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quinta-feira, 30 de setembro de 2010

Le horla (Guy de Maupassant)

(Nota do editor deste blog:
Publiquei ontem a versão portuguesa do famoso conto de Guy de Maupassant. No entanto, há quem prefira ler no original. Remeto, pois, os leitores ao seguinte endereço: Textos de Maupassant Seguem abaixo as primeiras páginas de "Le Horla", como amostra.

                                                              

quarta-feira, 29 de setembro de 2010

O Horla (Guy de Maupassant)


8 de maio. Que dia lindo! Passei a manhã toda deitado na relva, na frente de casa, sob o enorme plátano que a encobre toda. Gosto desta região, de viver aqui, pois aqui estão velhas recordações, aquelas raízes profundas e delicadas que prendem o homem ao solo onde seus antepassados nasceram e morreram, que o ligam às idéias e costumes do lugar e também, à comida às expressões locais, ao cheiro da terra do próprio ambiente.

terça-feira, 28 de setembro de 2010

Ivone C. Benedetti entrevista Chico Lopes

Ivone C. Benedetti é tradutora e escritora. Formada em Letras pela USP, doutorou-se em Literatura Francesa, defendendo tese sobre Charles d’Orléans e a tradução de sua poética. Como tradutora, atua há mais de vinte anos, tendo trabalhado para várias editoras. Entre outros autores, traduziu Barthes, Montaigne, Voltaire, Ricoeur, Merleau-Ponty, Althusser, Balzac, Simenon. Organizou e coordenou o Dicionário de Italiano Martins Fontes (WMF Martins Fontes). É autora de A Arte da conjugação dos verbos em português (WMF Martins Fontes) e co-autora de Conversas com tradutores (Parábola). Recentemente, publicou seu primeiro romance, Immaculada, pela WMF Martins Fontes.

segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Poemas de Carmen Silvia Presotto

(Quadro de Chico Lopes)


De mim


algo não pode falar




uma cegueira


um coágulo




cavalos entre retinas


retalham os sonhos




de mim,


hoje não posso escrever


tropeço em pesadelos




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Velha de mim


cansada de atos


cansada de fatos


de fato cansada




*******


saio à rua


troco paisagens


rebusco abraços


sem mim


lotada de outros


escrevo
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domingo, 26 de setembro de 2010

Por que filosofar? (Relendo os estóicos)

(Sêneca desenhado por Peter Paul Rubens)

Emanuel Medeiros Vieira

Por que filosofar? Porque a filosofia – além do conhecimento – pode nos ajudar a viver. Vejam os filósofos estóicos. Eles nos ensinam a lidar com as perdas e as vicissitudes da vida. E a passagem do tempo. Insisto: filosofar é fundamental. Na reforma de ensino, retiraram a filosofia da grade curricular; Tiraram uma oportunidade rara para o brasileiro pensar. Quem tem menos de 60 anos, em nosso país, nunca estudou a matéria. Não estou pedindo para que viremos especialistas, mas que aproveitemos melhor nossa passagem na terra. Nos últimos 200 anos, a despeito de todo o sofrimento, o mundo ocidental viveu sob o domínio de uma crença no progresso, baseada em realizações científicas e empresariais extraordinárias. Tivemos guerras sem fim, o holocausto, sofrimentos, golpes de Estado, exploração e desrespeito constante ao homem cometido pelo próprio homem. No Ocidente, as lições sobre o pessimismo derivam basicamente de duas fontes: os filósofos estóicos romanos e o cristianismo. “Talvez seja a hora de revisitar esses ensinamentos para aliviar nossos pesares”, ensina Alain de Botton. Hoje, vamos meditar sobre a obra de um pensador estóico. Sêneca (I a.C. – 65 d.C) seria um filósofo perfeito para o nosso momento histórico. Vivendo numa época de tremenda inquietação política (Nero ocupava o trono imperial), Sêneca interpretava a filosofia como uma disciplina que servia para nos manter calmos diante de um panorama de constante perigo. Sêneca lembrava no 62 que desastres naturais ou de causa humana serão sempre parte de nossas vidas, por mais sofisticados e seguros que acreditemos nos termos tornado. O filósofo escreve que “não existe nada que a fortuna não ouse”, mas lembra que devemos ter em mente o tempo todo a possibilidade dos mais devastadores eventos. Recordemos só alguns episódios: tivemos duas guerras mundiais. Basta lembrar o sofrimento que elas causaram. Sêneca diz mais: “Nada nos devia ser inesperado. O que é o homem? Um vaso que ao menor impacto, pode quebrar.”

sábado, 25 de setembro de 2010

Três minicontos de Leonardo Brasiliense

Em nome do show


Na parede da cela treze, a grande fotografia da famosa atriz da pornochanchada surpreende as novas detentas. As outras vão logo explicando que ali ninguém é fã, ela está é presa. Isto mesmo, fotografia presa, por assassinato. Esqueceu de se limpar e foi denunciada pelo sangue da vítima. Teve direito a se defender, julgamento justo, mas consentiu com o silêncio à reconstituição sugerida pelo promotor: o retrato, na sua áurea juventude, não suportou a flácida atualização da atriz que insistia em acompanhar o tempo, saiu da parede e deu um tiro na cabeça da velha. “Pecou por ignorância”, concluiu o promotor, “é compreensível o seu medo, porém, todos sabemos, fotografia não envelhece... no máximo pega mofo”.

A mãe do Silvinho

Ela disse que o meu amiguinho não estava em casa mas me mandou entrar. Disse que gostava de mim porque eu era comportadinho e que ela queria conversar comigo um pouquinho. Me levou para o quarto e disse vem, senta aqui no meu colinho...
Me deu um tapão na cabeça porque a chamei de tia.

Gente complicada devia ficar em casa

Dá um troco, tia. Você pensa que eu não sei que é pra tua mãe comprar cachaça? Não é pra ela não, é pra mim mesmo. Você não tem vergonha, pedir um troco pro leite e depois comprar cachaça? Mas eu não falei em leite, eu só disse dá um troco, tia. É pra você mesmo? É. E pra que é? Pra comprar leite. Toma.

(Outros minicontos de Leonardo Brasiliense em www.leonardobrasiliense.com.br)
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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Três poemas de Pedro Du Bois

(Quadro de Chico Lopes)

ADEUSES


De todos os adeuses somos testemunhas
peregrinos de escuras vistas dos desencontros
entre as dunas e nas fechadas florestas petrificadas
dos sinais compreensíveis de abrir e fechar


vamos embora em cada tempo: têmpora cinzenta
o corpo dói a despedida na dor da ausência


nos reencontros na frustração avistamos
e reconhecemos não nos interessa o passo


o atraso bem vinda forma de desencantos
na urdidura de novas despedidas: somos
agora os que foram embora e ainda não é noite


nos adeuses voltamos sobre nossos passados
encobertas memórias: estreitas ruas
sem passagens e olhos postos sobre os idos
tempos. Acenamos sem voltar o rosto.




MEDOS

Trago o medo irrecorrível da infância
e o efêmero como no começo
dos escuros e dos barulhos não identificados
aos silêncios e claridades dos tempos tardios

trouxe na lembrança o início e a multiplicação
no crescimento das imagens irrefletidas
sobre realidade gongóricas da sobrevivência

retiro do medo sua essência: eu mesmo,
e o deixo derramado - esparramado -
nas instâncias cedidas uma a uma
como tormentos e sofrimentos cultivados

realizo medos atávicos adquiridos
e os escuros nichos demonstram o sacrifício
de conviver o claro o silêncio e a brandura
imaculada dos esquecimentos diários.

ÉPOCAS


Desdobrada vida: introduzida
época de conquista: medos
e persas em desabalada fuga
– o egípcio olha
com desdém e desgosto –
dos hinos e cânticos
escondidos em escuras roupas
e promessas não alcançadas:
ao credo fé e enlace
entre a história e os vencedores
das batalhas em corpos mutilados
e destroços céticos: em nada
acreditaram os deuses desde o exílio
houvesse a volta e o planeta
– mágica e mistério – tomasse
outro rumo alterasse o prumo e o eixo
endireitasse: o fogo e as trevas
em desdobramentos
de inépcias conhecidas.

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quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Pontos na paisagem (Caio Porfírio Carneiro)


Respirando o ar quente, suado, extenuado, sacola pendurada nos dedos, com a outra mão procurava livrar-se da poeira que lhe entrava na roupa, nos olhos, nos poros. E o estirão se alongando. Viu o casebre com pequeno alpendre, arriado, cochilante. Aproximou-se, bateu na porta e arriou-se no banco tosco, no alpendre. Sacola ao lado, abanou-se, desabotoou-se, estirou as pernas, quase cochila. Ali ficou, entregue.

Suspirou fundo, levantou-se, olhou demoradamente o estirão em todas as direções. Só vento, poeira e a árvore desgalhada ao lado do casebre. Bateu forte na porta e ela se abriu. O pote, não muito distante, caneca ao lado. Bebeu a água salobra até se fartar. Olhou em volta. Alguns tamboretes. Nenhum armário, louça ou mesa. Uma rede entrouxada, pendente do armador.

Balançou a cabeça:

– De quem será isto?

Olhou longamente, através da janela, o estirão e a poeira fina navegando no silvar do vento. Fugindo de tudo e com saudades dela armou a rede puída. Deitou-se, suspirou fundo:

– Depois da desgraça feita qualquer lugar serve.

Levantou-se e jogou sobre um dos tamboretes os sapatos de solas gastas, o resto de meias, e, quase despido, estirou-se melhor e coçou o corpo todo.

Adormeceu.

Acordou com os solavancos no punho da rede. Abriu os olhos, estremunhado e perplexo:

– Você veio?

Ela, ali em pé, rota, esquálida e muda.

– Como me encontrou?

– Segui seu rumo.

– Ah.

– De quem é esta casa?

– Não sei.

– Por que você fez aquilo?

– Precisava.

– Que horror.

Apenas fechou os olhos. Ela tossiu:

– Posso me deitar um pouco com você? Estou morta.

Ele lhe deu espaço na rede e ela, pequena trouxa no chão e o vestido uma nuvem de pó, acomodou-se ao seu lado.

Apertou a mão dela:

– Durma um pouco.

– Não vou conseguir.

Nada respondeu e ouviam apenas o silvar do vento lá fora. Silvava, silvava, silvava...

Acordaram com a claridade da manhã entrando pelas frinchas da porta e da janela. Ele esfregou os olhos:

– Não apareceu ninguém.

– Vai ficar aqui?

– Vou continuar.

– Não quer voltar?

– Nunca.

– Que horror.

– Esqueça.

– Estou com sede. Tenho pão.

– Ali há um pote e uma caneca.

Ela levantou-se. Voltou ajeitando o vestido. Deu-lhe um pedaço do pão:

– Não trouxe nada?

– Só umas coisas na sacola.

– E eu esta trouxa. E uns pedaços de pão.

Beberam quase todo o resto da água. Ajeitaram-se e saíram para o tempo. Envolveram-se no descampado. Ele sopesou a mochila, ela ajeitou a trouxa no braço.

– Por que você veio?

Ela voltou a ajeitar a trouxa:

– Não sei.

Olhou-a nos olhos:

– Vamos?

– Para onde?

– O fim do mundo não deve estar tão longe assim...

Saíram caminhando lentamente.

Dois pontos que se foram perdendo na paisagem, sibilante de vento e de poeira navegante.


São Paulo, 14/02/2010 – às 08:00 hs.
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Poema de Silmar Bohrer




São dourados os caminhos


que hei tido percorrido,


impregnados pela libido


dos meus sagrados versinhos.




(20/9/10)
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quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Beleza tirana (Manuel Soares Bulcão Neto)

(O fumante de cachimbo, de Paul Cézanne)

Uma das coisas de que mais me orgulho foi ter influenciado a decisão da minha filha de jamais pôr cigarro e gota de álcool na boca (até o antisséptico bucal que ela usa não contém etanol). Não, não sou abstêmio e antitabagista, muito pelo contrário. Sua escolha, ela a tomou em razão do meu pigarro atroz e do meu ronco domingueiro de capotado, cacofonias que atrapalhavam seu soninho de princesa. Ah! Outras atitudes minhas também foram determinantes em sua sábia resolução de se formar em Medicina… e se especializar em Psiquiatria. (Conforta-me moralmente saber que estou desempenhando bem minha função paterna: dar exemplos. Aqueles que não devem ser seguidos, eu aviso e, com a linguagem do meu corpo desmazelado, demonstro o porquê.)

Microficções

O Selo 3x4 microficções estreou em março deste ano com o livro Prometo ser breve, do escritor paulista Wilson Gorj. De lá para cá, já publicou mais três livros de micronarrativas: Estranhos muito íntimos, do mineiro Márcio Almeida, Nem mesmo os passarinhos tristes, Mayrant Gallo (Bahia) e, em agosto, o livro Bonsais Atômicos, de Denison Mendes (RS). A quinta publicação veio a público no último sábado, dia 18, com um autor também na Bahia. Trata-se do livro A segunda sombra (minicontos), do escritor Carlos Barbosa, que já publicou os romances A dama do Velho Chico e Beira de rio, Correnteza, ambos pela Bom Texto Editora.
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terça-feira, 21 de setembro de 2010

Sobre filhos e escolhas (Simone Pessoa)

A mulher chorava porque já havia tentado tudo e não conseguia avanço no direcionamento do filho. Ele não se dedicava aos estudos, nem arranjava trabalho. Embora um tanto boêmio, não fazia arruaças nem usava drogas. Era um garoto bom e gentil. Seu maior pecado: ser bon vivant e não ter convicções quanto ao futuro. Afora isso, era honesto, sociável, conquistava amizades e gostava de ajudar as pessoas.

segunda-feira, 20 de setembro de 2010

Os hóspedes emaranhados de Chico Lopes

Nilto Maciel

Há quase um mês o carteiro me entregou um pacote vindo de Poços de Caldas, Minas Gerais. Só podia ser o novo livro de Chico Lopes, porque não conheço outra pessoa naquela cidade. Além disso, eu aguardava a chegada desses Hóspedes do vento, anunciada várias vezes por carta. Aberto o pacote, li a oferenda: “Nilto: Parte deste livro você conhece, mas creio que vale conhecer os contos inéditos. Abrações. Chico Lopes. Agosto 2010”.

domingo, 19 de setembro de 2010

Poema de Nuno Gonçalves e seu blog

Do poeta Nuno Gonçalves


poemas como este:




UMA ASPIRAÇÃO AO INFINITO




de um quadro De Chirico


escapa uma colagem Ernst


que num vôo insuspeito


atravessa a américa até o ponto exato


onde o vômito de Artaud


mareado pelo peyote


transcende o espírito sectário


revelado no último gesto da vanguarda


na música escandalosa da explosão das torres gêmeas


por detrás de um óculos de aros negros


saltam quarenta ladrões desesperados


e com todo erotismo possível a uma língua


acusam Breton, o Terrível


um ali babá entre tantos outros


um sai baba de muletas & parangolés


à direita de tudo


faísca um instantȃneo da intelligentzia


No salão nobre da casa branca


sorri um artista que não é árabe


assistindo ao vivo na televisa


a impiedosa execução de seu último poema concreto:
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Alaor Barbosa na Academia de Letras do Brasil

DISCURSO DE DANILO GOMES, RECEBENDO ALAOR BARBOSA NA ACADEMIA DE LETRAS DO BRASIL, EM BRASÍLIA, EM 9-9-2010.


Sr. Presidente da Academia de Letras do Brasil e da Associação Nacional de Escritores-ANE, Ministro Fontes de Alencar; escritor Eurico Barbosa, da Academia Goiana de Letras; poeta Anderson Braga Horta, representando a Academia Brasiliense de Letras.

Senhores acadêmicos, senhoras e senhores familiares, amigos e admiradores do escritor Alaor Barbosa, em especial sua esposa, filhos e irmãos.

sábado, 18 de setembro de 2010

Pele e osso: Carta ao Brasil (Tânia Du Bois)

“I

Te escrevo Brasil / com o osso / mais velho / que te sustentou.

II

Te escrevo / no olho da luz / antes da primeira / fome / com a fome / de tua boca...

VI

Te escrevo / com o berro / de qualquer coisa / com o coice / que devastou no ar /

perseguição da palavra / para tamanha / falta de vida

VIII

Te escrevo / com o couro / aninhado / na balas / com a bala / fugida / da ignorância /

com o estouro / dos miolos

IX

Te escrevo / com o sol / esvaziado sobre os ossos / com a corda / do soluço

XIV

Te escrevo / porque somos / tua própria / geografia

XV

Te escrevo / porque ardemos / nas veias / de tua / indecisão

XVI

Te escrevo / porque / já não és / um gemido / de mundo / mas o próprio / mundo /

a apalpar-se / em nós."

sexta-feira, 17 de setembro de 2010

Estado Novo no Brasil e em Portugal (Adelto Gonçalves*)

I

Tanto no Brasil como em Portugal a República reinstalou a instabilidade política, depois de uma fase sem golpes, quarteladas e outras formas de manifestação política fora dos meios institucionais. Nos dois lados do Atlântico, caminhou-se em direção a sistemas ditatoriais, ambos denominados da mesma forma: Estado Novo. As semelhanças, porém, param por aí, como mostra o professor Leonardo Prota, doutor em Filosofia pela Universidade Gama Filho (UGF), do Rio de Janeiro, e diretor-executivo do Instituto de Humanidades, de Londrina-PR, em seu ensaio “Estado Novo no Brasil e em Portugal – características distintivas no processo de constituição”, apresentado durante o VIII Colóquio Antero de Quental, cujas atas foram reunidas na revista Estudos Filosóficos, do Departamento das Filosofias e Métodos da Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ)-MG, nº 3, julho/dezembro 2009.

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Sim, é o céu, Joyce (Nilto Maciel)

(The Garden of Eden (1828), de Thomas Cole)



Achava-me a ler uma crônica de Francisco Miguel de Moura, para minha pupila Violeta Feitosa, que me visita uma vez por semana, pelo menos, quando me chamaram ao portão de casa. Ninguém grita meu nome no meio da rua, a não ser o carteiro Evaristo. Pedi licença à estudante e corri, aos tropeços – que ando a cambalear, sobretudo quando imerso na beleza –, para atender o chamado do condutor de malas postais.

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Manhã de domingo (Silmar Bohrer)




Anda um pica-pau tinhoso


picando ali na madeira,


e o meu "bosco", receoso,


"vais derrubar a perobeira !"
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terça-feira, 14 de setembro de 2010

A respeito de "Jogo de palavras de Joaquim Branco"

Emanuel Medeiros Vieira

Muito tocante a tua crônica, Nilto. Extremamente lírica. Mais velhos, parecemos, como dizer?, mais enternecidos, mais compreensivos com o mistério da vida e do mundo. Não? Antônio Cândido falava da simpatia humana do homem desencantado. A situação que transfiguras (um momento da vida) -, pegar um envelope, a moça linda, aquela velha e boa lubricidade contida, que não pode nos largar, a homenagem ao Joaquim, Branco. Falo isso desde os 20 anos: mas ainda me dói o esquecimento pela maioria de tanta gente boa, tanta gente esquecida. Mas toquemos. Parece que estás mais solto, mais lúdico, mais terno. Eu também não sou mais o "fundamentalista ideológico", irado, como um pároco... Na outra encarnação, devo ter sido pregador... Agora, "toco" a vida. No fundo, penso muito no tempo, e sou um velho existencialista... Perdoa o psicologismo deste pobre homem do Desterro... Parabéns! Abração do Emanuel (Medeiros Vieira)
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Hóspedes do vento, de Chico Lopes

(Publicado originalmente em “Monte de leituras”, blog MONTE DE LEITURAS do Alfredo Monte, )

Jorge Luis Borges afirmava que Henry James era um “habitante resignado do Inferno”. Ao longo das coletâneas Nó de Sombras (2000) e Dobras da Noite (2004), Chico Lopes—não por acaso tradutor e admirador do autor de A Volta do Parafuso—delineou muito claramente o “Inferno” específico por onde se movem seus personagens. Em termos espaciais, ele poderia ser circunscrito pela seguinte passagem, que consta do seu terceiro livro, Hóspedes do Vento, lançado este ano (pela Nankin):

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Linguajar (Pedro Du Bois)

Construo a linguagem apropriada:

ao verbo movimento peças impensadas


comunico ao próximo a desestruturação

da diversidade: respeito as diferenças


avento ao tempo o substantivo

necessário à nominação

do espaço: reajo ao silêncio.

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domingo, 12 de setembro de 2010

Jogo de palavras de Joaquim Branco (Nilto Maciel)


Os jornais falavam das Torres Gêmeas, atentados terroristas, muçulmanos, vinganças cristãs. Joguei-os todos ao lixo, para me maravilhar com o maravilhoso da vida. Conversávamos em minha casa, ao som de Sibelius, bem baixinho, eu e a belíssima Violeta Feitosa, estudante de Letras, quando o carteiro me chamou da calçada. Todo dia ele grita meu nome, para espanto das vizinhas que olham a rua como espiãs, por trás das cortinas, das venezianas, das brechas das portas. Querem saber por que um velho escritor está sempre a receber visitas de mulheres vindas de muito longe, talvez das estrelas.

Amor filial (Mariel Reis)

era meu irmão. eu não queria matá-lo. não foi minha culpa. minha mãe é doente como o doutor pode ver, não bate bem. o juízo fraco. engravidou de nós dois, meu irmão deve ter tido menos sorte. herdou o miolo mole da velha. a minha vida era cuidar dos dois. tropecei algumas vezes, ninguém é de ferro. com a vida dura dei para puxar fumo, na esquina, com a rapaziada e descuidei. os canas me deixaram na geladeira como viciado um bocado de tempo. minha mãe sem notícias. meu irmão correndo nu pela rua. cagado e mijado. sem ninguém para cuidar. isso dói, não é mesmo, doutor? saí da cana dura, prometi me emendar. arrumei emprego em um boteco que servia pratos feitos, perto de casa. o dono era conhecido da minha mãe, foi fácil, me conhecia desde criancinha. os policiais não me perturbavam. tudo estava correndo calmamente, sem alteração. quando tudo está assim muito parado, é aí que se agita o inferno, rezava a minha coroa, com o juízo desanuviado. meu irmão, somos gêmeos, univitelinos, cara de um focinho de outro, também numa ótima. um dia ele me perguntou: comeram teu rabo lá na cadeia? como é que é? perguntei se comeram teu rabo? que porra de pergunta é essa? pode me dizer a verdade, não conto a ninguém. doutor, juro, eu estudei um pouco, terminei o científico, mas a vontade de dar uma porrada no meu irmão foi grande. pensei o filho da puta tem problema. aí o negócio piorou, meteu na cabeça de me sacanear. como a gente é xerox, foi no boteco dar pinta de veado. no ponto onde eu fumava a minha perna de grilo com a rapazeada, passou a mão em um e outro. tomou porrada. mas, como me disse depois – era você apanhando. tomou gosto pela coisa. vestia as roupas da minha mãe. todo pintado. parado na esquina, cacarejava, chamando homem. pior que piranha de zona. a rapaziada não confiava que era o meu irmão maluquete. o clima foi ficando insuportável. o dono do bar em que eu trabalhava me chamou pra uma conversa. pra eu maneirar. se dava o lombo problema era meu, mas que a freguesia tinha nojo de veado. pior veado maconheiro. um cara pediu para não ser servido por mim. foi o fim da picada. toquei para casa e peguei um pedaço de caibro para meter na cabeça do filho da puta. ele é doente. gritavam os vizinhos. doente. não bate nele, senão chamo a polícia. eu tinha ficha, melhor ficar na minha, sem confusão. conversei com ele e ele repetia como é um cara te comer o rabo? nos filmes é sempre o negão o primeiro a meter a peia? você gostou? agora o filho da puta não parava de me azucrinar. falei que ele estava me queimando com a estória de que tinha virado veado. os policiais não me respeitavam. virou noiva é? perguntavam a ele como se referissem a mim, alargou o anel no xilindró, foi? meu irmão mandava beijos pros filhos da puta. me viam, da viatura, aceleravam e passavam a mão na minha bunda. eu xingava, impotente. muitos trocavam idéia comigo, a gente sabe que é teu irmão. e riam. mulher na cadeia é artigo raro. traçam o primeiro rabo desprevenido. doutor, logo meu irmão, doutor. sempre cuidei dele, da minha mãe maluquete. minha onda era puxar um fumo. agora nessa roubada. cheguei em casa tarde. meu irmão não estava. minha mãe preocupada. teu irmão saiu e não voltou ainda. pra que lado ele foi? perguntei aos moleques da rua. apontaram um capinzal de um terreno baldio no fim da minha rua. desembestei para lá. no muro, um buraco. já tinha fumado uns baseados entocados ali. escutei uns ruídos abafados. vai logo, vai logo. porra é a minha vez. deixe eu terminar de meter. me chama de vera, meu irmão pedia. bate na minha cara. vou comer você como comi teu irmão na cadeia, outro dizia. tinha uns três caras. enrabavam ele. eu voltei nos mesmos passos para casa. minha mãe preocupada. cadê teu irmão? cadê ele? peguei meu berro, ajeitei a camisa por cima. trago ele já pra senhora. vou comer o rabo dele mais um pouquinho. vamo parar com a putaria. vamo, porra. a bala já na cabeça de um. o outro correu, pulou o muro sem calças. e aquele que estava metido no meu irmão, não esboçou reação. chegou pra dividir o homem comigo, é? me disse meu irmão. filho de uma puta. bate, na mulher de cadeia, bate. não me mata, não me mata, pelo amor de deus. dei um tiro na piroca do desgraçado que estava metido nele. caiu gemendo. dá cabo de mim, amor, dá. sou tua messalina. mete também um pouco. justo a coisa não podia piorar, minha mãe pinta na jogada. meu filho. você matou, meu filho. meu irmão gritava. deixa mãe, ele quer comer um pouco do meu rabo. tinha entocado a máquina para não dar zebra, já passaria a mão no veado enrustido para sair fora dali, senti a mão da minha velha me tocar a cintura, pesar bem pesado o ferro e gritar para o meu irmão caído, vestido com as roupas dela, o cu à mostra, não criei filho para veado e disparar na cabeça dele. vamos embora. os canas me prenderam, eu tava em casa. minha mãe tinha preparado uma janta. meu prato predileto. o sargento perguntou quem tinha matado, eu estendi os braços. fui eu, sua autoridade. minha mãe enrolou o restante da janta e me acompanhou até o xadrez.
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sábado, 11 de setembro de 2010

Revista O Voo da Gralha Azul

Quinto número, com 126 páginas:

– A Poetisa Imortal da Academia de Letras do Brasil/PR e ativista cultural Dinair Leite é nomeada Presidente Nacional da União Hispanoamericana de Escritores – UHE;

– Análise do livro Frankestein, de Mary Shelley;

– Entrevista com o trovador, haicaista e poeta maringaense A. A. de Assis;

– Folclore Indígena com Lendas dos Toltecas e Indios Sioux;

– Ainda, dentro do folclore, o Folclore Paranaense com suas lendas separadas por cidades;

– Haicais de Sylvio von Söhsten Gama;

– Conto de Átila José Borges O Pinheiro, O Casebre. O Quadro (dedicado ao meu cãozinho recém falecido);

– Contos de Artur da Tavola, do indiano Rabindranath Tagore, Olga Agulhon, da portuguesa Risoleta Pinto Pedro e da nossa sempre colaboradora Vicência Jaguaribe;

– Poesias de Silviah Carvalho, convidada em agosto a se tornar Imortal na Academia de Letras do Brasil, pelo Estado do Paraná;

– O Teatro com A Dama das Camélias; Pequenos Burgueses; e Pluft, o Fantasminha;

– Trovas de Apollo Taborda França com O Nosso Alfabeto em Trovas;

– Os 42 anos dos I Jogos Florais de Corumbá e uma reportagem especial de Luiz Otávio comentando este evento;

– O menestrel do Rio Grande do Sul, Ialmar Pio Schneider;

– Artigos de como cultivar o hábito da leitura; dicas para trabalhos escolares (dissertações, monografias, etc.), O Romance Moderno, Expressões e suas origens por Deonísio da Silva; A Literatura Nativa Norte Americana;

– Formação da Diretoria da União Brasileira dos Trovadores/UBT Estadual do Paraná 2009-2010;

e muito mais.

Boa Leitura!

José Feldman
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Meu Salieri (Simone Pessoa)


(A Inveja - Sebastián de Covarrubias - Gravura do Séc. XVI)


Costumo levar em consideração as críticas construtivas. Todavia, tenho um leitor que não se cansa de me criticar deliberadamente. No seu último comentário, acerca da crônica Recortes, o distinto leitor reivindica a publicação de suas críticas a meu respeito. “Leio com frequência sua coluna e, vez por outra, faço comentários neste espaço. Ocorre que meus comentários quase sempre são críticas à colunista. Por que não publica críticas também?”

Não pretendia fazê-lo, mas para atender ao leitor inquiridor, eis aqui alguns recortes de suas mensagens críticas: “Você apenas escreve bem (conhece as regras), falta-lhe o tempero, leia-se talento”; “sou leitor assíduo de suas crônicas, sempre espero por alguma coisa surpreendente, mas sempre me deparo com o comum”; “você pode produzir, entanto lhe falta encontrar o ponto”; “medíocre”; “não complica, Simone, deixa a vida nos levar, bate um papo no bar do Bode”; “suas crônicas são tão insossas”; “DESISTO DE VOCÊ”.

Mas o fato é que ele nunca desiste de mim. Observo suas entrelinhas e contexto. Quanto mais criativa a crônica ou mais apreciada pelos meus outros leitores, mais incomodado ele se apresenta. Não sei exatamente quais as reais motivações desse leitor ressentido, mas desconfio que ele seja do ramo da escrita e por razões obscuras tenha interesse em desqualificar esta cronista.

De uma coisa estou certa, trata-se de um leitor constante e pontual. Tão logo a crônica é publicada, lá está ele a apreciar meu texto e, ato contínuo, depreciá-lo por meio de comentários sarcásticos no site do jornal. O fato de ele se dar ao trabalho de acompanhar de perto minha produção o credencia como um de meus mais dedicados leitores. Contudo, sem poder, ou melhor, sem querer revelar agrado, que por certo iria contra sua agenda secreta, ele tenta desdenhar.

Lembrei-me de Salieri, um compositor que nutria profunda inveja de Amadeus Mozart. Ao ler as partituras de Mozart, Salieri chorava de desgosto diante da magnitude da obra. E, ao invés de se aproximar e aprender com o ídolo, optou por urdir sua desgraça. Se Mozart soubesse da admiração doentia de Salieri, talvez sentisse um misto de misericórdia e vaidade.

Longe de qualquer comparação com a grandeza de Mozart, percebo que esse leitor aflito é meu Salieri. Sinceramente, lamento assistir ao seu sofrimento, mas não posso negar que também, de certa forma, me sinto envaidecida.

simoneps@fortalnet.com.br

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sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Pena Própria (Fernanda Lym)

(Quadro de Chico Lopes)


O pai preparou armadilhas para capturar pássaros. Dos que já havia prendido, nunca cuidara de nenhum. Nada de pote com alpiste, banheirinha pro novo hóspede, tampouco gaiolas grandes. Gaiola era gaiola e não importava o tamanho: ali era a última parada. Se havia algum cuidado com os prisioneiros era porque a empregada da casa ainda cumpria sua função.

Ideia estúpida essa a de preparar armadilhas pra pássaros, contestou alto a caçula já não mais tão caçula assim. Quando ele entrar na gaiola cuidarei dele, disse o pai entonando ironia. A caçula prometeu que se o pássaro fosse capturado o soltaria. Antes tivesse percebido que a armadilha fizera efeito: um novo prisioneiro ali dentro se debatia. As asas brilhantes aos poucos empapavam-se de sangue. Antes morrer lutando do que desaprender a voar.

Pretensão essa a de crer que cuidará melhor dos pássaros do que eles de si! E daí que existem moleques com estilingue, gatos à espreita, aves maiores? Antes deixassem livres os pássaros como nasceram pra ser e como devem viver! Mas o capturado, agora fraco, esperaria na gaiola à sua prisão se conformar.

Após a conquista comemorada, o pai foi à cozinha e, levando num pote um pouco de comida, voltou pro seu quarto onde passou o resto das horas, dias e anos, rememorando o passado em frente à TV. Até o odor dos seus gazes lhe era mais familiar do que o ar-fresco longe da zona de conforto.

A caçula bem pensou em soltar o prisioneiro. E daí se o pássaro estivesse machucado? Pelo menos estaria livre. Mas pensou também que se libertasse o prisioneiro haveria falatórios, confusões e ofensas desnecessárias. Odeio quem prende pássaros: os que prendem pássaros são capazes de prender pessoas, e foi cultivando indignação que a caçula, não tão mais caçula assim, tornou a trancar-se no próprio quarto, donde lá só havia como fresta uma janela lacrada por uma grade, que deixava pouco à mostra a lembrança do que um dia ela conhecera ser o céu.

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quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Irmandade da Boa Morte (Emanuel Medeiros Vieira)

(Histórias da Bahia e do Recôncavo)

(Em memória de meu pai Alfredo – um honrado devoto de São Francisco, e o mais caridoso ser humano que conheci na minha vida.)

Não se sabe a data do seu nascimento, mas acredita-se que a primeira irmandade da Boa Morte em solo brasileiro tenha nascido em 1707. Mas a Irmandade da Boa Morte - criada por mulheres negras -, ao contrário das outras, não contou com a legitimação pelo poder do Estado ou da Igreja Católica. Caracterizada pela devoção à Nossa Senhora da Boa Morte, da Assunção ou da Glória, a irmandade ritualiza a morte e a assunção de Maria que, segundo a doutrina católica, foi levada ao céus como seu filho Jesus. A subida ao espaço celeste é um dos dogmas instituídos pelo Papa Pio XII, em 1950. A origem do culto à Boa Morte data do século VII, em Roma, pelos jesuítas. Em Portugal, começou em Lisboa, em 1660. Em Cachoeira, teria tido origem em 1860, quando a tensão social era muito intensa, segundo os historiadores. Conheci a irmandade (durante os seus festejos anuais, em agosto de cada ano) numa recente viagem à Cachoeira, belíssima cidade história do Recôncavo Baiano, distante de Salvador a aproximadamente 110 quilômetros. (Lembro de duas outras bonitas cidades da região: Santo Amaro da Purificação e São Félix — separada de Cachoeira por uma ponte.) O propósito religioso era católico, mas identidade foi buscada no candomblé. É isso o que me fascina nessa irmandade: sua liturgia, que transita entre dois ritos, tão marcantes na identidade baiana, onde a influência negra é uma das mais fortes do mundo. É preciso lembrar que em Cachoeira travaram-se intensas lutas pela Independência da Bahia e do Brasil, como também foi muito forte a luta pela abolição da escravatura. Formada exclusivamente por mulheres, com idade de ingresso a partir dos 40 anos, todas as 23 integrantes são negras e descendentes de escravos. O empreendedorismo das mulheres negras que fundaram a Boa Morte está na origem de suas antepassadas. “Elas vieram da sociedade iorubá, que era urbana e organizada. Eram conhecidas como negras do partido alto, que dominavam o comércio dos gêneros de primeira necessidade e conseguiram equilíbrio financeiro”, explica o historiador Cacau Nascimento, estudioso da irmandade. O culto à Virgem Maria é oriundo de um sentimento de gratidão pela obtenção de uma promessa: o fim do regime de escravidão. As negras da Irmandade da Boa Morte usam o drama da morte e assunção de Maria como metáfora para o culto aos eguns. É como os sete dias de axexê (o ritual fúnebre do candomblé), com três dias públicos e quatro privados. Ser negra é necessário, mas não é o bastante para constar em “ata” – como se diz quando a candidata é aceita pelas integrantes da Irmandade da Boa Morte. Na rígida hierarquia do grupo, além da dedicação à Nossa Senhora, tem de ter idade avançada e passar por avaliação. Na fase de observação (que dura três anos), as mulheres são chamadas “irmãs de bolsa”. De tradição oral, os segredos só são repassados para as irmãs e cada uma alcança um grau de conhecimento de acordo com o tempo, dedicação e determinação das irmãs mais antigas. Segundo a jornalista Juci Machado, “são esses segredos que garantem a existência delas”. São cinco dias de festa, preparados com um ano de antecedência. A disposição de servir nunca falta: “Nossa Senhora da Boa Morte também nos dá vida e força para continuar”, diz Adeíldes Ferreira de Lemos, 64 anos, que faz parte da Irmandade. (Teria outros relatos, mas o texto ficaria muito longo.) Mas conhecer o Recôncavo* foi uma bela experiência. Internalizei novamente a ideia do Sagrado (em rituais tão belos), num mundo tão dessacralizado, profano e utilitarista - que constitui o nosso capitalismo tupiniquim. Não deixa de ser uma forma de resistência à globalização excludente. Milton Santos (1926-2001), o grande geógrafo baiano, respeitado mundialmente, dizia que era preciso “encontrar um caminho que nos libere da globalização perversa que estamos vivendo e nos aproxime da possibilidade de construir uma outra globalização, capaz de restaurar o homem na sua dignidade”.

*O termo recôncavo, originalmente usado para designar o conjunto de terras de qualquer baía, se associou, no Brasil, desde os primórdios da colonização à região que forma um arco em terno da Baía de Todos-os-Santos (onde se encontra Salvador).

Salvador, agosto de 2010
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quarta-feira, 8 de setembro de 2010

Juvenal Galeno, poeta popular (Nilto Maciel)



O governo do Estado do Ceará vem patrocinando a reedição de obras raras da literatura cearense. À frente dessa iniciativa está o professor Francisco Auto Filho, como Secretário da Cultura. Nos três volumes da obra completa de Juvenal Galeno (1836 – 1931) vem seu texto “Retorno às origens”, no qual se ergue em defesa da “política literária nacional-popular” do poeta e da “necessidade da intervenção do poder público como suporte institucional dessa esfera de nossa cultura”.

Com a mão na massa está o escritor Raymundo Netto, como coordenador editorial da Secretaria da Cultura. Neste 2010 veio a lume a obra completa de Juvenal Galeno, em três volumes: Cenas Populares, Cantigas Populares e Medicina Caseira, organizados por Raymundo Netto, esse abnegado amante do Ceará e das artes. O primeiro, composto de contos, agora em 4ª edição, traz apresentação – “Os contos de Juvenal Galeno” – do sábio Sânzio de Azevedo. O segundo volume – em 2ª edição –, de poemas, reproduz a apresentação à 1ª edição, por José Aurélio S. Câmara, de maio de 1969. O terceiro, também de poemas, em 2ª edição, refaz a apresentação à 1ª edição, por Oswaldo Riedel.

Cenas Populares surgiu primeiramente em 1871. Para Sânzio de Azevedo, “essa obra deve ser considerada não como precursora, mas como iniciadora do conto em nossa Província”. E mais esclarece: “Compõe-se o livro de oito narrativas: “Os pescadores”, “Dia de Feira”, “Folhas Secas”, “Noite de Núpcias”, “O Senhor das Caças”, “Clara”, “Amor-do-Céu” e “O Serão”. Seus protagonistas são pessoas simples, das praias e do sertão. (...) vemos aqui um escritor romântico, no qual são fortes as notas de sentimentalismo, mas ao mesmo tempo um agudo observador da realidade do Ceará na sua época, a ponto de alguns contos poderem (como alguns textos do citado livro de poesia) servir de segura fonte para o estudo dos costumes de então.”

Cantigas Populares é composto de dezesseis poemas encontrados por Cândida Galeno, neta do poeta, “aos quais o próprio autor atribuiu o título comum de Cantigas Populares” – afirma Aurélio Câmara – e publicados pela primeira vez em 1969. Ainda segundo o prefaciador, “as estrofes aqui reunidas constituem, talvez, a últimas que compôs Juvenal Galeno. Devem ter sido compostas, em sua quase totalidade, pois mergulhou nas trevas da total cegueira aos setenta anos, em 1906, e as páginas agora publicadas ou são posteriores àquela data ou a antecederam de curto período, quando a visão do autor, de tão apoucada, não mais lhe permitia o manejo da pena.”

Medicina Caseira, assim como Cantigas Populares, é obra póstuma, ambas publicadas pela primeira vez em 1969, por ocasião do 50º aniversário da Casa de Juvenal Galeno. Esclarece o prefaciador Oswaldo Riedel: “Ditou o bardo à esposa e à filha Henriqueta, sua secretária, os versos da Medicina Caseira. Neles, as datas sotopostas a muitas quadras, mas especialmente as referências à pandemia de gripe e ao kaiser Guilherme II, não deixam dúvida que os compôs quando a Primeira Grande Guerra estava vivendo seus últimos dias.”

Juvenal Galeno nasceu em Fortaleza, em 1836. Jovem, foi conhecer o Rio de Janeiro, depois de estudar (inclusive latim) em Pacatuba (cercanias da capital cearense) e no famoso Liceu do Ceará. Estreou aos vinte anos de idade, com Prelúdios Poéticos, “marco inaugural do romantismo cearense”. Seguiram-se diversos livros: teatro, poesia e prosa. Em 1895 ingressou na Padaria Espiritual, como padeiro-mor honorário. Participou do Clube Literário e ajudou a fundar o Instituto do Ceará. Poeta popular, escreveu pelos que não sabiam escrever. Segundo Sânzio de Azevedo, “o que Juvenal Galeno fez muitas vezes foi dizer com seu estilo, entre popular e erudito, o que o homem do povo não saberia dizer. Por isso, nem sempre podemos ver em seus versos o ‘eu romântico’, porque ele fala por outrem.”

Fortaleza, 7 de setembro de 2010.
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terça-feira, 7 de setembro de 2010

Inteligência rara (Manuel Soares Bulcão Neto*)

Em 1980 um grupo de cientistas fundou o Projeto SETI (Seath for extraterrestrial intelligente). Seu objetivo era, mediante radiotelescópios, detectar sinais eletromagnéticos emitidos por civilizações de outras regiões do Cosmo. Partia-se do princípio de que, onde houvesse vida, a alta inteligência necessariamente surgiria, visto que esta confere à espécie que a possui maior adaptabilidade ao meio – “Mais inteligente é melhor”, sentenciou Carl Sagan, líder deste Projeto.

O biólogo Ernst Mayr, valendo-se da própria história da vida na Terra, demonstrou, entretanto, que essa premissa setiana é falsa. Afirmou que, decerto, a seleção natural opera ao mesmo tempo em vários ramos taxonômicos – filos, classes, ordens… – favorecendo o surgimento e desenvolvimento de certos órgãos, como as estruturas fotorreceptoras (os olhos), “adquiridas de modo independente pelo menos 40 vezes no reino animal”. Não vislumbrava o Cientista, porém, nenhuma pressão seletiva conduzindo à alta inteligência, uma vez que, entre as milhões de linhagens existentes no Planeta, tal qualidade só surgiu em uma delas: a hominídea. Depois de apontar alguns acidentes sem os quais não teria vingado nossa estirpe, Mayr concluiu: “Como é extremamente improvável a aquisição da alta inteligência”, “como era infinitesimal a chance de isso ocorrer!”.

Agora, a pergunta: dado o seu suposto valor adaptativo, o que explica a raridade da alta inteligência? — Como uma das razões, alguns biólogos evolucionistas apontam o seu elevado custo em consumo energético (de fato, nosso cérebro demanda 20% de todas as calorias que o organismo consome). Aliás, em uma pesquisa realizada com moscas-das-frutas, Frederic Mery da Universidade de Friburgo descobriu que, em condições de grande escassez de víveres, as drosófilas com inteligência acima da média vão-se rareando até desaparecerem por completo. Infere-se desta experiência que, se os benefícios da inteligência a partir de certo nível não compensam o preço a ser pago, a seleção natural não irá favorecê-la, muito pelo contrário.

Outro custo da alta inteligência foi recentemente descoberto por James Sikela et al. da Universidade do Colorado. Segundo Sikela, a sequência de cópias do gene DUF1220 que determina o desenvolvimento do cérebro é a mesma que, com arranjo ligeiramente alterado, gera doenças mentais graves, como o autismo e a esquizofrenia. Significa dizer que os indivíduos portadores dessas moléstias são o preço que a espécie humana paga pelo mecanismo gênico que permite a geração da sua inteligência sem igual, capaz de produzir computadores, teorias cosmológicas e… antipsicóticos.

Inteligência é capacidade de processar informações e, de acordo com a teoria da complexidade, tal capacidade é máxima na fronteira entre a ordem e o caos. Isso explica a frágil condição do Gênio, ilustrada pelas loucuras terminais de Gödel e Nietzsche. A propósito, o autor de Zaratustra intuiu bem esse “equilíbrio distante” ao escrever que “é preciso ter um caos dentro de si para dar à luz uma estrela bailarina.”

De resto, embora muito valorizada, a inteligência é subutilizada pela maioria das pessoas, por medo do caos ou devido ao custo energético. Aliás, segundo o antropólogo Leslie Aiello, o homem, para pensar, retira energia dos intestinos, que são pequenos em comparação aos dos outros primatas. Por isso que muita gente, obedecendo ao princípio do menor esforço, em vez de realizar escolhas com o cérebro, prefere tomar decisões diretamente com as tripas. Outros, pelas mesmas razões, entregam seu destino ao acaso das cartas, búzios e do I Ching – ou então mantêm a mente operando no modo religioso, que é de baixa energia.

Como diz mesmo a canção? “Si quieres ser feliz como me dices / No analices / Ah, no analices.”


*Manuel Soares Bulcão Neto nasceu em 1963 na cidade de Fortaleza. Em 1988, bacharelou-se em Direito pela Universidade Federal do Ceará. Ensaísta e escritor, tem se dedicado a estudos críticos sobre questões filosóficas fundamentais do mundo contemporâneo, sobretudo no que tange às implicações sociopolíticas dos avanços atuais da ciência. É autor de As Esquisitices do Óbvio (2005), Sombras do Iluminismo (2006) e A Eloquência do Ódio (2009).
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segunda-feira, 6 de setembro de 2010

O livro das metades do João (Tânia Du Bois)



O Livro das Metades do João é o livro infantil escrito por João dos Santos, quanto tinha entre 6 e 7 anos de idade. João Albuquerque dos Santos, nordestino de Fortaleza, nascido em 1993.

Segundo seu pai, Fabiano dos Santos, também escritor, “João gosta tanto de desenhar que, às vezes, penso que foi ele próprio que se desenhou quando ainda morava na barriga da sua mãe. Parece que nasceu com um lápis de cor na mão e com ele foi crescendo e desenhando o mundo”.

O livro nasceu quando João, ainda pequeno, mostrou ao seu pai os desenhos das metades, inspirados nas descontraídas tramas da vida, ”do mundo que mora dentro da sua cabeça e do mundo que mora fora do seu corpo”. Fruto da sua imaginação, criou com descontração, e de acordo com o espírito da idade, verdadeiros mimos da alma transformados em desenhos.

O livro é interessante e diferente. Os desenhos, trabalhados com traços precisos do seu mundo infantil, onde mostra as metades criança de João e as metades “fora do corpo”, que brinca com as metades do escritor.

O livro tem ritmo iluminado. O menos é mais, porque traz movimentos com palavras marcantes, como seu espírito. É surpreendentemente criativo e atrativo:

“Sou a metade feliz / sou a metade triste // Sou a metade nu /
sou a metade vestido // sou a metade sem olho / sou a metade com olho //
sou a metade acordado / sou a metade dormindo // sou a metade com osso /
sou a metade sem osso // Sou a metade dia / sou a metade noite //
sou a metade água / sou a metade fogo // Sou a metade viva /
sou a metade morta //Sou a metade pedra / sou a metade areia //
Sou a metade bicho / sou a metade homem // sou a metade flor /
sou a metade gente // sou a metade negro / sou a metade branco...”

E a educadora Luíza de Teodoro declarou: “o grande santo João, contou-nos o novo mundo e o novo homem. Ainda pequeno João nos mostra agora, o que a infância pode ver do que somos. Bendito sejas João dos Santos”.

Para comemorar a passagem do Dia Mundial do Livro Infantil, nada melhor do que apresentar João que, com um lápis de cor, foi desenhando o mundo, onde as leitoras Júlia e Luísa habitam: o mundo da imaginação pelas metades.

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domingo, 5 de setembro de 2010

Poesia que brota de Bissau (Adelto Gonçalves)

“Chão de Papel” traz uma mensagem antilírica. O olhar feminino de Maria Estela Guedes capta na memória lugares e momentos que o olhar de um poeta homem nunca seria capaz

Este é um livro com cheiro de África. E é uma África vista com isenção por quem viveu na Guiné-Bissau de 1956 a 1966, ao tempo do colonialismo que coincidiu também com o de sua formação pessoal. E ninguém esquece os anos de sua formação. Muito menos um poeta. Por isso, Maria Estela Guedes, nascida em Britiande/Lamego em 1947, reuniu os seus poemas evocativos de uma Guiné-Bissau que já não existe neste livro, “Chão de Papel”, que, como observa Nicolau Saião na apresentação, traz uma mensagem lucidamente antilírica — “se entendermos como lirismo essa escrita impressionista (um pouco defasada da realidade mas legítima e soberana — que por aí vai dando cobertura a um romantismo de pacotilha, ultra-sentimental e, por isso mesmo, refalso e, no fundo, claramente pedante”.

Essa evocação começa pela imagem que guarda dessa Guiné-Bissau, “um mapa de ilhas, um arquipélago de lembranças”, especialmente da Fonte Vaz Teixeira, àquela época “oculta na floresta, em ruínas”, que hoje, provavelmente, não mais existe, “como tantas outras coisas que os anos de independência fizeram desaparecer”, como diz Saião, que também lá andou por 27 meses ao todo, à época em que havia a “província ultramarina da Guiné” e os jovens portugueses de então eram obrigados a defender, às vezes à custa da própria vida ou de abalos ao próprio corpo, o sonho de grandeza salazarista que só existia na retórica dos discursos oficiais.

O olhar feminino de Maria Estela capta na memória lugares e momentos que o olhar de um poeta homem nunca seria capaz, como se constata neste poema intitulado “A Praça”:

Ias à Praça — relíquia verbal de antigo nome
Da Praça de S. José de Bissau —
Com as casas de sobrado e varanda
De madeira pintada de azul-mantenhas?
— Cuma di corpo: E bo papé? E bo mamé?
Tens um objetivo em mente, o Mercado Municipal,
E um local preciso aonde vais em sonhos.
Que queres tu comprar? Sabes que é coisa
De comer, mas o quê? A vagem branca
E azeda de tamarindo? Castanha de caju?
Volta e meia sonhas com isso
Mas ainda não descobriste o que vai tu
Comprar à Praça com as suas casas de sobrado
E varanda de madeira pintada de azul-mantenhas.
Por baixo as lojas de varejo
— Ali o estúdio fotográfico do pai do Erasmo,
Além a Casa Pintozinho —
A velha escola onde estudaste
Encostada a um majestoso mangueiro
E na esquina, instalada no chão com fogareiro
A gorda Nha Tilda torrava mancarra
Que comíamos ainda quente
A cheirar a vida airada e a gente de barriga cheia.

Como se vê, até reconstituição da fala crioula se tem neste poema que, de tão denso e concatenado, teve de ser reproduzido aqui de forma integral. Essa evocação sente-se também em “Cesarianas e casuarinas” em que Maria Estela diz:

Passeios nas tardes de domingo
Pelo Jardim de Teixeira Pinto
Empurrando o carrinho com o bebé de D. Otília
Nascido entre dores e cortes de cesariana...
A estátua do militar no alto do outeiro
A dominar toda a cidade de Bissau
Mira ao longe as evoluções
Dos milicianos e da Mocidade Portuguesa
Diante do palácio do governador e do obelisco
No centro da Praça do Império,
Coroada com a legenda “Ao esforço da Raça”.
Hoje é o mesmo obelisco mas diversa a legenda:
“Monumento aos Heróis da Independência” (...).

Ao contrário do que se pode imaginar, estes versos de Maria Estela não evocam o colonialismo com saudade nem procuram mostrar que os tempos da presença portuguesa na África teriam sido melhores do que os vividos hoje. Até porque tiranos são tiranos, tenham a pele clara ou escura, como bem sabem os guineenses. E mesmo aqueles portugas, os “tugas” que lá viviam, eram vítimas de um mundo mal construído e distribuído que não lhes deixava outra opção que não fosse emigrar — até porque para que meia-dúzia de famílias pudessem se refestelar no bem arrumado jardim à beira-mar plantado, a choldra tinha de ser praticamente expulsa para os quatro cantos do mundo, ainda que à custa de desertificação do país. Havia sido assim desde os tempos da monarquia.

A tragédia da Guiné-Bissau é que, depois que os tiranetes brancos foram embora, ficaram os tiranetes negros e a mesma opressão de uma classe sobre a outra. A sorte é que, como diz Maria Estela, “os tiranetes duram pouco/ e os grandes tiranos, por muitos quarenta anos/ que governem, também pouco duram”, ao evocar no poema “A Kabi Nafantchamna, no dia da sua morte”, a manhã de 2 de março de 2009 em que os noticiários informaram sobre o levante que resultou no assassinato do presidente Nino Vieira (1939-2009):

(...) Conheces o ditado “Quem com ferro mata...?”
Conheces, Nino? Ainda ninguém disse nada
Mas podes crer que
Mesmo sem despacho
Alguém te despachou para o tribunal do Irã.
Bárbaros, violentos, egotistas.
Iguais em tudo na guerra
E iguais em tudo na paz
Aos mais bárbaros, violentos e egotistas
Americanos, asiáticos e europeus.

Em “O cais do Pidjiguiti”, Maria Estela, à semelhança de Camilo Pessanha (1867-1926) em “À noite, no Pego-Dragão”, uma das suas traduções em forma livre das “Oito Elegias Chinesas”, diz num poema perpassado de efeitos sinestésicos: “Não quero partir sem voltar ao Ku Pelon / A ouvir as serenatas do meu amigo”. E recorda que no Pidjiguiti dezenas de trabalhadores foram abatidos, vítimas indefesas de um massacre, ao tempo do colonialismo, para observar, em seguida, como se fizesse um mea culpa em nome dos opressores de então, ainda que nada tivesse a ver com aquilo e fosse apenas uma adolescente de 12 anos de idade, talvez com a ingênua ideia de que, se os colonialistas tivessem oferecido letras, ou seja, educação, em vez de opressão, talvez o caminho tivesse sido outro, de entendimento, embora se saiba que o colonialismo, como o escorpião, jamais renunciaria a sua natureza:

(...) Assim depois o crime repetido insaciavelmente
Por negros e brancos
E mulatos igualmente
Até o dia de ontem
Em que também foi assassinado
Nino Vieira, o presidente.
Sem grandes diferenças, na morte
Todos iguais
Sem precisão de invocar raças
Nem a paleta das cores (...).

Na evocação, Maria Estela lembra que o tempo do cais do Pidjiguiti vai longe, 3 de agosto de 1959, dia em que começou a guerra.

(...) Nunca mais seríeis felizes como antes.
Não era nosso o Chão de Papel
Mas podia ter sido
Se em vez de chumbo, ódio, vinganças e cana
Tivéssemos semeado letras na terra.

Versos como esses refletem o caos emocional que sofre todo o desterrado. E nesse caso Maria Estela é também uma desterrada, pois, ao voltar a Portugal, nas noites de sua solidão, passou a perguntar pelos amigos e familiares que haviam ficado na terra africana que a vira crescer, pelos desaparecidos, sem conseguir banir da memória o drama vivido, o drama da ruptura com um mundo que desapareceu.
Para aqueles que desconhecem a Guiné-Bissau, é preciso que se diga que o título “Chão de Papel” aponta para a pátria-chica do grupo étnico desta região guineense: a tribo dos Papéis, cerca de 40 mil naquela altura, como explica o alentejano Saião, bom conhecedor da região. Trata-se de um trocadilho, um simbolismo feliz, acrescenta Saião.

Editora da publicação eletrônica Triplo V (www.triplov.com), Maria Estela Guedes tem uma vasta obra publicada de livros de e sobre poesia em que se destacam “Herberto Helder, Poeta Obscuro” (Lisboa, Moraes Editores, 1979), “SO2” (Lisboa, Guimarães Editores, 1980), “Eco, Pedras Rolantes” (Lisboa, Ler Editora, 1983), “Mário de Sá Carneiro” (Lisboa, Editorial Presença, 1985), “À Sombra do Orpheu” (Lisboa, Guimarães Editores, 1990), “A_Maar_Gato” (Lisboa, Editorial Minerva, 2005), “Lápis de Carvão” (Lisboa, Apenas Livros, 2005), “Ofício das Trevas” (teatro (Lisboa, Apenas Livros, 2006), “A Boba (monólogo em três insônias e um despertador)”, com prefácio de Eugénia Vasques (Lisboa, Apenas Livros, 2006), “À La Carbonara”, em coautoria com J.C.Cabanel & Silvio Luis Benítez Lopes (Lisboa, Apenas Livros, 2007) e “Poesia na Óptica da Óptica” (Lisboa, Apenas Livros Lda., 2008).

ADELTO GONÇALVES é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo.
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sábado, 4 de setembro de 2010

Modo de usar (Ronaldo Monte)


Quando criei a coluna “Modo de ser & modo de usar” para o jornal Contraponto, previa que o “modo de usar” causaria estranheza em algumas pessoas. Foi o que aconteceu. Aqui e ali, me perguntam se essa história de usar não seria melhor aplicada às coisas do que às pessoas. Mas quem acompanha a coluna percebe que a maioria dos entrevistados compreende o espírito da coisa e responde sobre a melhor maneira dos outros aproveitarem o que eles produzem.


Quase todo mundo já ouviu falar nos valores de uso e de troca que Marx atribuiu aos objetos feitos pelo homem. Quando uma coisa vira uma mercadoria levada ao mercado, ela tem um valor de troca. Mas antes disso, ela tem um valor de uso, à medida que se torna útil a alguém. Uma pedra, por exemplo, pode prender uma pilha de papéis, enfeitar uma mesa de centro, sacrificar um passarinho ou uma iraniana. Pode também, utilidade suprema, surgir de repente no meio do caminho do poeta.

Não sei por que uma pessoa não teria valor de uso. Podemos não ser mercadoria, mas somos sempre de alguma utilidade para alguém. Pode ter coisa melhor do que se deixar usar e abusar pela pessoa amada? E a mãe que entrega o peito ao uso do filho? Por que temos medo de ser coisas? Em que somos melhores do que um pão ou um martelo?

Um psicanalista, por exemplo, dá-se ao uso pela transferência. Um pintor, um jornalista, valem pela utilidade do seu trabalho. Passam também a ter valor de troca, quando estipulam seu preço no mercado.

O estatuto de coisa, aliás, seria até honorífico para muita gente sem qualquer utilidade que anda por aí. Políticos, bandidos, simples parasitas que nunca bateram um prego numa barra de sabão.

A rigor, nossa entrada no mundo se dá “no meio das coisas” (in media res). É preciso ralar muito para adquirirmos um mínimo de consciência histórica que nos leve a descobrir um modo próprio de ser. No fim de tudo, voltamos a ser coisa, matéria orgânica de muita utilidade. E alguns de nós continuarão a ser coisas úteis na memória das gerações.

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sexta-feira, 3 de setembro de 2010

P.O.E.M.A. (Raymundo Netto)

(Quadro de Chico Lopes)


Eu quero a poesia concretamente não concreta!?

Um poema não poético não hermético não soneto nem só Netto

Um poema-cuspo na hipocrisia de quem se diz poesia

Sem acordo sem sintaxe nem metro ou morfologia

O meu poema tem de ser vazio da cabeça aos pés

Sem Nossa Senhora sem cachoeiras sem badalos de sinos sem amores fieis

Eu quero um poema que não seja truque nem mágico nem mágica

Que não seja verso nem falso nem farsa

Que chegue a Lém da poeticidade convencional conveniente convexa e com cavas

Que vá como se vás o poeta às favas

Que se escreva com avaro o amor amaro ocre e acre

Com porrada o susto o massacre

Quero a poesia sem sobras sem prantos sem lábios tremulantes

Sem lágrimas lenços brancos sem berço sem fim nem meio

Sem bundas sem coxas olhos ou seios

Um poema que não seja desta terra nem do céu menos da lua

Que não escorregue lânguido entre os poros da pele nua

A poesia sem rima sem ramos sem remos... cem rumos

Eu quero o poema que não seja emo nem poemo

Eu quero paixão que não seja calor

Nem ouro nem prata o meu poema tem de ser de lata

O poema é e tem de ser sempre o perdedor

Decepcionado, decepado e vergastado pela dor

Eu quero quentura que não seja fritura — não quero tristeza eu quero é tristura

Constringe-me a mente a sinérese da minhagonia

De não a querer mais e mais podê-la poema que poesia.

Eu quero a poesia com Creta à mente?!
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quinta-feira, 2 de setembro de 2010

Entrevista: Chico Lopes (Por Silvana Guimarães)



Chico Lopes acaba de lançar o livro Hóspedes da Noite. "São histórias do interno e do externo de personagens amarradas a um mundo cuja compreensão necessita do olhar e da consciência, instâncias que, entretanto, parecem desalojar-se mutuamente. O desencontro entre o fora e o dentro é revelado por uma construção textual refinada e sutil, que suprime os limites e transita em matérias de difícil definição". A afirmativa é de Valentim Facioli, que assina a orelha do livro e o considera "uma espécie de vertigem com abismo provável sempre à vista". Com certeza, em razão da fragilidade dos seus personagens — tão humanos, tão reconhecíveis — que o autor esmiúça e desnuda, de modo a causar espanto. O Chico é de engrandecer miudezas. Bom de ler, bom de papo. Como se comprova nesta entrevista. [Silvana Guimarães]






Silvana Guimarães - Chico, você acaba de lançar seu terceiro livro de contos, Hóspedes do Vento (São Paulo, Nankin Editorial), que junto aos dois anteriores — Nó de sombras (2000) e Dobras da noite (2004) — formam uma bela trilogia. O que este livro representa para você em relação aos outros?

Chico Lopes - Sinto que este terceiro livro reflete bem a passagem dos anos e um possível amadurecimento. São dez anos desde que Nó de sombras, que é de 2000, foi publicado, e foi meu livro de estreia, quando eu tinha 48 anos. Agora, estou com 58. A trilogia parece simbolizar toda uma década, já que Dobras da noite saiu no meio, em 2004, e agora sai Hóspedes do vento, fechando-a. Creio que é um livro mais heterogêneo que os outros dois na forma, pois, diferentemente de ambos, tem mais contos curtos do que longos, mas é o meu mundo temático, sempre se desdobrando: a solidão, as fantasias sexuais e afetivas confrontadas com uma realidade particularmente difícil, os párias, os loucos, os sonhadores delirantes. Dessa vez, uma preocupação maior com a velhice e a morte também, refletindo, naturalmente, o que eu disse logo no início.

SG - Todos os contos deste livro têm dedicatórias. Por quê? O que alguém precisa fazer/ser para merecer um conto seu?

CL - Dediquei meu primeiro livro todo à minha mulher, Maria Vitória, pelas razões óbvias. Depois, no Dobras..., percebi que travava mentalmente, ao escrever, diálogos com certas pessoas que acolheriam bem aqueles temas. Uma amiga, Rosângela Vieira Rocha, a quem expus um conto que já estava em andamento, o "Belmiro agoniza", me deu uma sugestão que mudou o rumo da coisa. Acho que os diálogos com amigos, outros escritores, é sempre fecundo por causa disso. O mesmo aconteceu com "A many splendored thing", desse livro, que dediquei ao escritor Lima Trindade. Dediquei meu conto favorito, "Cavalo e sombra", a um amigo como eu nascido em Novo Horizonte, Claudemir Bellintane, que conhecia tanto quanto eu o personagem real que inspirou o vaqueiro Tião Celestino. Mas em geral meu processo é mais solitário, e dedico o produto já acabado a algumas pessoas mais íntimas, nem sempre escritores. É particularmente chato quando a gente sente que o escolhido não gosta muito daquele conto, que talvez preferisse outro.

Acho que o ato de escrever, por mais solitário que seja, é tremendamente social. Acredito, inclusive, que o que a gente procura é uma espécie de despersonalização, que tem mais a ver com um fundo coletivo fervilhante que há em nós. Às vezes, sinto que sou instrumento de alguma coisa muito maior do que eu. E acho isso ótimo, porque uma das melhores coisas da Literatura é isso de nos dar o poder (talvez ilusório) de ter muitas almas. Na verdade, nossa preciosa identidade social, civil, cotidiana, cai demais na aridez. A fantasia nos salva.

Para merecer um conto meu, o que é preciso? Nada além de amizade. Ainda acho a amizade o grande sal da vida.

SG - Como, em geral, você se relaciona com o ato de criar? Vamos falar sobre o primeiro conto do livro — "O Assobio" — que eu gostei muito de ler. Na prática: pode explicar-me a gênese da sua narrativa?

CL - Sabe como é, Silvana? Às vezes, a gente é perseguido a vida toda por uma ideia ou um fiapo de ideia que está ali, nos primeiros contos que tenta escrever, e, quando você julga que aquilo não deu certo e é melhor esquecer, com as voltas do tempo e das circunstâncias da história pessoal, acaba retomando tudo um dia sem querer. Eu tinha na cabeça, há muitos anos, a imagem de um sujeito que assoviava pelas ruas (era um trechinho de uma música de Mozart). Era um sujeito feliz, simplesmente, que de madrugada ia assoviando de mãos nos bolsos, contente com seu corpo, sua vida, parando pra dar sua mijada numa árvore, numa rua de cidade pequena. Daí, veio a ideia de que, por tão feliz, tão espontâneo, ele acabava criando inimizades que nem imaginava em pessoas que dormiam muito mal e ouviam aquele assovio satisfeito. Mulheres reprimidas passavam a desejá-lo, e precisavam acabar com sua espontaneidade, matando nelas o desejo que o assovio despertava. Porque às vezes tenho a impressão de que a felicidade simples, de graça como é, arbitrária e insondável como é, pode ser a coisa mais ofensiva do mundo para quem não é feliz. No caso do assobiador, sua felicidade não ficaria impune. A ideia ficou oscilando entre o trivial e o sombrio. E acabou dando nesse primeiro conto do Hóspedes do vento. Que, antes disso, foi publicado como "O cerco" no Suplemento Literário do Minas Gerais.

SG - Um passarinho me contou que você começou na escrita pela poesia e nunca publicou um poema. Conte-me: por que isso aconteceu? Como foi seduzido pela prosa?

CL – Deve ter sido um passarinho mesmo, porque eu os adoro e vivo botando em meus contos. Na verdade, comecei pela poesia. E também fazendo letras de músicas para amigos. Da poesia, saltei foi para a prosa, mas uma prosa poética, que também se mesclava à crônica, ao ensaio. Mas eu sempre achei que meu destino era a prosa de ficção, e me frustrava muito não poder escrever como os escritores que eu admirava. Eu vivia (isso eram os anos 70) querendo escrever como Dalton Trevisan (meu primeiro conto realizado era uma imitação descarada dos dele), como Clarice, Machado, Edgar Allan Poe, um monte de gente. Nos anos 80, eu saltei de vez para a prosa. Demorei muito a ficar contente com um conto meu. Escrevia e rasgava, escrevia e rasgava, montanhas de papel, de horas que eu considerava perdidas. Também queria escrever novelas (romances me pareciam exigir fôlego demais), que também rasgava. Só vim a publicar um livro de contos em 2000, aos 48 anos, como disse. Eu queria estrear só quando estivesse inteiramente certo de estar escrevendo alguma coisa decente. Minha autocrítica era pra lá de implacável. Não me importei nunca de passar anos, décadas, me purgando.

De certo modo, a poesia me parecia insatisfatória porque, aos poucos, me parecia falar com menos e menos leitores. Eu queria algo mais vasto, mais comunicativo, sem abrir mão daquelas ideias. Até hoje acredito que a minha prosa tem heranças desse poeta obscurecido.

SG - Fale, por favor, de seus modelos ou referências literárias, nacionais ou estrangeiros, do passado ou do presente.

CL – Minhas primeiras paixões foram livros de Francisco Marins, Monteiro Lobato, Julio Verne, eu adorava gibis de Tarzan, Zorro, lia fotonovelas e tudo que me caísse nas mãos, incluindo livros policiais, de terror, de mistério, em edições de bolso que um parente meu tinha (em casa não havia uma biblioteca). Depois, um dia alguém me emprestou um livro que me virou a cabeça — eu tinha 14 anos e era o Capitães da areia, do Jorge Amado. Quis, então, ler coisas mais ousadas, questionando violentamente o meio que me cercava, a Igreja, as convenções, tudo... Fui parar em Dostoiévski. Um amigo tinha uma coleção inteira. Foi a maior comoção literária daquela minha fase da juventude, não esquecerei nunca. Creio que foi ali, no meio de Ivan, Raskolnikov, Aliosha, Marmeladov, vagando febril por tanta humanidade, que nasceu meu desejo mais pronunciado de ser prosador. Depois, vieram muitos outros autores e, decididamente, passei as décadas de 70 e 80 inteira lendo principalmente Proust. Dos brasileiros, lia muito Clarice, Graciliano, Machado, Rosa. De Graciliano Ramos, tenho certeza que ficou muito em mim. Eu ficava perturbado com aqueles personagens — Luis da Silva, Paulo Honório, o realismo aguçado, a prosa muito precisa e muito dura. (Graciliano até hoje me parece necessário reler por um dever de purificação). Mas queria também o mistério, a poesia, o inesperado de Clarice. Outros nomes: Campos de Carvalho, Lúcio Cardoso, Rachel Jardim, Loyola Brandão, Lígia Fagundes Telles... Com Loyola e Rachel Jardim, acabei me correspondendo pessoalmente, mais tarde.

Acho que o Brasil literário é um espanto em termos qualitativos: ter gente como Rosa, como Clarice, como Machado! Mas, se você me perguntasse qual o livro que mais me marcou, eu responderia meio automaticamente: Em busca do tempo perdido. Proust, para mim, é o maior de todos os escritores.

SG - Quem são os seus autores contemporâneos preferidos e qual é a sua relação com eles?

CL – Não sou um leitor que se prenda a escolas, a estéticas rígidas. Leio de tudo, de policiais a livros de mistério, de fantasia, levado por intuições de momento. Sou fascinado por policiais, terror, suspense, aventura, porque eram mania na minha infância, e se misturavam com minha admiração bem precoce pelo cinema de Hitchcock, pelos filmes de ficção-científica e mistério. Mas preciso respirar ares filosóficos e literários mais vastos, é sempre assim, vou alternando mundos muito diferentes, sem preconceito, do entretenimento simples a coisas mais sérias e ambiciosas. E, na verdade, não me prendo à contemporaneidade, não me importo muito com modas. Leio de tudo. Os brasileiros em que me detive nos últimos anos foram Ronaldo Correia de Brito, Nelson de Oliveira, Marcelino Freire, Rodrigo Lacerda, João Gilberto Noll, Maria Valéria Rezende, Ricardo Lísias (ele tem um livro com novelas formidáveis, como "O capuz") e outros, mais ou menos conhecidos. Quanto aos estrangeiros, ignoro o que está em voga, pego em Paul Bowles, Truman Capote, Carson McCullers, Iris Murdoch, Dennis Lehane, Ray Bradbury, Philip K. Dick, Ruth Rendell, Doris Lessing, um monte de autores. Mas, na verdade, se me sinto frívolo e dispersivo, volto correndo para os clássicos. Como não reler Machado, por exemplo? É uma delícia eterna. E é o sabor sempre novo do que parece conhecido, mas nunca se exaure.

SG - Você é crítico literário, papel que exerce em várias publicações na internet. Como explica a quase ausência da crítica literária nos jornais, substituída pelas resenhas? Aliás, qual é a sua opinião sobre a crítica literária praticada nos dias de hoje? Como ela afeta a literatura?

CL – Eu não me sinto propriamente crítico literário, escrevo só sobre livros que me parecem dizer alguma coisa, pessoalmente. Não é uma postura profissional. Minhas idiossincrasias me impedem de ter pretensões a uma rigorosa objetividade (o que me parece um mito, aliás). Escrevo com paixão e não me importaria nem um pouco de ser tachado como "impressionista" (não tenho formação acadêmica). É comum eu escrever sobre livros que estão totalmente esquecidos, que às vezes compro nos sebos. Mas escrevo livremente e, graças à internet, sem me sentir tolhido com a política dos "tijolinhos" das resenhas de revistas e jornais maiores. Não sou guiado por patotas e agendas ideológicas tampouco, graças aos deuses. Quero acima de tudo a liberdade, o prazer, o tesão da leitura. Odeio gente pedante, que parece já ter nascido com bom gosto, sem jamais ter se alimentado de lixo estético, quer dizer: gente basicamente irreal. Odeio pavões sentenciosos. Odeio a arrogância, os grupinhos fechados, os fundamentalismos rancorosos. Quero ficar muito longe dessas coisas. E, claro, nem sempre é possível. Elas não deixam.

As resenhas, de fato, andam com cara de mero marketing ou de editora ou de autor, de um modo muito bisonho. Na internet se lê coisas muito melhores que nos jornais. Acho a crítica importante, mas só até certo ponto. Pode dar alguma colaboração, mas não afeta as decisões profundas e solitárias que o talento pode tomar. O fundamental é que um escritor siga suas emoções, se depure, leia, leia, leia muito, ouvindo mais sua voz interior que cartilhas estéticas de igrejinhas. Ler muito, amar a humanidade com uma crença frustrante, desesperada, apaixonada, também é fundamental. Sem amor, sem piedade, também sem uma boa dose de crueldade lúcida, não há escritor. Mas, ler, acima de tudo. Ler o tempo todo. E escrever e reescrever quantas vezes for preciso, e nunca se dar por muito satisfeito com nada. Escritor satisfeito é quase sempre escritor medíocre.

SG - O que pensa das resenhas que se lê hoje em dia, em sua maioria, elogiosas, cheias de louvor aos autores?

CL – Há desespero em se divulgar gente que não recebe o bafejo do marketing, o que é compreensível. Faz-se a famosa "ação entre amigos" porque, por baixo disso, há a triste verdade de um país onde se lê muito pouco e onde publicar um livro, seja ele qual for, já parece uma proeza. Mas nem tudo que permanece obscuro ou anônimo é bom, naturalmente. Há anonimatos plenamente merecidos, do mesmo modo como há famas forçadas.

Há uma despreocupação com ler de fato um livro todo, conhecer de fato um autor, e é isso que mais me incomoda. Há pouca cultura literária, e ela parece diminuir dia após dia (o que há é o desejo apressado de tornar o escritor alguém digno de ser notado pela mídia, e, para isso, vai-se falando qualquer coisa, dando um vernizinho intelectual aqui e ali a gente que não tem valor algum). Elogio automático é uma desgraça. Há muita preguiça, muita vaidade, muita pressa.

Eu não me comprometo por aí, simplesmente leio o que consigo ler dentro do meu tempo e meus afazeres e, se me parecer bom, se for possível, comento. Detesto brigas estéreis por egos melindrados, e acredito em "crítica construtiva" sim, acredito em escrúpulos, em fidelidade ao que sinto. E acho que evitar desafetos compulsivamente é covardia. Ninguém escapa a ser detestado, às vezes pelo simples fato de existir e pensar algo diferente do que se espera. É preciso que se diga o que se pensa. O que não significa sair dando tiros a torto e direito. Quem faz isso não poderá depois escapar dos tiros alheios nem queixar-se deles. É preciso haver elegância, moderação, humanidade. A pretensão a "dono da verdade" é um verdadeiro horror. Nesse sentido, vão se criando alguns verdadeiros monstros, que parecem acima de tudo escritores "manqué" decididos a infernizar os escritores verdadeiros, cujos erros e acertos precisariam ser vistos com mais cuidado.

SG - O que acha dos concursos literários? Já se aventurou em algum? Acredita que são isentos?

CL – Já me aventurei sim. Acho que os concursos são necessários. Quanto a serem isentos, é inevitável que nem todos sejam. Mas me parecem necessários nem tanto pelos prêmios ou pelo reconhecimento ou o que seja, mas simplesmente porque estimulam a criação. Escritores às vezes fenecem por falta de motivação, de esperança, e a perspectiva de ganhar algum dinheiro ou ser publicado é um ótimo alento.
Recebi prêmio de honra ao mérito por três dos contos longos do Hóspedes do vento no concurso Josué Guimarães, de Passo Fundo, em 2007. Foi o único prêmio que obtive até aqui. O resultado, ainda que modesto, me agradou.

SG - O poeta Tchello d'Barros escreveu este "slogamínimo" para os estudantes: "vá ler mais / pra / valer mais". Qual a importância da literatura no dia-a-dia das pessoas? Por que ler? A leitura dignifica o homem?

CL – Sem ler, impossível ser feliz, livre, criativo, em resumo: humano. Eu teria enlouquecido, vivendo como sempre vivi num mundo acanhado, num meio hostil, se não fosse esta bênção: os livros. Todo poder à Literatura e à Imaginação! Tudo que eu disser a favor será pouco.

SG - Você também é tradutor. Tradução é um ato de criação?

CL – Acho que é sim. Na verdade, a primeira vez que travei contato com a ideia de tradução como ato criativo, foi em Haroldo de Campos, no livro A arte no horizonte do provável, que me marcou muito numa certa época. Nunca pensei que faria traduções profissionalmente, mas, como gostava muito de traduzir letras de música (dos Beatles e outros, nos anos 60 e 70) e traduzia para mim mesmo trechos de prosa em Inglês, acabei chegando a isso, mas foi um processo demorado. Gosto de traduzir — o ato sempre me parece desafiador, gosto da sensação de que aquele dado autor será lido em Português graças a mim. Poesia, particularmente, é um grande desafio, e a ela se aplicam melhor as teses do Haroldo naquele livro. Mas tenho traduzido prosa, apenas.

SG - Seus contos costumam evocar letras de músicas e cenas de filmes. Qual a sua relação com o cinema e com a música? Quais são as suas preferências musicais e cinematográficas?

CL – Cinema é paixão desde menino. O meu lugar favorito na minha cidade natal era o cinema, que infelizmente, como em quase todas as outras cidades pequenas, não existe mais. Ali a aprendi a amar Hitchcock, Polanski, Coppola, Kubrick e muitos outros. Até os anos 80 aquele cinema existiu — deu tempo ainda de pegar sessões sucessivas de Blade runner, um dos meus filmes mais queridos.

Sou programador e apresentador de filmes no Instituto Moreira Salles – Casa da Cultura de Poços de Caldas, há 16 anos. Vivo em meio a revistas, livros de cinema, DVDs. Vejo de tudo, e por isso o ar de sacralidade que a arte tinha para mim, quando menino, foi se perdendo um tanto, com o conhecimento, a experiência. Mas basta que eu descubra, no meio da enxurrada comercial, um filme digno e vibrante, e a minha paixão cinéfila volta com tudo. Meus diretores favoritos são Hitchcock, claro, David Lynch, Herzog, Almodóvar, Welles, Babenco, Tim Burton (não sempre), Huston, Wilder... na verdade, é mais justo dizer que a gente ama mais é certos filmes e às vezes conclui que os diretores, no conjunto, não mantêm sempre a coerência artística ideal (devido ao aspecto industrial e contingente do Cinema). É comum que a atmosfera dos filmes penetre nos meus contos. Creio que aprendi, vendo filmes, certas regras de ritmo, concisão, desfecho, certas elaborações sugestivas, certas elipses. E era inevitável, devido a essa paixão sistemática.

Quanto às músicas, desde sempre amo música popular e clássica, toda espécie de música. E tenho uma memória muito grande para letras — portanto, trechos de canções que combinam com o estado de espírito do conto ou do personagem sempre são inevitáveis, em meus contos. Bem, dizer de preferências? Digamos que ouço de Carlos Gardel a Gustav Mahler, passando por Peter Gabriel e Chico Buarque. Ouço de tudo, e especialmente música instrumental. Mas adoro música popular brasileira, especialmente a do passado.

SG - Segundo Walter Benjamin, o cinema é a maior das artes. Ele considerava o cinema (a fotografia também) a forma de arte mais significativa para a reflexão estética dos problemas da modernidade, a que rompe definitivamente com a tradição. Você concorda com isso?

CL – Sou cinéfilo tarado, mas não consigo concordar com isso de haver uma arte maior do que todas as outras. O Cinema, falando agora com um esforço danado para me livrar da paixão que me faz ver todo tipo de filme, tem demais de indústria para ser uma arte assim tão superior. Pode ser grandioso aqui e ali, mas o que há de ruindades, por Deus! Por outro lado, sempre acho que a Literatura, mais livre, atinge zonas da inteligência, da sensibilidade, da Beleza, que o Cinema, por ser tão atrelado à massa e ao mercado, jamais poderá atingir. Hitchcock foi grande, claro, mas nunca grande da maneira que Proust o foi. E nunca pensei em ser cineasta pelo simples fato de que me parece assustador ficar pensando em contratar a estrela X ou Y, ficar submetido aos caprichos de um produtor cheio de dinheiro, a um espírito de equipe castrador ou a um orçamento apertado, etc. Por outro lado, os roteiros parecem andar muito pobres, pela necessidade de adular a burrice que engrossa bilheterias. Avatar, por exemplo, é uma miséria em termos de roteiro. O Cinema não tem de modo algum a liberdade que uma página em branco pode oferecer a um escritor. Quando é grande, quando se arrisca, em geral, é mal compreendido pelo público. E ele depende demais do público para voar alto de fato.

SG - E por falar em tradição, você tem alguma preocupação em trabalhar a linguagem dos seus escritos?

CL – Naturalmente que tenho, e acho que quem não tem está se condenando à irrisão ou é estupidamente vaidoso para reconhecer a importância dela e está perdendo um tesouro. A tradição é fundamental. Mas renová-la também é. De algum modo, assimilando-a com a humildade e o senso crítico, é sempre possível continuá-la e movê-la pra frente, no que tem de melhor. Quanto ao meu trabalho, lamento muito meus erros, me purgo, me xingo, esperneio e vivo reescrevendo tudo que posso reescrever. O consolo é que sempre poderá haver segundas edições.

SG - Sei também que você é desenhista e pintor. Chico, no bom sentido, você pinta e borda e faz o que mais?

CL – Na verdade, comecei desenhando e pintando e a literatura veio depois. Eu tenho uma relação muito visceral com imagens, por isso o amor ao Cinema, e por isso escrever, para mim, é um flertar com várias outras artes. Na verdade, não pinto e desenho tudo o que gostaria, porque me falta tempo. Faço minhas telas quando me sobra um tempinho, e continuo apaixonado por certa fusão de expressionismo e surrealismo, com imagens próprias, que aprendi a fazer, com os anos. Mas não tenho maiores pretensões quanto a isso. Exponho quando me dá na telha, e, quanto a desenhos, às vezes faço capas de livros para amigos, ilustrações aqui e ali. Fiz ilustrações com mais regularidade nos anos em que trabalhei em jornais. Sou um pouco faz-tudo sim. Mas claro que não me saio bem em tudo, apenas me expresso nessa arte também. É uma necessidade meio... vital, eu diria, porque a Pintura, diferente da Literatura, é um prazer de ordem mais... física.

SG - Você tem algum ressentimento de viver numa cidade do interior de Minas ou acha que é precisamente por viver aí que sua literatura é mais rica, mais personalizada? Pergunto isso, porque acabo de reler seu artigo "O Inferno Jeca Enfrentado com Literatura", publicado na Germina [clique aqui e leia].

CL – Ah, esse artigo provocou algumas polêmicas entre os que o leram... Houve quem até me agradecesse por descrever com precisão o problema de um escritor em cidades do interior, houve quem achasse que fui exagerado. Creio que ele tem ares de bronca, e eu poderia ter dito mais coisas no terreno da amenidade, claro, com mais moderação e verdade, igualmente. O que me chateia é que se idealiza demais a vida no interior como tranquila, benéfica, etc. — uma visão que implica numa certa hipocrisia de quem pertence a uma classe que pode ficar curtindo paisagens, viagens e passeios e de algum metropolitano que não mora nelas; quem simplesmente vive nos lugares e tem que conviver com as dificuldades naturais da vida, não vê as coisas com essa complacência duvidosa. Fica-se falando em Paraíso, quando se esquece que, onde há o homem, lá estarão conflitos, lutas, tormentos — afinal, não faz muito tempo que fomos expulsos dele?

Não gosto do ufanismo, de bairrismo ingênuo. E certa literatura brasileira sempre fez de cidades do interior uma coisa hipocritamente idílica, encobrindo o que elas têm de desesperador e sufocante ou de simplesmente humano (e onde há seres humanos, dificilmente haverá consensos felizes). Mas isso já mudou, claro. Nos últimos anos, a literatura brasileira é acima de tudo urbana, como apontou o Luiz Ruffato, e pode-se, sem dar nomes, falar de cidades pequenas ou médias como se fossem subúrbios das metrópoles, porque tudo se parece, se achata, se uniformiza, em termos do novo crescimento urbano violento do país. De modo que aquela visão semi-rural, semi-bucólica, cheia de "prazeres simples e puros", já foi para o brejo. Eu adoro Minas e acho que morar em Poços foi muito benéfico para a minha literatura, de certo modo. Poços tem uns ares misteriosamente fecundos. Vim do interior de São Paulo, de uma cidade (Novo Horizonte) que, comparada a Poços, perde terrivelmente. Do pouco que andei por Minas (minha mulher é mineira), fiquei apaixonado pelas belezas todas. Mas minha ligação com o interior é primeiramente realista, experiente demais para ser mistificada. Amar alguma coisa não significa deixar de ver tudo que ela tem de imperfeito também.

SG - O que a internet trouxe de bom e de ruim para a literatura? Aliás, para todas as artes?

CL – A internet é um instrumento, moralmente neutro, podendo ser usado para isso e aquilo, indiferentemente. De modo que nela, por sua natureza democrática, entra de tudo. É principalmente essa a sua virtude. Para mim, tem sido ótimo trocar, com a rapidez sabida, e-mails com amigos escritores ou simples amigos, fazer contatos profissionais, etc. Tudo se simplificou, com um computador à frente de nós, e quem não reconhece esse fato e prefere ficar longe é como alguém que ignora os benefícios da luz elétrica, achando mais romântico viver à luz de velas. O que as pessoas que criticam a rede temem é sua amplitude, seu desconhecido, suas possibilidades sem fim. Mas temer essas coisas é reacionário, é uma estupidez. Melhor mesmo é fazer um bom uso delas.

No caso específico da literatura, não é ótimo poder participar de sites como o Germina, onde em geral se tem uma liberdade de espaço e expressão de ideias com fôlego, que na imprensa de papel já não há mais? A literatura (infelizmente, com característica de aluvião, trazendo do bom e do ruim, é claro) tem se salvado é por aí. Fora o manancial de informações artísticas de todo tipo e qualidade. Quanto às chatices e mediocridades e abusos da rede, o que se pode é repetir alguns mineiros do interior que dizem sabiamente que "não há bondade sem senão".

SG - Já planejou o seu próximo passo na escrita? Podemos esperar um romance de sua autoria?

CL – Bem que gostaria de escrever um grande romance de minha geração, dizer como aqueles ideais dos anos 60, do "desbunde", da Contracultura, da luta pela transparência no comportamento, por uma ética libertária, foram sendo substituídos por conformismo, cinismo e desilusões sem fim. Teria muito que dizer sobre amigos que morreram, outros que infelizmente piraram e tudo mais. Mas, não seria uma coisa tão direta assim, a ficção ditaria os caminhos (não sou partidário do realismo estrito de modo algum). E, na verdade, devo confessar que os romances, pela extensão e o fôlego, são coisas nas quais mal penso.

Mas já escrevi duas novelas, de tamanho razoável (cerca de 90 páginas cada) e gostei do resultado — eram histórias que, por seu ritmo, sua ambição, não poderiam ser mantidas como contos. E tenho projeto de escrever outras. Se eu chegar ao romance, será muito naturalmente, com minha habitual lentidão e purgação.

junho, 2010

Chico Lopes (Novo Horizonte/SP, 1952). Escritor, tradutor, crítico de cinema, jornalista, autor de Nó de sombras (São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2000), Dobras da noite (São Paulo: Instituto Moreira Sales, 2004) e Hóspedes do vento (São Paulo: Nankin Editorial, 2010). Seus contos e resenhas foram publicados em revistas como Cult, Pesquisa e Entre Clássicos e jornais como Correio Braziliense, Minas Gerais, Rascunho, dentre outros. Pulica regularmente crítica de cinema e literatura em sites da internet como Verdes Trigos, Verbo 21, Conexão Maringá, Cronópios e Germina. Realizou doze traduções de lieteratura clássica e contemporânea para a Landmark, Ediouro e Rocco. Vive em Poços de Cladas (MG), onde é crítico e programador de filmes do Instituto Moreira Sales — Casa de Cultura, desde 1994.

Mais Chico Lopes em Germina
– Episódio de Caça (Conto)
– Na Berlinda (Conto: O Nome no Ar)
– Letra & Imagem

Silvana Guimarães (Belo Horizonte/MG). Foi pianista, socióloga, especialista em transporte público. Agora escreve. Pura vingança. Coeditora da Germina — Revista de Literatura e Arte e das Escritoras Suicidas. Tem contos e poemas publicados em revistas nacionais e estrangeiras. É uma das 8 Femmes, poesia (São Paulo: Papel de Rascunho, 2007). Participou da antologia Pitanga, de microcontos (Lisboa: Pitanga, 2008). Organizou, com Florbela de Itamambuca, Dedo de Moça — uma antologia das escritoras suicidas (São Paulo: Terracota, 2009).

Mais Silvana Guimarães em Germina
– Entrevista
– Faro (conto)
– A Eleita (Genética da Coisa)
– Sabiás & Exílios (org.)
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