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segunda-feira, 23 de maio de 2011

A última carta (Abel Sidney)



Desde que cheguei a esta região de caboclos, botos e igapós, fiz questão de demarcar as etapas de minha vida.
Deixei o passado nos limites do cerrado, no distante Mato Grosso. Para ser mais preciso, em Nobres, num trecho de estrada que não mais existe.
Eu trabalhei no asfaltamento da rodovia que liga Brasília ao Acre, a BR-364. Ela passava pelas minhas pouco férteis terras em Nobres, para adiante seguir, atravessando as reservas dos índios Parecis e Nhambiquaras, rasgando mais adiante ainda os mais terríveis areões que se pudesse sonhar existir.
Quando o traçado da estrada foi desviado ao Sul, passando por Cáceres, mudei também o rumo de minha vida. Da velha estrada, com seus leitos de areia, permaneceram em minha memória apenas o uivo dos lobos guará, as águas límpidas dos córregos e as manhãs de fina neblina. O mais tratei de sepultar.
Reconstruí a minha vida em Itacoatiara, no Amazonas, à beira do rio de mesmo nome.
Cidade histórica, cheia de lendas, por lá decidi fincar novas raízes. Por ter me tornado uma espécie de dublê de jornalista e guia turístico, acentuou-se em mim o senso de aventura e, naquele momento, por conta de uns livros que andara lendo, despertou-se também o desejo de pesquisar, de desvendar alguns mistérios que permanentemente rondam as cidades com tradição histórica. Naquela ocasião eu lera, ipsis literis, em um antigo tratado de arqueologia:
As múltiplas camadas de fatos e idéias, sentimentos e ocorrências que se acumulam na atmosfera, digamos, espiritual de uma cidade, tornam-na mais receptiva ou repulsiva. Os seus moradores, por viverem nela mergulhados, pouco ou quase nada percebem. Os visitantes, no entanto, no seu estado de disponibilidade, ao visitar este ou aquele local histórico podem experimentar certas sensações, que vão do mais elevado sentimento de fé às mais terríveis manifestações do horror...
Eu delimitara dois locais por considerá-los sítios arqueológicos, embora não contassem ainda com o peso dos anos e o consenso dos meus contemporâneos quanto à sua legitimidade...
O primeiro era o velho cemitério dos judeus, na época abandonado. O simples fato de se entrever a possibilidade de ter existido uma colônia de judeus naquele quadrante da Terra, era já um fato digno de investigação, de tese, de um curta metragem.
O segundo era um galpão em que eram desembarcados os trilhos da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, para posterior transbordo. O calado do rio Madeira, rio Amazonas acima à esquerda, não permitia que os trilhos seguissem no mesmo navio, direto a Porto Velho. Os trilhos eram transportados em embarcações menores, posteriormente. No escritório da construtora da ferrovia, que também existiu por lá, descobri toda a documentação das baldeações.
Eu não sonharia nunca, no entanto, com o que pude encontrar num fundo falso de gaveta, descoberto um tanto por acaso, ao abrir de modo brusco uma das gavetas da antiga escrivaninha de jacarandá.
O fundo falso, recoberto com papel decorativo e uma fina lâmina de madeira, não permitia que se escondesse nele senão objetos de pequena espessura. E lá encontrei duas cartas, em dois diferentes envelopes. Somente o maior tinha selo, de modo que eu deduzi que se tratava de uma carta que viera dentro de outra. O selo, uma dessas relíquias do início do século vinte, deveria valer uma pequena fortuna, calculei. O remetente do envelope maior assinava David Bernstein. O destinatário, seu filho (descobri ao lê-la), chamava-se Benjamin. Cuidadosamente tomei as cartas na mão e as abri. O papel de boa qualidade resistiu às investidas do tempo, devidamente protegido da umidade, no local secreto.
No meu parco inglês pude traduzir a breve carta que ocupava o envelope menor, introdução da carta mais extensa. Eis o que dizia:
Filho,
O teu pai em breve se despedirá deste mundo. Não conto mais com a tua presença junto de mim. Deves trilhar os teus próprios caminhos. Peço-te que não esqueça as milenares tradições de nosso povo. Que nosso Deus te guie neste imenso inferno tropical... David Bernstein
...segue carta de tua amada, que deseja embarcar no próximo navio.
A carta maior tinha em seu envelope estranhas manchas, que eu imaginei tratar-se de algum perfume que fora espalhado em sua superfície. A reação química produzira uma espécie de aquarela nos tons amarelo e rosa.
A caligrafia dizia explicitamente tratar-se de uma mulher, jovem ainda... Nada mais pude descobrir. Não havia nome do remetente. E o local, onde presumivelmente alguém assinara, estava rasgado.
Depois de falar das “feridas abertas” e dos suspiros sem fim da “saudade”, assim mesmo, em claro português, a remetente dizia em detalhes o itinerário que faria para chegar até o destino, em Itacoatiara. Detalhou também as tantas novidades que levaria consigo: dos livros às últimas invenções que tornavam “a vida mais amena”. E por fim, relacionou os nomes dos tantos filhos que haveriam de ter juntos. Lá estavam: David, Benjamin, Salomon, Ruth, Sarah e Elisabeth.
Nas duas semanas que se seguiram a esta descoberta, tratei de sondar minuciosamente todos os documentos com que me deparei, na tentativa de desvendar o mistério das cartas.
O engenheiro Benjamin, chefe do escritório da companhia que construía a ferrovia, era um judeu inglês. Metódico, não foi difícil traçar toda a sua trajetória pessoal e profissional, pois deixara tudo registrado em agendas que ele mesmo confeccionava. As correspondências expedidas e recebidas também lá se encontravam anotadas, atestando a existência da carta do pai. Quanto àquela remetente, porém, não havia nenhuma pista que me conduzisse a ela.
Meses depois, nada mais encontrando, decidi explorar o velho e abandonado cemitério dos judeus.
O tempo a tudo corroera e apenas uma estrela de Davi, preservada, pude encontrar, semi-enterrada, pois era de bronze. Descobri que os saques aos mármores e aos metais livraram aquele campo santo de quaisquer lembranças de seus tempos áureos, complementando o trabalho do tempo...
O túmulo de Benjamin, estranhamente, estava praticamente intacto. Flores tinham sido depositadas ali, recentemente. Deduzia-se que alguém o estaria livrando dos furtos e do abandono... Mas quem exatamente?
Um morador das redondezas, mais tarde, depois de lhe conquistar a confiança, informou-me que uma mulher era vista com certa frequência a visitar o cemitério praticamente todos os sábados, ao raiar do dia. A senhora, muito idosa, levava sempre consigo o seu cão de guarda, temido pelas crianças.
No sábado próximo, ao amanhecer, eu estava a postos. Levei comigo um buquê de flores. Por sorte consegui chegar alguns minutos antes ao túmulo, tempo suficiente para ela poder impedir o ataque do seu cão, pois que ele me avistara ainda ao longe... No silêncio daquela manhã, interrompido apenas por uns poucos pássaros que atravessavam aquele capão de mato, pude ouvir o seu comando ao cão, no mais puro inglês, sem qualquer alteração no tom de voz. O cão enroscou-se nos seus pés, obediente.
No exato instante do nosso encontro eu depositava as flores sobre a lápide, de modo que, a despeito da estranheza do ato, criou-se entre nós uma terna cumplicidade. Conquistei-a, enfim, quase que de imediato. E não precisou mais do que meia dúzia de palavras para que nos tornássemos quase íntimos. Um quase íntimo, em se tratando de alguém que eu julgara descendente de ingleses, equivale a poder dirigir-lhe a palavra, respeitosamente, sabendo-se de antemão que a resposta não tardará, podendo-se mesmo entabular uma conversação amistosa...
Apresentamo-nos. Ela era Sarah, uma senhora octogenária, primogênita do casal Benjamin-Vitória.
Contou-me ela, em resumo, a história do seu pai, desde a vinda de sua mãe ao Brasil.
...Ele, enfim, estava encantado por uma cabocla, dela esperando um filho.
Minha mãe chegou justamente no dia que antecedeu o parto. Meu pai estava supervisionando algumas obras em local distante, quando ela chegou ao porto.
Hospedando-se em casa de uns amigos comuns aos dois, veio a saber da história de uma mulher que corria perigo de vida, em um parto difícil, por conta da notícia que uma serviçal trouxera à sua amiga.
Enfermeira, colocou-se à disposição para tratar do caso.
O meu pai, avisado do caso, chegou alguns minutos antes do parto, a tempo de presenciar a morte de sua companheira. A mãe da criança não resistira, a despeito de todos os esforços de minha mãe em salvá-la. O pai do recém-nascido, atônito, não percebera quem era a desconhecida e abnegada enfermeira, até que ela depositou-lhe nos braços o filho, banhada em lágrimas...
O duplo choque quase o leva ao desmaio. Abraçaram-se, ante o olhar de espanto de todos. Minha mãe, antes que qualquer mal estar tomasse conta do recinto, prometeu cuidar daquele seu filho, como se fora dela própria.
Os avós da criança, que moravam distantes, foram informados sobre a inusitada situação – a noiva que chega após tantos anos, depois de reiteradas promessas de embarcar rumo ao distante Brasil; que faz o parto daquele que se tornaria seu filho do coração, que por sua vez tinha como pai o noivo daquela estranha mulher, elegante e ruiva, que lhe seria dedicada mãe...
Eu nasceria dois anos depois. E depois de mim, meus outros cinco irmãos.
Eu, perplexo, ainda perguntaria o nome de seus irmãos, para a devida conferência. Ela os enumerou, um a um, narrando brevemente suas trajetórias de vida. Eram os mesmos nomes da carta, não exatamente na ordem prevista ou desejada...
Por fim, naquele mesmo dia entreguei-lhe a carta, que ela confirmou de imediato tratar-se de sua mãe, por causa de umas expressões próprias de seu estilo.
Em sua casa, para onde fomos em seguida, deparei-me com um verdadeiro museu familiar. Lá estavam, em destaque, sob a proteção de tampos de vidro, as outras tantas cartas da promessa. A que eu encontrara, na verdade, era a última carta da série, que começara cinco anos antes, com as repisadas promessas de reencontro “sob o sol e a umidade dos trópicos”...
Tornamo-nos verdadeiros amigos. E durante os anos em que permaneci em Itacoatiara, antes de seguir outros rumos, tomávamos todos os dias, ao entardecer, o chá que ela preparava com toda a pompa, à moda inglesa.
O seu irmão, o caboclinho, curiosamente, tornara-se o único a ir para a Inglaterra, logo após a morte do pai. Teria dito que viajaria “em busca de suas raízes britânico-judaicas”... Não mais retornou. Estudou em Oxford e tornou-se médico, rumando para a África, após conhecer o grande Albert Schweitzer, em uma de suas conferências-concertos.
Um ano depois voltei ao mesmo cemitério, onde minha amiga seria enterrada, por ordem expressa dela, conforme se pode averiguar nos registros do cartório da cidade. Sob a complacência das autoridades locais e na presença de uns tantos amigos que lhe davam um “breve adeus” (tal como mandara escrever na lápide previamente reservada), nos despedimos dela.
Corria o ano de 1984. Três anos depois eu embarcaria rumo a Belém, para então decidir o novo destino a tomar, com uma única certeza a me dominar o espírito – eu haveria de percorrer o mundo à cata de histórias de vida como esta que acabo de narrar.
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