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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Alma perdida da biblioteca (Nilto Maciel)

Nilto Maciel


Recebi exemplar autografado do novo livro de Everardo Norões: “Para o escritor e amigo Nilton Maciel, este Poeiras na réstia, pó que somos, às vezes réstia... com a admiração e o abraço de (assinatura). 02.VIII.10”. Nem prestou atenção à grafia de meu nome. Não faz mal: talvez não haja outro Nilto Maciel.

Há alguns anos recebo livros. Quase todos de escritores, que querem uma resenha, um comentário, um elogio. Algumas editoras também mandavam, desde os tempos da revista O Saco. Para divulgação. À frente da revista Literatura, que durou dezessete anos, essa avalanche de publicações quase me sufocou. Cheguei a alugar um apartamento, em Brasília, só para abrigar meus hóspedes de papel. Uma loucura, como dizia minha mulher. E dava ultimatos, diariamente: Ou eles, ou eu. Terminei sem ambos. Ela não aceitava dividir o restrito espaço do mundo com aqueles seres inanimados, empoeirados, sem atrativos: Como você pode ser tão idiota, leitorzinho. Ela talvez quisesse me chamar de leitãozinho. E me ver assado, para me comer melhor.

Também meus amigos, que são todos escritores (nunca tive amigos que não fossem escritores), me chamavam (e chamam) de idiota: Como você pode perder tempo lendo tanta porcaria e, ainda por cima, dando divulgação a ela em revistas e na Internet? E levavam (e levam), por empréstimo, o que julgam não ser porcaria. Dia desses fiz um balanço: dos vinte mil livros que ocupam (ou ocupavam) as estantes de minha mansão, menos de um por cento vale a pena ler de novo. Já me levaram Cervantes, Camões, os sermões de Vieira, os amantes de Lady Chatterley, os amores de David Herbert Lawrence.

Certamente não terei tempo de ler toda a minha biblioteca. Levaria uns duzentos anos. Mas tenho sido educado: leio as abas, o prefácio, alguns poemas, contos, páginas, e escrevo ao doador do livro umas palavras de agradecimento. Não prometo resenha, artigo, estudo. Não sou jornalista profissional, não me pagam para escrever. Não disponho de muito tempo para leituras desse tipo. Em compensação, desde 1974, data de minha estreia como escritor, envio, pelo correio, exemplares de meus livros (acho que são vinte) aos amigos escritores. Trinta e seis anos remetendo livros. Uns poucos me dirigem agradecimentos. Se todos eles leram meus livros, não sei. Alguns leram. Poucos escreveram artigos e ensaios. São escritores maravilhosos, críticos excelentes, leitores apaixonados: Adelto Gonçalves, Adriano Spínola, Aíla Sampaio, Angelo Manitta (italiano), Artur Eduardo Benevides, Astrid Cabral, Batista de Lima, Caio Porfírio Carneiro, Carlos Augusto Silva, Carlos Augusto Viana, Carmélia Aragão, Celestino Sachet, Chico Lopes, Dias da Silva, Di Carrara, Dimas Macedo, Donaldo Schüller, Eduardo Luz, Enéas Athanázio, Erorci Santana, Fernando Py, Foed Castro Chamma, Francisco Carvalho, Francisco Miguel de Moura, F. S. Nascimento, Henrique Marques Samyn, Inocêncio de Melo Filho, Jaime Collier Coeli, João Carlos Taveira, Jorge Pieiro, José Alcides Pinto, José Lemos Monteiro, José Luiz Dutra de Toledo, Laene Teixeira Mucci, Liana Aragão, Moreira Campos, Nara Antunes, Nelly Novaes Coelho, Nicodemos Sena, Paulo Krauss, Paulo Nunes Batista, Ronaldo Cagiano, Salomão Sousa, Sânzio de Azevedo, Sérgio Campos, Tanussi Cardoso e Valdivino Braz. Alguns nem conheço ou conheci (a morte os levou cedo). A todos sou muito grato.

Everardo, desculpe a demora no relacionar nomes. É que minha memória nunca foi boa e precisei buscá-los num arquivo. Desculpe também estar falando de mim, em vez de falar de sua obra. O posfácio de Manoel Ricardo de Lima é uma aula. Como ele sabe literatura! “Um poema sempre aparece como se fosse uma indefinição de si mesmo, de seu contorno, de seu absurdo; um erro.” Li alguns poemas. Você é bom poeta e está ao lado (ou na mesma estante) de Nabokov e sua Lolita, Vitorino Nemésio, Fernando Namora, José Santiago Naud e outros da letra “N” (primeira do sobrenome). Quero ler mais, porém Ana Clara me chama do quarto onde se hospedam alguns poetas esquecidos. Quer que eu leia Florbela Espanca. Gosto dela como de poesia. Gosto dela porque venera meus livros. Mas nem sempre consigo atender a seus quereres. Já vasculhei todas as estantes. Nada de encontrar a frágil Florbela. Mudou-se de lugar, decerto, e se escondeu atrás de algum poeta mais encorpado: Dante, Homero, Virgilio, sei lá. Ou a levaram meus visitantes. Chamei Clarinha: Venha ouvir um poeta novo, vindo do Crato. E me pus a ler em voz alta: “a cafeteira / me dá bom-dia /com seu gesto de prata. / digo a mim mesmo: / acorda! / levanta-te e anda! / sofre/ a alegria vã / das árvores tardias, / dos morcegos que lançam / os frutos maduros das imbaúbas / sobre os telhados. / olha em torno: / o verde indiferente, / a música fechada no piano, / a pequena formiga / e suas passadas, / a suportar / o grão de açúcar / do Universo!”

Isto, intitulado “De manhã”, é que é poesia. O resto é poeira que se vai. Ou réstia que fica por instantes. Olho para Ana Clara e sinto o que é poesia. Florbela reaparece: “Minha’alma, de sonhar-te, anda perdida”. Arrojo-me a seus pés.

Fortaleza, manhã/noite de 25 de agosto de 2010.
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