Translate

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Gênesis e exit de José Bezerra Cavalcante (W. J. Solha)


(José Bezerra Cavalcante)

Primeiro:
Assisti, no Festival de Cinema de Brasília de 2002, a um filme de intensa beleza – “Desmundo”, de Alain Fresnot, fotografia de Pedro Farkas – no qual conheci o Brasil recém-descoberto, dotado de um idioma que exigiu legendas pra tornar o diálogo inteligível. Bem. Os bons poemas de José Bezerra Cavalcante, superpopulados de expressões datadas por Joaquim Osório Duque Estrada e José Pedro Xavier Pinheiro – como fúlvido, incunábulo, paramento, fulgor, cimalha, cincerro, ganga, cítara – remetem-me a uma época bem mais recente que a do Descobrimento, mas ainda não nossa: a da criação do Hino Nacional e da primeira tradução brasileira de “A Divina Comédia”.

Segundo:
Parece-me que há sempre uma parte maior que o todo em toda obra de arte. Por isso todo mundo conhece a abertura – ou “protofonia” – não a ópera “O Guarani” do Carlos Gomes, o “Aleluia”, mas não o “Oratório Messias” de Haendel, a “Ária na Corda Sol”, mas não a “Suíte no. 3” de Bach; e por isso poucos se lembram do que há no teto da Sistina, além da Criação do Homem; e por isso poucos sabem o que Euclides da Cunha fez, além de “Os Sertões”; e por isso o Youtube está cheio de cenas que ganharam vida própria fora dos filmes de que fazem parte, como a corrida de quadrigas do “Ben-Hur”, o duelo de banjo e violão de “Amargo Pesadelo”, o monólogo de Corisco em “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, o ensopado de botinas de Carlitos, em “Corrida do Ouro”, etc, etc.

Bem: do mesmo modo ressaltam-me, no “Rescaldo” de José Bezerra Cavalcante, suas duas partes finais, na verdade uma só – “Origem” e “Fim” – justamente porque aí há o encontro do épico mais a linguagem do autor.

Sequência
Claro que JB Cavalcante domina o ofício e também conhece o dístico de Delfos – “Conhece-te a ti mesmo”. Começa o poema “Sala de Espelhos” com este verso:
Vejo em volta. Não me encontro.

Em “Crepúsculo”:
Os horizontes me limitam
e tumulam.

E o que é ele? Seus sonhos, como declara em “Voos caem”:
Os sou retroagindo
às funduras do tempo.

Lembro-me de que, há anos, um colega do Banco do Brasil, ao cruzar por mim na calçada da Bica, disse ao filho pequeno, mostrando-me:
– Eis um animal em extinção.

Acho que também é como JB se sente. Por que? Um trecho de sua biografia responde:
– Representou a UNE no Comitê Preparatório do VIII Festival Mundial da Juventude e dos estudantes em Helsinque, e assessorou a UIE (União Internacional dos Estudantes) em Praga.

Há um ideal tipo Doze Pares de França, Cavaleiros do Rei Arthur e de Templários resistindo, nele, suponho.

Antepassados mouros e cruzados
somam os meus caminhos e pedaços.

Lembra-me o encanto que envolveu o momento em que, na entrada da adolescência, deparei-me, pela primeira vez, com A Lenda de Sir Parsifal, Percival ou Perlesvaus, aquele que partiria em demanda do Cálice Sagrado. Chego a ouvir os versos de “Ascendência”, de JB, com o coro da “Carmina Burana” de Carl Orff em bg:
Fulgem, celestes, suas armas brancas.
Turgem os campos lanças, estandartes.
Corcéis inquietam-se preparados
e galonados para a guerra santa.
Zás! Sacam-se os terçados das bainhas.

Vêm-me, à memória, também, “Os Cantos” de Pound, de certo modo irmãos dos de JB, nos feitios de Homero.

Oh geração dos afetados consumados
e consumadamente deslocados

Uma série anterior de poemas do “Rescaldo” – “Onirografia” – prenuncia o clima final com seus bestiários, incunábulos, armoriais. Sinta o ritmo de galope e a majestade de epopéia quando JB diz, em “Alegorias”

Corcéis me ofuscam cintilantes
e se interpõem nas minhas rotas cegas
com seus paramentos cravejados.
Cilhas e rabichos lantejoulantes
testeiras enlaçadas por fitas multicores,
peitorais encouraçados e espelhados,
selas apetrechadas com lanças
e adagas cromáticas,
estribos ataviados com vilões fulgores,
narinas espirrando forças incontidas,
baba escorrendo por vazadas bocas,
freios arriados e bridas volantes,
soltas, vibrando resplandecentes.

Aí ressoa “A Pedra do Reino, de Suassuna, e o texto imponente de Euclides da Cunha, aquele que viu guerreiros medievais em nossos vaqueiros encourados. O poeta se desespera:
Sou os caminhos percorridos, céus e fossos,
Impura pira, insacro fogo, chama inglória.

E o resto?
Compreensão:
Amanheceu,
por fim.
Mas anoiteceu,
em mim.

E
ventre primal (...) e, fora, lousa.
/////