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terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O homem de paletó (Simone Pessoa)



Desliguei a luz da cabeceira para me aninhar entre os lençóis. Quando me virei para encontrar posição mais aconchegante, olhei de relance para a parede... Um susto! Na penumbra do quarto, por trás do cabide, um homem alto, de paletó, estava parado. Devido à escuridão, não dava para distinguir o rosto na cabeça chata da criatura. Fechei os olhos e, por instantes, evitei me mexer enquanto meu coração quis pulsar acelerado.

Se tivesse acontecido há trinta ou quarenta anos, teria sido o maior sufoco. Por certo, permaneceria imóvel e fingiria dormir, mas meu peito não conteria o impulso do coração. Nesse aperto, os níveis de adrenalina atingiriam o pico na noite sem fim. E até que eu criasse coragem para entrever novamente a figura, levaria uma eternidade. E na manhã seguinte, aliás, nos dias seguintes, o suposto homem de paletó seria assunto exaustivamente comentado e se tornaria acontecimento extraordinário a ser lembrado pelo resto da vida.

Ocorre que já não sou a criança impressionável que fui um dia. Saudades desse tempo... Mulher maturada, não me cabe mais esses doces temores infantis. Diante da figura negra de paletó atrás do cabide, me vi em sobressalto, mas logo percebi que se tratava apenas do paletó de meu marido pendurado no armador, sobre o qual havíamos enganchado alguns bonés. Sobrepostos, os bonés assumiam a feição da cabeça chata do homem imaginário.

O alívio após a agitação imprevista serviu para me trazer à tona recordações de medos do escuro, de monstros presumidos, de fantasmas, de aparições inexplicáveis da infância. Uma roupa qualquer sobre a cadeira facilmente se transformava em visagem nas penumbras pueris. Um barulho mínimo provocado pelo vento era suficiente para alarmar e anunciar um ladrão ou um fantasma à espreita. Um paletó com bonés no armador por certo seria um espectro, um gangster ou um malfeitor em alto estilo prestes a atacar.

Por via das dúvidas, me levantei da cama, guardei o paletó no guarda-roupa e retirei os bonés do armador. Assim, pude virar para a parede sem risco de sobressaltos ou de saudosismos e dormi com os anjos.

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