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segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Os hóspedes emaranhados de Chico Lopes

Nilto Maciel

Há quase um mês o carteiro me entregou um pacote vindo de Poços de Caldas, Minas Gerais. Só podia ser o novo livro de Chico Lopes, porque não conheço outra pessoa naquela cidade. Além disso, eu aguardava a chegada desses Hóspedes do vento, anunciada várias vezes por carta. Aberto o pacote, li a oferenda: “Nilto: Parte deste livro você conhece, mas creio que vale conhecer os contos inéditos. Abrações. Chico Lopes. Agosto 2010”.

Sim, conheço alguns dos contos. Chico os enviou a mim ainda inéditos, para uma palavrinha de aprovação ou censura. Fiz-lhas. Não sei se ele me deu ouvidos.

À medida que o tempo passa, mais me faço preguiçoso, lerdo, quase idiota. Para ler um livro, levo um mês. Mesmo sendo de amigo. Sempre fui assim. Aos sete anos de idade, ainda não sabia ler. Meu irmão mais novo, Edinardo, lia jornais desde os quatro. Papai soube da eleição de Getúlio Vargas pelos lábios do pequeno Nardo, que assim o chamávamos, carinhosamente. Quase morreu de raiva. Udenista convicto e ardoroso, não acreditava na derrota de Eduardo Gomes. Por pouco não deu uma surra de cipó no filhinho muito sabido. Para escapar de sua fúria, rasguei os jornais e pisei na cara do ex-ditador.

Sempre fui retardado. Quando meus amigos e minhas amigas liam Faulkner, Joyce e Kafka, eu ainda lia Alfred de Musset, Camilo Castelo Branco e Coelho Neto. Continuo lerdo. Há mais de trinta dias não largo os contos de Chico Lopes. Enquanto isso, muitos o entrevistaram, como Ivone C. Benedetti e Silvana Guimarães, e outros escreveram resenhas: Alfredo Monte.

Conheci Chico Lopes há poucos anos, depois da publicação de Nó de sombras (2000), seu livro de estreia, e de Dobras da noite (2004). Escrevi até uma resenha, que anda pelos jornais e blogues: “A prosa com arte de Chico Lopes”. Nela, que é de agosto de 2006, observei: “Sem querer filiar a prosa de Chico Lopes à de outros ficcionistas (Cornélio Penna, Lúcio Cardoso, Clarice Lispector, Poe, Dostoievski, Henry James, de quem é tradutor), é impossível não ver em sua obra “o homem com seus problemas interiores, sua angústia, suas meditações sobre o destino, a morte, o além”, como observou Afrânio Coutinho na literatura de Cornélio Penna. E, sem querer trazer à tona a velha questão “literatura social” em oposição a uma “literatura espiritualista”, talvez as peças de Chico Lopes representem a volta de uma literatura menos “realista” ou “naturalista”. Uma literatura muito mais próxima da arte do que da notícia”.

Fiquei fascinado desde a primeira leitura. Chico não conta histórias, não relata fatos, não faz crônica urbana, mas também não se perde em elucubrações, em ziguezagues verbais. Faz como as aranhas: emaranha o leitor (e os personagens) em teias invisíveis. E os cativa, aprisiona. Estou servo dele. Desde semana passada. E temo disso não me livrar tão cedo. Aparvalhei-me, como quando pisei na cara do ditador, sem saber que anos depois me veria envolvido nas malhas de um amor de perdição, nas vibrações do fogo fátuo ou de une chose sainte et sublime.

Mas deixo de lado esses passeios pelo passado, porque devo ler os contos de Chico Lopes, antes que os apelos do mundo me façam voltar à rotina. Entretanto, ouço um tinir de sons vindos da rua. É a voz de Violeta Feitosa, a estudante de Letras que adora meus contos na fase embrionária (não gosta deles já nascidos, prontos para impressão ou desfrute). Mas, meu Deus, isto são horas de pecar?

Ponho-me a ler, em voz alta, o primeiro conto de Hóspedes do vento: “Antes de tudo, era necessário não escutá-lo. Ou, escutando-o com cuidado, com a reverência de quem precisasse reter cada nota de uma música cuja raridade faz com que se suspeite que não será ouvida novamente, negá-lo depois.”

Fortaleza, 19 de setembro de 2010.
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