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quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Escritos no dilúvio (Dimas Macedo)



Redux in Black and Pastel (2009), Amy Bessone

O frevo-barulho de Olinda e o silêncio. As areias macias de Toledo. Os lábios ardentes de Fernanda que me levaram um dia para a morte. Os seios redondos de Cynara. As conversas estéticas de Luana. Os beijos molhados de Salete e os pontos de luz ao longo do corpo de Narcisa.

Porém as marcas maiores da infância são essas: uma foice cravada sobre a mesa, nove balas em um único buraco, os carneiros balindo ao sabor do império dos marchantes, a corda amarrada no pescoço do meu pai, uma réstia branca na varanda e a minha mãe morrendo por não viver a vida que queria.

Vida. Um projeto de vida é um instante. E um dilema de vida é tudo o que carrego comigo, pois viver ou morrer não interessa quando se tem a morte como certa, tais uma dália branca e uma rosa púrpura e um homem segurando um cachorro pelo cano. E os meus irmãos ferrando as cadelas no terreiro. E o meu pai expulsando os demônios do seu corpo. E eu sozinho menino entre mangueiras, a ler um livro de luz quando não se tinha um livro impresso pela frente.

E que me venham, por último, de forma reduzida, uns seios brancos que eu mordi em uma noite francamente marcada pela morte. Uns seios magros e quase fatalmente densos quando eu cravei os dentes nos seus bicos. Eu queria chupar os seios de Marcela porque essa era a forma que eu tinha de acabar com o sangue agitado que ela carregava entre as pernas. Ela aceitou morrer lentamente em meus braços, pois queria despertar em mim o assassino totalmente frio que ainda hoje faz as suas vítimas e vive escandalosamente solto pelas ruas.

A morte de Marcela é o maior de todos os meus atos. E o sangue que lhe suguei do corpo ainda hoje lateja em minhas veias. Com ela aprendi que o sexo, na mulher, está um pouco mais acima da vulva e a um palmo, talvez, da cavidade dos lábios. O sexo, segundo ela, não estaria no ânus, mais ao alcance de todos a qualquer hora em que os seres humanos estejam represados. “Bastam-se os dedos e um par de olhos quando queremos levar uma parceria secreta para a cama” – era tudo o que Marcela dizia enquanto eu praticava o maior de todos os meus crimes.

Depois eu me larguei sozinho pelas ruas do centro. Chovia muito na cidade. As luzes totalmente foscas. As pessoas comprimidas em um amplo balcão de uma lanchonete. As revistas pingando sangue e esperma na Banca do Bodinho. Um casal de gringos atravessando a Praça do Ferreira. Uma vontade imensa de fazer sexo com o amor de Deus me permitisse.

E muito perto de mim o motorista gritou assustado – “A morte! Para que serve a morte?” – “Para nada”, respondi e continuei andando pelas ruas. Bêbado. Totalmente bêbado pelos mistérios da infância e pelos sinos poliédricos da Igreja de Lavras.

Deus ou a morte. O sexo ou a morte. A loucura completa ou a morte. Era isso que eu via na Igreja de Lavras. Nas preces do meu pai faminto pelas hóstias. Nos dedos da minha mãe segurando as cordas do rosário. E o resto era a dúvida e o espanto. E o sexo crescendo sob a roupa. E Santa Teresinha me enxugando o rosto com um lenço.

Acho que a morte do meu pai é uma marca antiga. Marca que ele próprio trazia na alma e que achava uma coisa perigosa. E por tudo a minha mãe não tinha espaço para a luta. Vivia em agonia por dentro e incendiava por fora todas as pessoas. Era portadora de uma ânsia bipolar congênita. E como um pássaro em pânico vivia explodindo como louca. Não queria morrer e a morte prematura era o sinal primeiro da presença de Deus em sua vida.

A chuva. Essa maldita chuva a interromper os passos da infância, o tempo maior de sofrimento do homem sobre a terra, o tempo da condenação e dos estigmas, o tempo do sexo borbulhante e das mãos vazias de carinho.

E é por isso que peço uma forca todinha para o Papa. E o paraíso inteiro para Dante. E o grau de santidade para Oscar Wilde. E as bordas de uma estrela para pendurar os meus conflitos mágicos e as minhas ilusões maiores no plano de Narciso.

E que sigam para longe de mim as metas esotéricas. E as conversas bobas dos boêmios. E os prêmios literários que não valem nada. E essa safra imensa de poetas que vejo em Fortaleza. Tolos. Completamente tolos e lunáticos.

Ai Ceará dos meus olhos lívidos de matuto! Dos meus olhos límpidos de esteta! Dos meus passos trôpegos de boêmio, sempre em busca de veneno e glória! E a minha história secreta que não sai em livro.

E o parceiro secreto do poeta continua caminhando sob a chuva e morrendo. Morrendo para nascer de novo para o mundo. Para o mundo eternamente novo do instante. E como suicida ele sabia que não tinha saída: ou a ânsia plural e absoluta que o marcava tanto ou o coração eternamente domínio de todas as mulheres ou o hábito de monge que o aguardava prontinho para breve ou o amor total e inseguro que Sílvia lhe acenava com os dedos rotos de esperma. Sílvia, a fantasia secreta e deslumbrante e a última, entre todas as mulheres, com que desejava trepar com segurança e enquanto fosse necessário.

Sílvia e os seus olhos lânguidos de menina. Sílvia e a sua escultura branca de gazela. Sílvia e a sua voz macia de repórter. Sílvia e as suas mãos maduras pela frente. Sílvia a exigir carinho pelas costas. A se deitar bonita ao lado do poeta. A escolher as notas do seu canto. A lhe dizer cantares de amiga, porque, afinal, o amor no amor se basta. O amor, assim, talvez, maior que o medo. O amor maduro e mágico de um poeta. O amor maduro de Sílvia no começo.

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