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domingo, 24 de julho de 2011

Um Homem e Seus Poemas em Tradução Primorosa (João Carlos Taveira*)

(Ático Vilas-Boas)


Em todas as artes podem ser encontradas com certa facilidade duas vertentes categóricas: a de jovens gênios que, numa idade mais avançada, se apagam completamente para a criação, e a de artistas maduros que ignoram o passar do tempo e continuam criando obras de grande vigor estético talvez até mais transgressoras do que aquelas do tempo de juventude. Os exemplos são muitos. E em todos os segmentos. A título de ilustração, tome-se como exemplo apenas um nome da história da música: Giuseppe Verdi, o gênio da ópera italiana que viveu 88 anos e construiu uma das obras mais altas e coerentes de que se tem notícia, produzindo verdadeiras filigranas da música lírica até o fim da vida.



Essas abstrações me vêm à mente a propósito de um fato e de um nome singular no campo da literatura brasileira: Ático Vilas-Boas da Mota, professor, tradutor, filólogo, linguista, ensaísta, dicionarista, folclorista e poeta dos mais sérios, que tive a honra de conhecer em Brasília, na década de 1980, e o privilégio de poder privar de sua amizade fraterna nesses quase trinta anos de convivência. Pois bem, este homem culto e cordial, hoje na casa dos 80 anos, continua escrevendo e publicando com o mesmo ímpeto dos primeiros tempos. Aliás, em alguns casos, até com mais ousadia e coragem.

Depois de suas passagens por universidades brasileiras (é um dos fundadores da Universidade Federal de Goiás, em que desenvolveu praticamente todas as suas atividades literárias e científicas) e pela Universidade de Bucareste, na Romênia, tendo residido nas capitais de alguns dos principais estados brasileiros, este baiano de Macaúbas resolveu voltar às origens e fixar-se de vez no oeste da Bahia, mais precisamente na Chapada Diamantina Meridional, na bacia do Rio São Francisco. E ali, no conchego do solar da família, ao lado de dona Alzira, de fiéis assistentes e de muitos amigos, Ático Vilas-Boas vive entre livros, discos, quadros, objetos de arte, arquivos e documentos raros da cultura brasileira, dando vazão às inquietações pessoais na criação de obras cada vez mais sérias e indispensáveis à compreensão da nossa brasilidade.

O professor Ático, como é conhecido d’aquém e d’além mar, dirige com mão firme a Fundação Cultural Professor Mota, criada há mais de 30 anos para resgatar e perpetuar as ideias e iniciativas de seu pai em Macaúbas, cidade que tem sido um baluarte da baianidade e centro de apoio para diversos pesquisadores nacionais e estrangeiros. A fundação abriga biblioteca, galeria de arte, salas de pesquisas, arquivos de referência e museu.

Em 2011, o governo da Romênia, em reconhecimento aos relevantes serviços prestados àquele país de língua latina pelo autor do livro Brasil-Romênia — pontes culturais, concedeu ao intelectual Ático Vilas-Boas uma alta condecoração: Ordem Nacional Romena “Serviço dedicado” em grau de Comendador, que lhe foi entregue na Embaixada da Romênia em Brasília, em cerimônia presidida pelo embaixador Mihai Zamfir, com a presença do editor Victor Alegria, de quatro embaixadores, diversos representantes diplomáticos, jornalistas, professores universitários, artistas e escritores.

Pois bem. Hoje, o que motiva estas linhas acerca do autor de Alpondras: travessia de Bucareste e Ciganos é outro livro de poesia: Romênia, poemário telúrico, edição bilíngue português/romeno, de 2010, na tradução primorosa de Micaela Ghitescu, talvez a maior especialista na língua e na cultura brasileiras e portuguesas, que assina também o prefácio “Pontes entre dois mundos”. Os poemas da coleção, todos de temática romena, descrevem lugares, paisagens e locais muito caros a Ático Vilas-Boas, que, além de ser “o mais romeno dos brasileiros”, conhece bem não só a geografia do país amigo, como também os modos de ser, de ver e de sentir de sua gente. É um expert nas culturas que contribuíram para a formação daquele povo. E que, mesmo antes da chegada dos romanos, são tantas e das mais variadas etnias.

Romênia, poemário telúrico enfeixa criações as mais diversas dentro de um universo irrestrito: o olhar de sabedoria de um homem cuja espiritualidade transcende fronteiras físicas e culturais entre os povos. E esse olhar magnânimo percorre, no dizer de Antonio Olinto, ruas estreitas e largas avenidas com o mesmo desvelo e a mesma ternura com que vagueia pelas veredas da terra natal. É, em suma, um documento valiosíssimo de um livre-pensador que tem o coração tão grande quanto o gênio. Ático Vilas-Boas, neste livro precioso, mostra que é o poeta das causas possíveis. Mostra que, independentemente da língua, dos costumes e da formação social e política, o homem é sempre o mesmo em todos os quadrantes do planeta. A única diferença perceptível fica por conta do grau de evolução espiritual a que teve acesso e que varia de acordo com as possibilidades do meio em que está inserido. E esta lição de humanismo se circunscreve — ad infinitum — em cada poema do presente volume. Senão, vejamos na versão original:

Hospício

Visitando o Hospital n.º 9, de Bucareste

Os sonhos dos loucos
são pássaros assustados.
Ninguém achará os seus rastros
nem o bater de suas asas.

Os sonhos dos loucos
não são de ouro,
nem sequer de prata:
ferrugem que assusta,
fuligem que sufoca e mata.

Os sonhos dos loucos
são a sombra da saliva
e o cheiro dos remédios
que não curam, mas insistem.

Os sonhos dos loucos
são os passos na calçada,
cartas sem endereços,
jornada sem retorno,
gesto pela metade.

Por isso mesmo, agora,
no giz desta parede torta,
todas as palavras foram ceifadas
pela guilhotina da indiferença.

Nos mostradores dos relógios
dormem sorrisos postergados,
visitas que nunca chegam,
respostas de fantasmas.

Sonho é sonho,
neste delírio de navalhas.

Os loucos moram neste mundo
carregado de feridas abertas, em todos os lados,
sem depois, sem amanhã,
sem aviso prévio, sem recado,
sem o anúncio da felicidade
nem de sua chegada.

Só o abraço de urtigas,
pesadelo que nunca se desfaz…

Após a leitura desse poema, a vontade que se tem é de transcrever outros e mais outros. Mas a tentação é contida. Afinal, os espaços de publicação estão cada vez mais exíguos e não permitem veleidades nem excessos por parte de ninguém. Dito isso, voltemos ao livro e seu conteúdo concentrado.

A presente edição saiu em Bucareste, em 2010, pela Editura Fundatiei Culturale Memoria e traz na quarta-capa uma curiosidade: a Baía de Guanabara, sobreposta a um ramo amarelo em que um beija-flor passeia sua majestosa mestria de voo, é contemplada pelo olhar sempiterno do Cristo Redentor do alto do Corcovado. Mas por que o Cristo Redentor na capa de um livro traduzido para o romeno? É que a cabeça do Cristo foi esculpida por um romeno chamado Gheorghe Leonida (1892-1942), que trabalhou no atelier do escultor francês de origem polonesa Paul Landowski (1875-1961), responsável pela execução do trabalho que foi doado ao Brasil pelo governo da França. Essa informação preciosa de Ático Vilas-Boas encontra-se, entre outras, no já citado livro Brasil-Romênia — pontes culturais, publicado pela Thesaurus Editora também no ano passado e cuja segunda edição, revista e ampliada, deverá sair em breve.

Completam a bela edição ilustrada um índice, notícias biobibliográficas do autor e da tradutora e um elucidário, com informações precisas sobre certos nomes próprios, vocábulos e expressões romenos.
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*João Carlos Taveira é poeta e crítico literário, com vários livros publicados.
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