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terça-feira, 24 de agosto de 2010

Eu, fumante (Manuel Soares Bulcão Neto)

Mephistopheles (Delacroix)

O romancista João Ubaldo Ribeiro, sempre bem humorado, disse certa vez que seu epitáfio deveria ser o seguinte: "Ex-escritor. Aos cinquenta anos de idade deixou de escrever para se dedicar, em tempo integral e pelo resto da vida, a parar de fumar."

Assim como João Ubaldo, também sou um fumante típico e, "ipso facto", testemunha do poder sem igual do vício da nicotina. - Sei que, dos poucos que tentam e conseguem largar permanentemente o cigarro, uma minoria, por razões genético-constitucionais, desenvolve grande aversão ao fumo. A grande maioria, no entanto, mantém para sempre um desejo basal (nostálgico) por umas tragadas; e, em situações muito estressantes, a mão, num ato reflexo, segue direto para o bolso, onde outrora jaziam o maço e o isqueiro.

Minha primeira tentativa de me livrar do fumacê, devo-a ao avô de dois amigos meus. Senhor de fina estampa, certa vez, vendo-me smokar um cigarrete, repreendeu-me: "Como pode, um rapaz tão inteligente cometendo tamanha burrice… Você não sabe como fiquei bem depois que abri mão desse hábito." Admirando aquele ancião quase nonagenário, porém lúcido e vivaz, quis saber quando ele havia largado o tabaco. "Ah" - respondeu-me - "no próximo mês vai fazer um ano."

Quando desta tentativa, nos primeiros dias sem cigarro a vontade de fumar era fraca. Obliterava-a minha alegria de estar derrotando um monstro e o orgulho pelo meu suposto autocontrole de super-homem nietzschiano. À medida, porém, que a dopamina em meu cérebro regredia ao nível normal, o desejo de tragar voltava num crescendo exponencial. No fim do primeiro mês, mesmo tendo apelado para adesivos de nicotina e cloridrato de bupropiona, caí numa morrinha de pinto abandonado: tudo era cinzento, nada fazia sentido; sem a fumaça, até o céu infinito tornou-se claustrofóbico (não acredito que desperdicei tão belo verso com essa musa vagabunda). A sensação de falta e a tristeza se estenderam, com a mesma intensidade, até o oitavo mês de abstinência, quando um abalo emocional me fez retornar ao vício.

Não quero, porém, que esta minha confissão sirva de argumento para sádicos adictos de bodes expiatórios ora convertidos ao antitabagismo. A propósito, um destes, posando de palmatória do mundo, advertiu-me que, caso eu desenvolvesse um câncer, não deveria recorrer ao sistema de saúde público, mantido pelo imposto "dele". Ato contínuo, levei a mão ao coldre e lhe atirei estas estatísticas: o mercado brasileiro de cigarros recolhe anualmente em impostos 7 bilhões de reais; 40% deste montante (2,8 bilhões) são destinados à Previdência Social. E quanto os fumantes custam ao SUS? Em reais, apenas 338 milhões por ano. Significa dizer que nós, fumantes, não só pagamos de antemão o tratamento de nossas enfermidades como também bancamos o das doenças associadas ao bom-mocismo e à vigorexia. Acredito ser possível manter uma relação apenas recreativa com alguns produtos da planta Nicotiana tabacum. De fato, um cachimbo ou charuto nos fins de semana é muito prazeroso e não faz mal. Já todos os dias, talvez cause algum efeito colateral indesejável - como, de resto, quase tudo nesta vida.

O problema maior é o cigarro. Inventado na França (cigarette) em 1830 e produzido em escala industrial a partir de 1845, sua fumaça, por ser ácida, deve ser levada até os pulmões. Ora, a superfície interna dos pulmões, com sua vasta rede capilar, mede 80m2 (metade de uma quadra de tênis). Isso explica, em parte, o poder do cigarro de estabelecer dependência química em pouco tempo (como o crack), bem como seu alto grau de toxicidade.

Em minha juventude, fumar cigarro era um ritual de iniciação na vida adulta. Hoje, está fora de moda. Por isso, mesmo divorciado e ainda bonitinho, não consigo arranjar namorada. Sou um cobertor com orelhas "démodé".
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