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terça-feira, 5 de julho de 2011

O homem eterno (Henrique Marques-Samyn*)

(leitura de um poema de Francisco Carvalho)



(Pablo Picasso, Portrait d'homme barbu, 1895)

Retrato para ser visto de longe

Sou um ser, o outro é metade
que não sabe de onde veio.
Sou treva, sou claridade.
Solidão partida ao meio
e entre os dois a eternidade.

Sei quem sou, não me conheço.
Parado, estou sempre indo
para um país sem regresso.
Sou fonte e estou me esvaindo,
fluir sem fim nem começo.

Coração partido ao meio,
pulsando em cada metade.
O lirismo do espantalho
a espuma do devaneio.
Entre os dois a eternidade.

(de Pastoral dos Dias Maduros, 1977)

Importa perceber a cisão anunciada já no primeiro verso: o sujeito poético reconhece, em si mesmo, uma fratura que dele arranca um Outro; ruptura cuja origem, por ele mesmo deconhecida, permanecerá velada também a nós. A percepção desse Outro implica que o olhar digirido pelo sujeito lírico a si mesmo resulte na constatação de uma estrutura binária: o Eu se reconhece, ao mesmo tempo, treva e claridade − ou seja: é para si parte inteligível, parte obscuro. Conhecer-se é, portanto, tarefa possível apenas até um limite determinado: todo Eu porta em si um enigma − uma camada profunda, que permanece sempre inacessível à consciência. Os dois últimos versos da primeira estrofe encerram uma importante autodefinição. Ao conceber-se como uma "solidão partida ao meio", o sujeito poético reconhece seu duplo isolamento: há sempre um abismo entre a individualidade e o espaço social, já que este nunca pode ser plenamente habitado por aquela (é impossível ultrapassar a barreira da linguagem); não obstante, no próprio Eu há uma parte que é percebida como um Outro, o que condena aquele a um perene isolamento de si mesmo. E o que é eternidade, referida no último verso, senão a própria estrutura ontológica do indivíduo, seu fundamento existencial?

A segunda estância constitui um corolário do que foi exposto na primeira. Cindido por natureza, o Eu tem apenas em parte o domínio de si: seu destino é desconhecido, na medida em que o Outro com o qual convive − e cuja influência em seu cotidiano é sempre determinante − habita o mistério. Se o futuro é construído a cada instante, como pode o Eu saber o que o espera? Por isso, está − estamos − "sempre indo / para um país sem regresso": o imaginado, mas nunca de todo sabido amanhã. "Fluir sem fim nem começo" é, por conseguinte, uma metáfora para a vida cotidiana, que sempre transcorre entre ignoradas determinações: sequer o presente foi construído em plena consciência; do mesmo modo, o futuro irrompe como um precipício.

Com o "coração partido ao meio", o Eu está, portanto, destinado a viver em constante conflito com o Outro que é seu vizinho. Buscar converter em poesia o confronto do Eu consigo mesmo (que é precisamente a árdua tarefa à qual se lançou Francisco Carvalho nesse poema) é recair na bifacetada experiência referida na estrofe final: de um lado, vivenciar "o lirismo do espantalho" − ou seja: a experiência estética de um Eu que, em larga medida, não passa de uma marionete do Outro que encerra; de outro, "a espuma do devaneio" − que pode referir-se a um reconhecimento da derrocada da razão no processo de autoconhecimento. Reificado e indecifrável, ao sujeito poético, Eu/Outro, só resta existir − reconhecer-se como parte do Ser que o ultrapassa, o que implica abrir-se para a eternidade. É essa a única resposta possível para a dúvida metafísica da qual, em última instância, trata o poema: o que é o homem? Contemplando-nos de longe, traça o poeta um preciso retrato.

___________*Henrique Marques-Samyn nasceu e cresceu nos subúrbios cariocas. É escritor, tradutor e pesquisador acadêmico. Foi articulista do Jornal do Brasil e da revista Speculum; tem textos publicados no México, na Venezuela e na Espanha. É doutor em Literatura Comparada (UERJ), mestre em Psicologia Social e em Filosofia, autor de diversos artigos acadêmicos.
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