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quinta-feira, 14 de abril de 2011

A cabala da ficção (W. J. Solha)

Making of do romance Relato de Prócula


ÁLEF

Impressionou-me a narrativa que o jornalista Nathanael Alves me fez quando fui visitá-lo no hospital, depois de uma tentativa, sua, de suicídio. Falou-me da decisão de dar um tiro no peito dentro de casa, seguida da preocupação com o impacto que isso teria dentro da família, pelo que imaginou ser melhor matar-se na BR, escolha deletada pelo escrúpulo de que isso envolveria estranhos em suspeita de assassinato, donde a solução final de dar cabo da vida no Fórum, seu local de trabalho. Ele me contou como foi: “Fechei-me no banheiro da repartição e fiz o disparo. Caí diante do lavabo e constatei que começava a acontecer comigo o que muitos relatam ter sido sua experiência de Quase Morte: vi minha vida inteira passar como num filme”.

BETH

Quando senti que aquilo funcionaria muito bem num romance, liguei o fenômeno a um diálogo meu com Ivan Cineminha sobre suas duas entrevistas no Programa do Jô Soares, a respeito de sua extraordinária memória fílmica. A paixão, dele, pelo cinema, evocou-me a do Padre Andrade, que eu via em todos os lançamentos do Cine Lux, em Pombal, nos anos 60. Isso me lembrou Padre Martinho, também pombalense - na mesma época diretor do Colégio Diocesano -, a quem convoquei, certa vez (mais um pastor protestante e um espírita, além do grande intelectual da cidade, Doutor Atêncio Wanderley ) para ouvir um ensaio meu, em que demonstrava que tudo que há de novo nos Evangelhos, com relação ao Velho Testamento, já fora dito, quatrocentos anos antes, por Platão. E associei isso ao fato de que no mesmo Colégio Diocesano – por deferência especial do mesmo padre – ficou alojada toda a equipe que participou do filme O Salário da Morte, em 1969, na produção que o colega José Bezerra Filho e eu montamos, tendo praticamente toda a cidade como sócia.

GIMEL

Um dos grandes destaques desse filme foi outro grande amigo, Horácio de Freitas, inteligentíssimo, avaliador da carteira agrícola do BB, de que eu era chefe, e extremamente místico, a ponto de cometer a extravagância de me dizer, ao me ver pela primeira vez, na inauguração da agência do banco na cidade, em 1963: “Você irradia tanta luz quanto Moisés ao descer do Sinai”. Por causa disso e de minhas pesquisas sobre Cristo, ao ver o sofrimento enorme de um vizinho em perigo de morte, queimado numa fogueira de São João, entrei, involuntariamente, num transe simultâneo à recuperação tida como impossível do rapaz, “cura” seguida de outras, semelhantes, até que a série de coincidências parou quando me vi com o caso de um tumor no cérebro da filha de um colega meu do banco, pai do guitarrista Alex Madureira, já aqui em João Pessoa, e a moça morreu. Meu personagem Padre Martinho Lutero começou a crescer com essas angústias e esses amigos.

DALETH

O ensaio lido para os religiosos e intelectuais pombalenses acabou gerando o romance A Verdadeira Estória de Jesus, que publiquei pela Ática em 1979, no qual coloco os quatro evangelistas criando o grande mito cristão. Dom José Maria Pires – outra figura forte na minha memória – disse-me, ao ler a peça a partir da qual eu escreveria o livro: ”Você me provou que o que eu supunha ser um tesouro é um baú cheio de latão pintado de amarelo”.

HEH

Aí apareceu-me o elemento que faltava para o romance. Fiz, durante três anos, na Semana Santa, o papel de Pilatos no megaespetáculo Auto de Deus, do Everaldo Vasconcelos, o que me levou a rever todos os filmes em que esse personagem aparece e a ler tudo que estava ao meu alcance, a respeito dele. Quando vi Jesus, no filme “Paixão”, de Mel Gibson – dialogando com seus conterrâneos em aramaico e com o Praefectus de Jerusalém em latim, liguei isso ao fato de que Paulo de Tarso era cidadão romano, como eram cidadãos romanos o historiador judeu que mudou o nome para Flavius Josephus, bem como o filósofo Filon de Alexandria, “pai” do primeiro versículo do evangelho de João por sua teoria sobre o Verbo. Esse sábio teve um dos sobrinhos, depois, ocupando o posto de Pôncio. Aí me perguntei: por que ninguém, até então, suspeitara que Jesus, no grande hiato dos seus doze aos trinta anos, estava era em Roma, donde viria a serviço do Império, como Flavius Josephus e Filon, agente infiltrado entre os judeus, a pregar para eles o amor aos inimigos, dizendo, inclusive, o reacionaríssimo Dai a César o que é de César?

VAU

Mas se para mim – e para meu Padre Martinho Lutero - Jesus jamais existiu, que sentido teria esse insight? A vida é muito complicada, meu livro também. Um dia li os versos de Nertan Macedo contando que Lampião era filho de Maria e de José e que teve de fugir, quando menino, com a família perseguida por vizinhos violentos, de Vila Bela para a de Nazaré em Pernambuco. “Caramba!”, exclamei. De informação em informação, publiquei um ensaio em A União: “Se Jesus foi a Luz do Mundo, Virgulino foi Lampião”. As vidas paralelas de Cristo e do cangaceiro, feito as de Plutarco, culminam, numa série de semelhanças entre os dois, com os famosos cordéis “A Chegada de Lampião no Inferno” e “A Chegada de Lampião no Céu”, ambos do José Pacheco. E é assim que meu padre acaba crendo novamente na existência histórica do nazareno, vendo-o, agora, com o crachá do serviço secreto de Tibério.

Por coincidência, na contramão disso, eu soube que Dom José Maria estava atravessando uma crise religiosa, pelo que o procurei, pedindo-lhe autorização para usá-lo como personagem de um livro. Recusou-a, dizendo. “Você vai falar com quem já sabe tudo que está acontecendo. Por que não faz versos de cordel?”

ZAIN

Não me lembrava disso quando, em 1979, fiz um cordel para o maestro Kaplan compor sua “Cantata pra Alagamar”, cujo grande personagem era, justamente, Dom José Maria Pires, no apoio que deu aos camponeses em luta contra aquele latifúndio.

CHETH

Que crise seria aquela, dele? Ninguém soube ou quis me dizer. Mas ela veio somar na criação de meu personagem, que só não deixa a batina por conta da opção da Igreja de então pelos pobres, com a qual ele se identifica de corpo e alma. Foi com entusiasmo que o fiz participar, com Dom José, da campanha pela Reforma Agrária, foi com angústia que relatei a intervenção de João Paulo II e de sua eminência parda, o cardeal Ratzinger, depois Bento XVI, que liquidaram a Teologia da Libertação, anulando Boff, Dom Hélder, Dom Evaristo Arns... e Dom José Maria Pires, enchendo – em seguida - o país de bispos medievais.

TETH

Aí meu Padre Martinho começa a dizer o que pensa, em toda oportunidade que aparece, e isso acaba lhe valendo de Dom Aldo Pagotto uma ordem de afastamento temporário da Igreja, tal como sucedeu agora com o Deputado Luís Couto, no que a vida, desta vez, imita a arte. Do Palácio do Bispo, já despachado, o sacerdote pombalense vê uma grande quantidade de atores diante do Casarão 34, no momento em que é selecionado o elenco para o Auto de Deus e, admitido no papel de Pilatos, estuda tanto o personagem que, na estreia do espetáculo, debaixo de chuva, tem o insight que o faz abandonar a cidade imediatamente após a peça. É em sua casa, em Pombal, na fazenda Mundo Novo (nome da propriedade de Horácio de Freitas), que ele pega o 38 e revive o drama de Nathanael, terminando por dar o tiro no peito dentro de sua velha camioneta, na Rua Nova, reassistindo a tudo que vivera até então, como num filme.

YOD

Eu escrevia o livro quando fui convidado para um encontro no mesmo Casarão 34, em que um representante da Funarte, do Recife, insistiu comigo e com os outros presentes, para que mandássemos nossos projetos ao Rio, concorrendo com as bolsas de criatividade literária fornecidas pelo Ministério da Cultura. Fiz isso com esta estória maluca... e fui um dos dez contemplados no país, em 2007. Em junho de 2008 entreguei o romance à comissão julgadora, que o aprovou. Mas eu estava inquieto.

KAPH

Mandei o trabalho, então, para quatro amigos escritores, residentes no Sul. Hugo Almeida, de São Paulo, disse-me que eu tinha criado o primeiro clássico do século XXI. Ivo Barroso, do Rio, escreveu-me dizendo que não conseguira ir além do primeiro capítulo, “uma insuportável enxurrada de referências e citações”. Aí recebo e-mail do romancista Esdras do Nascimento: “Acho que citações são coisas para ensaios. Mas você, apesar disso, fez uma obra-prima. O romance está incrivelmente bem escrito”. E aí vem a opinião do contista e também romancista Carlos Trigueiro, dizendo-me que meu livro era um desastre.

LAMED

Dei atenção às falhas apontadas pelos que não gostaram da obra, revisei-a inteiramente e, incapaz de incomodar mais ninguém, mandei-a para um quinto leitor, o gaúcho Paulo Bentancur, mediante pagamento antecipado de quinhentos reais. Conclusão: segundo ele, meu padre citava latim, grego e hebraico demais, minha presença, como narrador, era insuportável, os personagens eram todos inverossímeis por serem inteligentes demais, “pois aqui mesmo no Rio Grande, ao meu redor, só há imbecis”, e não adiantou acentuar que o tema subjacente de meu romance era, justamente, o impacto que senti, quando cheguei a Pombal, ao dar com tanto livro disponível, com tanta gente brilhante, fora e dentro do Banco.

MEM

Fiz uma reviravolta no meu escrito. Eliminei-me como narrador, colocando no meu lugar um funcionário do BB em Pombal, o gaúcho... Rubens Bentancur. Extirpei catorze páginas de erudição do livro, e – pela milionésima vez – li e reli o que havia feito... e vi que agora a narrativa fluía. Foi nesse momento que recebi e-mails de Astier Basílio e Marília Arnaud – de João Pessoa - pedindo-me os originais do romance para ler. Eu o enviei, também, ao José Nêumanne, perguntando-lhe se haveria alguma possibilidade de lançá-lo pela Girafa.

NUN

Astier deixou a leitura lá pela página vinte, alegando motivos pessoais, o que qualquer bom entendedor sabe o que quer dizer. Marília disse-me que achava que justamente aquelas primeira vinte páginas estavam sobrando, isso sem revelar nenhuma empolgação pelo resto, pelo que pensei comigo: “Não tem jeito.” Nêumanne me revelou que o leitor contratado para avaliar o Relato de Prócula o aprovara para publicação, leitor esse que não era ninguém mais, ninguém menos que Rinaldo de Fernandes, que não concordou com Marília quanto às sobras e avaliou a minha criação como consistente, sem, também, demonstrar maior entusiasmo. Foi quando Paulo Bentancur, o gaúcho a quem eu pagara para a leitura crítica, telefonou-me pedindo que lhe enviasse a nova versão do livro, urgentemente, pois conhecera a fabulosa manda-chuva de uma nova editora – a Primavera, de São Paulo – e lhe falara tão entusiasmado do romance, que ela queria lê-lo e logo. “Mas Bentancur: você malhou tanto o livro, que eu praticamente o refiz! Como se explica uma virada dessa?”

- Você não me entendeu: o livro estava ruim para os editores, porque muito erudito e, logicamente para poucos leitores. Mas é um livraço! E se você fez as correções que lhe sugeri, está perfeito!”

SAMEKH

Nêumanne me diz que o fato de o livro ter sido aprovado não significa que terá, fatalmente, publicação, e que isso dependerá de um balanço das perspectivas da sua editora para 2009. Quanto à Primavera, ficou de me dar uma decisão até sexta.

AIN

Ainda bem que nesta semana Eli-Eri me convocou para trabalharmos juntos na conciliação do libreto que escrevi para A Ópera Dulcinéia e Trancoso – a primeira armorial – com a partitura que ele começará a criar agora, contratado por um grupo de Recife ligado ao Ariano. Adeus, portanto, Relato de Prócula. Como dizia Guimarães Rosa, às vezes é melhor cuidar de novo roçado do que ficar tirando o mato do anterior.
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