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segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Dalton Trevisan e a desgracida moral (Nilto Maciel)

(Vênus e Cupido, Lucas Cranach, o Velho)

Não lembro quando li ou ouvi pela primeira vez o nome de Dalton Trevisan. Deve ter sido em jornal. Ou ao passar diante de livraria, em Fortaleza. Imagino depois de 1959, ano da primeira edição de Novelas nada exemplares. Naquele ano, eu só conhecia um pouco (e olhe lá) de José de Alencar, Machado de Assis, Coelho Neto e outros sujeitos que tinham escrito muito antes de eu nascer. Nem falavam (professores e livros de português) em modernistas.

Passados dez anos, envolvido com a ideia de revolução socialista, eu lia Marx, Engels e Lenine, e conhecia um pouco mais daqueles sujeitos que tinham escrito muito antes de eu nascer. Não dispunha de dinheiro para comprar livro. Ouvia falar de Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Moreira Campos, Dalton Trevisan e outros escritores surgidos depois da Semana de 22. Mas não os conhecia, não os lia, porque não sobrava dinheiro para comprar livro. Logo, porém, conheci um rapazinho que bebia cerveja, cantarolava Chico Buarque e andava sempre com um livro novo. Talvez fosse 1970. Ou pouco mais. “Que livro é esse, Victor?” (Falo de Victor Cintra, que, naquele tempo, escrevia poemas e contos e me emprestava livros e se tornou professor de linguística). “A guerra conjugal. Quer ler?” E assim fui conhecendo e lendo Dalton Trevisan e outros escritores do meu tempo.

Pois leio Trevisan desde aquele tempo difícil (para mim, que andava de ônibus e não tinha dinheiro para comprar livro, e para o povo brasileiro, que andava de ônibus ou a pé e não tinha dinheiro para comprar pão). Leio e releio Dalton Trevisan, como leio e releio Machado de Assis.

Agora, 2010, cinquenta anos depois de ouvir o nome de Dalton pela primeira vez, ganhei um presente dele. Um livro: Desgracida. Trouxe-o meu amigo (admirador do velho vampiro, como eu) Pedro Salgueiro. Está assim dedicado: “Ao Nilto Maciel, cordialmente, Dalton Trevisan. Outubro 2010”. Obrigado, mestre! (Só isto posso dizer, cordialmente, de coração.)

Não sou crítico literário (apenas rascunho umas opiniões de leitura, de vez em quando) e, por isso, não estou aqui para analisar a obra do contista nascido em Curitiba. Nem este novo livro dele. Só digo que o li de cabo a rabo. Noventa ministórias (breves contos, micronarrativas, brevíssimas histórias) e quatorze cartas, as “mal traçadas linhas”. Por que estão aí ao lado da ficção? Serão tudo – contos e cartas – retratos do mesmo álbum? No mesmo livro, Pedro Nava, Otto Lara Resende, Rubem Braga, certa “Cara Senhora”, um “Caro X”, um “Senhor Prefeito”. Farpas e elogios. Como este a Nava: “Você é todos eles e mais você mesmo”. Sabem quem são “eles”? Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos e outros.

Trevisan é um libertino da literatura. Não escreve para agradar ao censor. Será ele livre para escrever? Se é livre, sê-lo-á porque escreve? A liberdade não é pessoal e subjetiva, mas universal e objetiva. A liberdade é incompatível com a moral (e a religião) e a lei (o estado). Só haveria liberdade se não existissem a moral e a lei.

A pornografia e o erotismo estão em mundos opostos ao da moral e da lei. Quaisquer que sejam elas. Em “Pobre mãezinha”, o filho explica à mãe: “Transar é um menino beijar na boca de outro menino! (...) Transar é o menino pôr o pipi na popoca da menina! (...) É isso o que o pai faz... na minha mãe! (...) É isso... Então é isso... Na minha pobre mãezinha!”

Trevisan não tem medo de ser chamado de pornográfico, obsceno, erótico. Outros o foram e sobreviveram, tal como a moral e a lei. Não tem medo de ser acusado de imoral e ilegal (fora-da-lei, bandido). De ser julgado por pastores, padres, profetas, santos, deuses. De ser condenado à prisão, ao banimento, ao apedrejamento, ao enforcamento. Pelos moralistas e pelos legalistas (juízes, senadores, jornalistas).

Falou-se tanto de muro (o da vergonha, sobretudo). Derrubado, não se fala mais nele. Mas Dalton Trevisan sabe onde ele fica: “Entre a mão e o seio há o muro”. Isto é um conto dele. Não está assim disposto, como uma simples frase, uma afirmação. Está quebrado, distribuído na folha, como poema. O muro é a censura, a moral, a lei. A impedir o ato sexual. A proibir o ato sexual. A obstruir a ação, o movimento, a vida. A liberdade.

Mas Trevisan não é só a moral dos fabricantes e vendedores de roupas para cobrir as vergonhas dos humanos: “ó bunda bundinha bundona”. Ou dos comerciantes de binóculos, esses objetos feitos para o pecado dos voyeuristas: “Beijos molhados na penugem do pescoço”. Nem dos que fabricam e vendem televisores para expor a nudez das beldades e o castigo dos expectadores: “cada uma canteiro florido / girassóis afrodisíacos / inebriando o tempo e a história”. Trevisan também expõe a miséria social, e disso sabemos seus leitores. Miséria social e individual: meninas que se prostituem, mulheres que apanham de homens, homens que apanham da vida.

Fortaleza, 27 de outubro de 2010.
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