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sexta-feira, 29 de julho de 2011

Márcio Catunda ao redor do mundo e da poesia (Nilto Maciel)


(Márcio Catunda)

Meu amigo Márcio nasceu em 57. Uns meses antes daquela Copa do Mundo de Futebol que expôs, ao mundo e à história, Pelé, Garrincha, Didi e outros semideuses da bola. Naquele tempo, eu vivia a jogar bola nas calçadas e no meio da rua. Dentro de casa, com meus irmãos Ailton e Edinardo, sentia-me um deus a manipular botões, com nomes de gente, sobre um tabuleiro. Nem pensava em literatura, letras, livros. Catunda engatinhava (e eu não via). Aprendeu a balbuciar (e eu não ouvi). Quando deu os primeiros chutes, eu não me interessava mais por bolas e botões. Adolescia, mirava meninas e rabiscava versos e frases. E andava só, pelas ruas de Fortaleza, querendo ser gente.

Cresci, virei adulto, apanhei da polícia. Medroso, deixei de lado o sonho de me tornar outro Lênin ou outro Trotsky e, em 74, publiquei o primeiro livro. Ainda não conhecia Márcio, que se arrastava pelo chão dos versos e frequentava o Clube dos Poetas Cearenses (chegou a presidente em 75). Ignorante e preconceituoso, eu passava ao largo deles e da casa de Juvenal Galeno, onde se reuniam para ler ou declamar (será que declamavam ainda?) versinhos sem pé nem cabeça. Detestava aqueles poetinhas imberbes que mal sabiam o abecê. Talvez porque me falassem mal deles. Quem? Terá sido Renato Saldanha? Ou Rembrandt Esmeraldo? Com eles eu conversava a respeito de literatura, entre uma aula e outra na faculdade de direito. No ano seguinte, me aventurei na criação da revista O Saco. E me tornei mais presunçoso ainda. Catunda se iniciava nas letras: publicou um livrinho de poemas, com Natalício Barroso. Nem tomei conhecimento dele (ou deles). Eu lá queria saber de versejadores!

No final de 77, parti para Brasília. Em 79, surgiu o grupo Siriará. Não assisti ao parto. Eu conhecia, de vista, quase todos os fundadores. Márcio fazia parte do movimento. Passado um ano, recebi exemplar de Incendiário de Mitos, seu primeiro livro. E só então principiou nosso conhecimento recíproco. Cartas e livros iam e vinham. Em 83, em Fortaleza, o poeta esteve à frente da “Chuva de Poesia” (lançamento, desde um helicóptero, de 160.000 folhetos (poemas), sobre a Praça do Ferreira). Em 84 se mudou para Brasília. Preparava-se para ingressar no Instituto Rio Branco, o que ocorreu no ano seguinte. De vez em quando, nos encontrávamos, por acaso. Eu trabalhava muito, lia muito, escrevia um pouco. Ganhava prêmios literários, publicava por editoras do Sul e do Sudeste. Ele queria ser diplomata, além de poeta. Eu me preparava para me separar, ele pensava em casamento. Tomávamos chope, falávamos do Ceará, de livros e escritores. A seguir, desapareceu, subitamente. Por onde andaria o poeta? Teria regressado ao Ceará? Não, está em Lima. Virou inca? Não, é diplomata. Depois eu soube dele em Genebra, em Lima de novo, em Sófia, São Domingos, Lisboa, Acra (Gana), Madri. Um homem do mundo.

Tenho visto pouco Márcio Catunda, porque vive a circunavegar a Terra, malas repletas de livros de poemas, ficção e outras prosas. Como ando mais ao redor de mim mesmo, só o vejo em sonho, nos livros e na memória. Num desses sonhos, achávamo-nos em Moscou. Eu andava pela rua, à noite, à cata de uma russa que me quisesse. Bebia vodca, tropeçava no gelo, caía. Ao tentar me harmonizar com o espaço, levava um pontapé. Estonteado, via-me diante de uma figura grotesca a rosnar, irada: Trotskista do inferno, vais morrer congelado, brasileiro desgraçado, inimigo de Stalin. E enfiava minha cara no gelo. Sufocado, quase morto, eu gritava por socorro, em português. Passava pela rua um sujeito baixinho, de óculos, abraçado a uns livros. Ao ouvir meus brados, corria ao meu encontro e, com um soco, abatia o russo. E me abraçava. O que houve, Nilto? Vamos sair daqui, antes da chegada dos agentes da KGB. Está ferido? Machucado. Quer tomar vodca? Entrávamos numa taverna. Álvares de Azevedo falava para uns jovens. Estamos em Moscou? Não, aqui é São Paulo. Você conhece bem esse pessoal? Sim, conheço todos eles. Quem são? Veja ali Floriano Martins, ao lado de Martín Fierro. Existe mesmo esse gaúcho? Está vendo Francisco Carvalho? Com quem ele conversa? Você não conhece o Fernando? De que Fernando você está falando? Ora, meu amigo Nilto, só pode ser Fernando Pessoa. Estou vendo também Moreira Campos, naquele cantinho. Com quem ele tanto fala? Você não se lembra de Anton? Quem é Anton? Ora, Nilto, você parece bobo. Estou falando de Tchekhov.

Embasbacava-me a cada instante. Márcio sorria e não parava de nomear as pessoas. Está vendo aquele sujeito solitário, a rabiscar papéis? Sim, quem é ele? Franz. Não sei quem é. Nunca ouviu falar de Kafka? Quase caí de susto. Não pode ser verdade, Catunda. Pois me leve até ele. Acorda, homem. Isto é impossível. Você é muito pequeno para se aproximar dele. Eu me aborrecia e fazia menção de me retirar. Como eles vieram parar aqui? Não sei explicar, Nilto, porque conheço tanta gente e tantos mundos que se torna impossível distinguir a realidade do sonho. Estamos sonhando ou vivendo? Faz alguma diferença?

Kafka olhou para mim, como se percebesse minha pequenez. Márcio me arrastou para a porta de saída. Um vento quente me empurrou contra a parede. Acordei muito suado, a tremer, febril.

Fortaleza, junho de 2011.
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