o Largo do Pelourinho, hoje Largo do Município, local em que Ega toma conhecimento do drama que irá marcar a vida de seu amigo. E o faz com tamanha espontaneidade e virtuosismo que podemos até mesmo imaginar aquelas personagens como se estivéssemos assistindo a um filme. Ou mesmo convivendo com elas no átrio do Hotel Central.

IV

Como Eça de Queiroz, Rui Campos Matos nasceu em Póvoa de Varzim. Frequentou o curso de Artes Plásticas da Escola Superior de Belas Artes e licenciou-se em arquitetura pela FAL/UTL, de Lisboa, em 1984, atividade que exerce desde essa época em ateliê próprio situado no Funchal. Mas, ao mesmo tempo, desenvolve a arte da ilustração e do desenho.

Já expôs na Biblioteca Nacional de Lisboa (2006), na Galeria da Mouraria no Funchal (2006) e na Casa de Santa Maria de Cascais (2007). Além da edição de Clepsidra e outros poemas, de Camilo Pessanha, publicou diversas ilustrações inspiradas na obra queiroziana: Fotobiografia de Eça de Queiroz, Vida e Obra (Editorial Caminho, 2007) e nas revistas Mealibra, Islenha, Boletim Cultural da Póvoa de Varzim e Jornal de Letras.
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OS MAIAS – UMA ANTOLOGIA ILUSTRADA, de Rui Campos Matos, com prefácio de Pedro Larsen. Lisboa: Parceria A.M. Pereira,157 págs., 2009. Site: http://parceria.a.m.pereira@com E-mail: parceriaeditores@net.novis.pt
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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domingo, 2 de maio de 2010

Noções de sujeito (Nilto Maciel)

(Obra de Chico Lopes)


Quando o sujeito nasceu, um anjo lhe disse: Vai, sujeitinho, ser simples na vida. E ele conheceu outros sujeitos: mãe, pai, irmãos. Sentia-se muito simples mesmo. Porque tudo ao seu redor aparentava modéstia: o berço, o quarto, as paredes, o teto. Acostumou-se com isso e nem imaginava o que não fosse natural e comedido. Entretanto, logo passou a ouvir reclamações: Você é simples demais. Trate de ser mais elegante, mais afetado. Tenha orgulho de ser você mesmo. Havia quem dissesse: Seja mais composto, mais cuidadoso consigo. Um dândi? E pensava: Como poderia ser sujeito composto, se era um? Queriam-no dois, dez, mil, plural? Não, nunca seria mais de um. Gostava de ser singular. Exigiam-lhe atitudes, modos, sem mencionar quais: Tome uma atitude, homem. Que atitude? De atividade ou de passividade? Se agia, chamavam-no de agente. Se permanecia apático, diziam-no paciente. Ou o pretendiam neutro? Nem agente nem paciente?

sábado, 1 de maio de 2010

O poema da lua (Ronaldo Monte)


Existem muitos poemas dedicados à lua. Não há poeta, creio, que já não tenha cometido ao menos um verso comovente para a lua. Desconfio que até os uivos dos lobos e cachorros sejam poemas dedicados à lua cheia.