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terça-feira, 4 de outubro de 2011

O terceiro (Ronie Von Rosa Martins)



Compraria mais balas. 38. Pensou. Os corpos no chão. 2. Dois deles. Os corpos. Família. Pai-mãe. Andaria onde o filho? Deveria estar ali. No morto chão. Chão de morte. Escaparia ao desígnio? Da morte encomendada, mandada, arranjada?

O cano quente. Fumegante. Lembrava o café preto da mãe. Idade tenra. Infância. Memória. Pão com manteiga. Mas no chão estava o presente. E o presente era o corpo. Dois. Dois corpos. Homem-mulher em morte unidos, sagrados-abraçados em medo ido. Ido agora com a morte. E a dor. Tranquilidade do sangue. Lento escorrer. Esvair. Paz. Longe estavam de toda a merda da vida. Sorriu. Até que não era tão mau. Sorriu. Era sim. Sabia. Sabia no tremor prazeroso que sentia abalar suas carnes. Carne que tremia de felicidade enquanto ejaculava chumbo. Ereção perniciosa. Imoral. Era imoral? Ruborizava em seus pensamentos.

A casa. Pequena e miserável. Mais miserável que pequena. Os estampidos dos tiros fugindo – ainda – pelas aberturas. Som rasgando o silêncio do passado. Anteriores sonidos. Mas o povo não. O povo sabia. Ouvia o discurso do revólver. O verbo armado. Verbo-projétil-morte. E escondia-se. Inviabilizava a imagem, o semblante, o perfil, o corpo. Resumiam seus corpos ao medo. Aos espaços da invisibilidade. Da sombra. Sobra o não-corpo. O vazio. O nada. A rua pelada. Nua.

Pornográfica rua em silêncio imposto. Proposto. No sapato, um filete de sangue macho, vinha lhe beijar o bico. Arredou o pé. O da mulher em poça. Profunda. Afogaria o corpo? O olho fixo no outro. O dele. Não o que matava, mas o que morrera. Um no outro. Se comovia? Não. Era mau. E sabia das coisas da morte e suas friezas e cruezas. Matador. Era matador e pronto. Gente era bicho. Carne. Produto, presunto. E ponto. Sempre era ponto final.

Nem tremia a mão que buscou o cigarro. O fogo. O olho brilhou imagens de distâncias anteriores. De antes da maldade adquirida, do gelo consumido na carne. Antes do olhar de matador. Do olho morto. Antes do advento da morte e apodrecimento da esperança, bondade e esse monte de merda que amolece, esmorece e esfarela no homem o cheiro do sangue. Sorriu. Era um filho da puta. Era sim. E gostava de ser. Gostava de ser mau. Chutou o corpo do infeliz no chão. Cuspiu no corpo da mulher. Tinha que fazer. Ritual para afastar sentimento qualquer. Sem sentimento. Só maldade. Tinha que ser. Pra viver. No meio dela. No meio da fúria. No meio das balas e das facas. No meio da traição e da miséria. Tinha que ser pior. Pior que os outros. Se alimentar deles. Da carne deles. Ser o diabo. Sim. Sorriu. Sorriu e estremeceu. O corpo todo. Ser o diabo pra toda a gente. Fazer o temor do nome e do semblante. Da memória e da constância.

Era bicho ruim. Carne que não se come. Voz que não se ouve. Sorriu. Circundou os corpos. Onde andaria o terceiro? O filho. A ordem era para os três. “Três corpos, três balas.” Seis mil e quinhentos. Era barateiro. Ainda mais para aquela gente infeliz sem eira nem beira. Cambada de morto vivo!

A mulher não era velha de idade, mas de corpo tinha toda ela. Os anos todos. Tempo como fogo que enruga e preteia a carne. A cara velha sim. O homem um traste. Magro e franzino. Fraqueza que extrapola a feiúra do nariz fino e grande e bigode preto largado e barba rala mal feita e sobrancelha grossa e queixo curto e olhos arregalados. Arregalados os olhos. Bem. Muito bem arregalados. Olhos de ver a morte na profunda estagnação do corpo. Alma indo. Céu ou inferno? Sorriu. Céu ou inferno?

Mas a ausência preocupava. Faltava um. E a ausência é uma falta e uma falta seria uma culpa? Uma falha? Onde andaria o fedelho? Sujeito oculto. Oculto na casa? A casa encobrindo calor, peso e forma do corpo. Procurado. Fora da casa. Fugindo?

Estaria na estrada, borrado em merda e lágrimas o fedelho? Choramingando a penúria da vida e a dor da perda? Não saberia ele que o mundo é perder? Que o mundo é o fracasso nosso? Que essa merda de mundo é dor? Não sabia ele? Por que não morria logo? Resumia a dor de todos. Sacrifício. Não era cristão? Que morresse como homem. Dádiva. Coragem. Desprendimento. Uma bala sem dor. Uma bala educada. Uma bala cristã e respeitadora. Silenciosa e carinhosa. E tudo acabaria. Acabaria tudo. União da família. Silêncio. Paz.

Mas não. Era teimoso. Ateu. Fugia da sina que era dele. O fujão. Que viesse de peito aberto em oferecimento, pureza e calma. Seria breve. Breve.

Mas eram só os dois no chão e o sangue. E do outro lado a rua temerosa, medrosa, de portas e janelas apertadas. Gente que treme. Gente que treme é uma merda.

Abriu a porta. O cigarro esfumaçante. Caubói. Pernas abertas, mão no revólver. Ofensa à rua. Aos que tremem.

Foi então o cão. Ele. Preto e pequeno. Rabo a balançar sua indiferença. Língua sentindo o fora do corpo. Fora do corpo dos que tremem. E ele. O mau. O matador. Chute. O animal e o ganido e a dor e a fuga e a risada e o disparo e o corpo que tomba e que rola e que morre. O cão morto. Na rua morta. Nas pessoas que tremem a morte do cão. Fagulha. Combustão.

E as casas de olhos fechados abriram. Pasmadas. Todos os olhos. Em brilho único. Portas de boca aberta. E nelas todos os corpos. Tremendo. Fúria. E ele sorriu. O matador. Os que tremiam lá estavam. Filhos da puta. Falou isso. Cuspiu o cigarro na rua. E a rua cuspiu os corpos de todos sobre ele. Martelo, faca, pedra, pau, chute, cuspe, dente, soco, lágrima, sangue, pedaço, pedaços, pedaços. Pedaços de pedaços, pedaços de pedaços em pedaços. Fragmentos do mau. E então vieram os cães de todas as ruas. Famintos.

No meio dos cães corria ele. O terceiro.
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