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sábado, 14 de janeiro de 2012

O grande tema do Eclesiastes, Eliot, Jorge de Lima e Kubrick na poesia de Ruy Espinheira Filho (W. J. Solha)



INTRODUÇÃO

uma formiga escala o himalaia de um vaso
a espinheira espalha a perplexidade de suas folhas bífidas
Ivo Barroso – “Vida”

O primeiro poema – Longe de Sírius – da coletânea de Ruy Espinheira Filho, lançada recentemente pela Global Editora (seleção e prefácio de Sérgio Martagão Gesteira), termina sua bela natureza-morta com estes versos, indicadores da importância da morte para o poeta:

Na gaveta, dormindo
sob cartas e poemas,
o revólver aguarda.

Não se trata, fica evidente pelo conjunto da obra do Poeta, de suicídio latente, mas de fatalidade, como no Rayuela (O Jogo da Amarelinha) de Cortázar:

lo que ocurre es que el reloj de la bomba marca las doce del día de mañana. Tic-tac, tic-tac, todova tan bien. Tic-tac.

Noutro poema, Fuga, escrito na década seguinte, Espinheira retoma – presumo – um verso das Geórgicas de Virgílio – fugit irreparabile tempus – e o desenvolve, como intenso poeta que é:

Escuto o tempo fluindo,
fugindo. Sobe um soluço
da carne de tudo: móveis,
tecidos, metais. Que forte
é a morte!

Mas ele não a teme. Pelo contrário: como San Juan de la Cruz, em seu muero porque no muero, ela lhe dá, como bom cristão que Espinheira (pelo menos poeticamente) é, a promessa de completitude que ele tanto busca. Versos de vinte anos depois:

Falta alguma coisa.
Falta desde sempre.

(...)

até que eu transponha
o último limiar,
quando então, por fim,
nada faltará.

Claro que por trás disso está a epístola do apóstolo Paulo assegurando que Agora vemos por espelho e em enigma, mas então, face a face. Jorge de Lima, no entanto, dissera, em seu Poema do Cristão:

Porque o Sangue do Cristo
jorrou sobre meus olhos,
a minha visão é universal
e tem dimensões que ninguém sabe.
Os milênios passados e os futuros
não me aturdem, porque nasço e nascerei,
porque sou uno com todas as criaturas,
com todos os seres, com todas as coisas
que eu decomponho e absorvo com os sentidos
e compreendo com a inteligência
transfigurada em Cristo.

“A inteligência transfigurada em Cristo”. Espinheira vai mais longe, nos versos de Passionária:

e um cão lambeu-me
o lado em que todos trazemos a ferida
da lança romana.

Isso me lembra que, segundo o Êxodo 4-22, Jeová diz: “O povo de Israel é meu filho. Meu primogênito”. A Graça, portanto, era coletiva. Mas na cena do batismo, no Novo Testamento, a voz que clama no céu transfere, restringe essa filiação a Cristo. Os poetas, no entanto, novamente democratizam tal “eleição”, inclusive no que – temporariamente (até a morte) isso possa ter de negativo. A complexidade dessa relação é visível quando, equivalentemente ao “Pai, por que me abandonaste?”, Espinheira diz, em Poema para Mario:

Só o Tempo
(nossa mais íntima
matéria)
está
conosco.
Agora
e na Hora.

Novamente a morte como divisor de águas. Que o marxismo nega, concebendo uma arte totalizante com Marx. Mas se Jorge de Lima conseguiu-a, sendo cristão, por que não T. S. Eliot, o grande poeta católico do século XX? Claro, pois ele se apropria da famosa frase da católica Mary da Escócia, quando condenada à morte – In my endis my beggining– e a transforma no dicho duplo – In my beggining is my end, desenvolvendo em seguida, no Burnt Norton, um dos seus Four Quartets:

Or say that the end precedes the beginning,
And the end and the beginning were always there
Before the beginning and after the end.
And all is always now

(Ou digamos que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio estiveram sempre ali
Antes do princípio e depois do fim.
E tudo é sempre agora.)

O curioso é que isso tudo foi criado apenas pra impressionar, words, words, words, pois é puro chover no molhado. Já está lá, no Eclesiastes 1-9:

Quod fuit, ipsum est, quod futurum est. (O que foi, isso é o que há de ser). Quod factum est, ipsum est, quod faciendum est. (e o que se fez, isso se fará ). Nihil sub sole novum. (Nada há de novo debaixo do sol).

Talvez que é a isso que Espinheira se refere, em Púrpura e Diamância, quando diz, com muita ironia, anulando – evidentemente – o mérito do garoto de As Novas Roupas do Rei, de Andersen, repreendendo-o porque constata e proclama que o rei – em lugar de manto extraordinário - tá é desfilando pelado:

Sim: o teu real
contraria o do rei.
Opõe-se ao de todos
que estão na praça.
Ah, nada aprendeste
do que te ensinaram!

O GRANDE TEMA

Vai daí que o Poeta resolve encarar a insuficiência ontológica que o inferniza. E de todos os modos possíveis, como Hokusai com suas Trinta e Seis Vistas do Monte Fuji, como Cézanne com outras oitenta e sete do Monte Sainte-Victoire, como o Monet com suas cerca de cinquenta telas da catedral de Rouen – pintadas sempre do mesmo ângulo, ao contrário dos outros dois – mas nas diversas luzes do dia.

Primeira versão. No poema Inúmero:

Tudo é memória, como a onda
que vamos visitar e já nos habita
antes dos nossos pés na areia da praia,
porque é outra onda,
outras
que já marulham,
espumam
em nosso sangue,
como o inverno para o qual desliza
esta tarde
é denso de outro, outros.
Assim o teu sorriso que virá
Já há muito me ilumina.

Segunda versão. No poema Viagem:

Caminho na rua antiga,
mas agora. E sou um menino
contendo um homem que contém
um menino.

Terceira versão. No poema Os bens maiores:

A gaiola vazia
é onde habita
o que há de mais belo
em gorjeio e pássaro.

Quarta versão. No poema Fuga:

E escuto
passos me acompanhando: são meus
próprios passos – de ontem e antes
e hoje. Talvez de amanhã.

Salmo 138: Senhor, (...) vós me vedes, observais todos os meus passos. A palavra ainda me não chegou à língua e já a conheceis toda.

Quarta versão. No poema Aqui, antes da noite, num de seus mais belos trechos:

Antigamente era janeiro.
Agora também é janeiro, mas só uma palavra,
porque não pode ser janeiro sem os longos
verdes ondulantes que iluminam a memória
e ela, branca,
da janela da casa
branca,
na branca manhã de domingo
(que era sempre domingo em janeiro
e certa vez – aquela, essa vez – foi janeiro
por muitos anos).

Quinta versão. No poema Fuga. A completitude que se queria:

Deito-me na relva e sonho
com isto mesmo: estar deitado na relva.
A vida está completa, estou completo,
pois os anos que vieram ainda não
vieram.

Sexta versão. No poema As sombras luminosas:

Os canários mortos
voando na sala,
através do tempo,
das coisas, de mim.

Sétima versão. No poema Aniversário. O detalhe em negrito é soberbo:

Perdi árvores, pássaros, perdi um rio
e eu mesmo nele me banhando.

Oitava versão. No poema Um poeta, uma vez. Espinheira (final dos anos 80) faz clara referência ao belo conto de Cortázar Todos los fuegos  el fuego, de 66.

(...) e abre
a carta-todas-as-cartas.

É isso, parece-me, que faz de seu Cristo o homem-todos-os-homens. Inclusive, claro, o Poeta.

Nona versão. No poema Um baile da infância. Espinheira tira a grandiloquência do Eclesiastes (1:7), no qual Todos os rios vão para o mar, e contudo o mar não se enche; ao lugar para onde os rios vão, para ali tornam eles a correr. Tira-lhe também, entretanto, a ênfase ao enfado, trocando-a pelo do enigma paulino:

Tremes e não queres
pensar
e pensas (não queres pensar e pensas
para não pensar) no pó
varrido todas as manhãs
e todas as manhãs reencontrado
principalmente sob os móveis.
E te perguntas
de onde ele vem, esse
inesgotável.
Todas as manhãs
as mulheres varrem
varrem
e todas as manhãs
recomeçam
e não há fim:
o pó se amontoa
sempre. Esse
inexorável.

Décima versão. No poema O Pai. O trecho é inesquecível:

caminho
aos vinte e três dias da tua ausência
na mão esquerda o frio da alça do caixão
que não soltei
nem quando cimentaram a pedra sobre ti.

Décima primeira versão. No poema Tardes. Aqui o poeta se torna ainda mais denso. Vamos reencontrar nestas suas linhas um eco de Borges quando o argentino diz, em 1952 (“Nueva Refutación del Tiempo”): Chuang Tzu (Herbert Allen Giles: Chuang Tzu, 1889) soñó que era una mariposa y no sabía al despertar si era um hombre que había soñado ser una mariposa o una mariposa que ahora soñaba ser um hombre. Faz eco, também, ao filme 2001, uma odisseia no espaço, de Clark/Kubrik (1968), em que, na sequência final, o jovem David Bowman, depois de viajar pelo espaço na velocidade da luz, vê-se de repente já com meia idade, embora ainda na mesma roupa espacial, num quarto contemporâneo a Luís XVI, em que um homem muito velho – que é ele mesmo – faz uma refeição até parar ouvindo algo, que não detecta, depois do que aparece agonizando numa cama, ante a qual ressurge o enigmático monólito negro visto, no início do filme, pelos homens pré-históricos. Todos-os-homens-o-homem. Em seguida ele se torna um feto que flutua no espaço, aproximando-se da Terra, onde tudo começará outra vez.

Veja em Espinheira:

Nesta tarde há outra tarde
sem este quarto tão cheio
de livros;
sem este homem
quase velho, que escreve
estas palavras;
há outra
tarde, de um tempo sereno,
casuarinas, cães ladrando
na distância;
e um menino
andando – o passo tão leve –
na rua em que mora um anjo,
enquanto sonha uma tarde
onde um homem quase velho,
num quarto cheio de livros,
vai escrevendo esta história.

Décima segunda versão. No poema A menina e o anjo. Note-se que, aqui, o Poeta retoma um trecho da quarta versão, acima, onde se lê

e ela, branca,
da janela da casa
branca,
na branca manhã de domingo

Veja:

O que fazia o teu Anjo da Guarda,
que te deixou assim branca branca,
neste vestido branco,
neste caixão tão branco que me dói nos olhos
há tantos anos?

CONCLUSÃO

Drummond estava mais do que certo quando disse, ante o primeiro livro de Ruy Espinheira Filho – Heléboro, de 1974:

– Poesia concentrada e de sutil expressão.

Claro:

Perdi árvores, pássaros, perdi um rio
e eu mesmo nele me banhando.

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