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quinta-feira, 15 de setembro de 2011

A necessidade de vilões (W. J. Solha)


Há séculos assisti a um filme de Disney, em que o Espelho Mágico (de “Branca de Neve e os Sete Anões”) engrandecia o papel dos bandidos nas grandes narrativas:

– O que seria da estória da princesinha, por exemplo, sem a terrível presença da Bruxa, que também é a Rainha Má? O que seria da lenda de Chapeuzinho Vermelho sem o Lobo Mau? E da de Cinderela sem a Madrasta e o gato Lúcifer?

Lembrei-me disso quando estava na diretoria do Sindicato dos Bancários da Paraíba, no final dos anos 80, e fiz um texto pro nosso boletim, no qual falava do gerente do CESEC, o que mais nos dava trabalho:

– Estamos com tudo! – brinquei, aproveitando-me do sobrenome dele, francês - O Jean Valjean, de Os Miseráveis, tem seu grande vilão no inspetor Javert; Napoleão teve como vilão Talleyrand; e nós – caramba – temos o Dubois!

No Trigal com Corvos enfatizo – no mesmo tom – o fato de que tanto César quanto Popeye nada seriam sem seus respectivos Brutus. Por que? Porque sem eles não haveria conflito, e dificilmente o desenho animado e a tragédia nos envolveriam.

A figura mais fascinante de Guerra nas Estrelas é, sem dúvida, o sinistro Darth Vader. Hannibal Lecter (Anthony Hopkins) “engole” O Silêncio dos Inocentes. O Coringa (Heath Ledger) rouba completamente a cena de Batman: O Cavaleiro das Trevas. Norman Bates (Anthony Perkins) apaga todos os outros personagens de Psicose. O computador Hal é a figura inesquecível de 2001 – Uma Odisseia no Espaço. Alex ( Glenn Close) é assombrosa, em Atração Fatal. Jack Torrance (Jack Nicholson) marcou época em O Iluminado. O frio nazista Amon Goeth (Ralph Fienes) é terrível, em A Lista de Schindler.E o que dizer de Roy Batty (Rutger Hauer), o louro replicante de Blade Runner? Que seria do Shane – vivido pelo louro Alan Ladd – sem o contraste com Jack Wilson – Jack Palance, o pistoleiro de negro, em Os Brutos Também Amam? Que graça teria de Mozart sem Salieri, no Amadeus?

Shakespeare também era mestre na criação desses personagens: Macbeth ( e, mais do que ele, a sua Lady ), Ricardo III, Coriolano e Iago são soberbos. E o que seria do final dO Auto da Compadecida sem o Encourado (o demônio)? Que seria de Fogo Morto sem a tríade Coronel Lula de Holanda, Tenente Maurício e Antonio Silvino? E de Moby Dick sem Ahab e, principalmente, Moby Dick? Nada como Dagoberto Marçau, em A Bagaceira, pra fazer valer a revolta do filho Lúcio. E há o Drácula, Franskenstein, Mr. Hyde (o lado mau do Dr. Jekyll), Nosferatu, etc, etc, etc. Em alguns casos, o mal vem do próprio bem, como em Édipo Rei, no qual ele investiga o assassinato do pai, sem se saber o próprio assassino.

Qualquer estudo sobre Arte mostra a importância da treva, num quadro, para que se realce a luz, fato tão marcante que se tornou metáfora religiosa: o Evangelho de João classifica o Verbo, de cara, como lux in tenebris. E veja, na Última Ceia de Da Vinci, a importância que tem o Judas, a ponto de existir uma lenda de que o modelo para ele e para o Cristo teria sido um mesmo homem, flagrado numa missa, depois numa taberna.

Mas e quando se trata de História com agá maiúsculo?

Um dos livros mais lúcidos que li sobre as razões da miséria latino-americana e da África, foi Bandeirantes e Pioneiros, de Vianna Moog, no qual ele demonstra que até agora, nós – do hemisfério sul – perdemos feio para Estados Unidos, Canadá e Europa, em termos de evolução, simplesmente porque no lado de baixo do Equador sempre tivemos tudo fácil demais: muito peixe, coco, banana, caça à vontade, além de um clima tropical que nos permitiu a nudez – até chegar o cristianismo – sem problemas: a terra, na verdade, sempre nos foi mãe, não madrasta. “Berço esplêndido” diz tudo. Já o Primeiro Mundo teve, de cara, o frio que o forçou a se pôr muito bem agasalhado e abrigado, pois – ao contrário das aves que migram com facilidade, e dos animais, dotados de peles, couros, presas e garras – somos demasiado lentos e frágeis. Esse vilão – o frio –, mais seus efeitos colaterais, fome, dor e morte, guerra pra todo lado, geraram a necessidade da resistência e do raciocínio, nele, daí a chamada Ci-vi-li-za-ção.

Vivi mais da metade da História do século XX e a vi sempre cheia de magníficos personagens positivos – tipo Einstein e Chaplin, Rachmaninoff e Joyce, Sartre e Bertrand Russell, Gandhi e Borges, Picasso e Walter Gropius – mas a marca mais funda deixada na centúria foi, incontestavelmente, a de seus imensos vilões, como Pinochet, Franco, Idi Amin, Papa Doc, Mussolini, Stálin... e Hitler, claro. Parece-me que eles sempre tiveram a mesma função da Lua ao provocar as marés, e das placas tectônicas ao nos fornecer terremotos e tsunamis, sem falar dos furacões, vulcões, tempestades: agitar, para que haja vida. Quem não sabe que o grosso da ciência e tecnologia adquiridos no final do último milênio surgiu do desespero causado pelas duas guerras mundiais? Lembro-me de um velho documentário sobre a Primeira Grande Guerra, em que se via como ela começava de modo clássico, comandada por generais a cavalo, que assistiam a batalhas do alto das colinas – tal e qual os quadros em que dominava Napoleão, no século anterior – passando, logo depois, a se encher de pequenos tanques, caminhões, e de bombardeios de aviões. Claro que esses avanços foram utilizados, depois, nos utensílios da paz. Deus dá o frio – diz o povo – conforme o cobertor. Ou “não há mal que não traga um bem”, o que a física confirma ao afirmar que Toda ação provoca reação igual e contrária.

De nosso ponto de vista, vilão é vilão. Sub specie aeternitatis, instrumentos da Vida. Eis tudo.

Sem os obstáculos ao bem-estar, ... não somos nada.
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