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segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

O pobre, porque é pobre, pague tudo (Adelto Gonçalves*)


I

Se o desavisado leitor não sabe, fique sabendo: o título desta resenha foi tirado da Carta 8ª (verso 155) das Cartas Chilenas, de Tomás Antônio Gonzaga (1744-1810), e define, com precisão, o que foi a Justiça no Brasil colonial. Aliás, se em Portugal o teatro de Gil Vicente (1465?-1536?) revela mais sobre as magistraturas locais do que a literatura jurídica sua contemporânea, no Brasil a leitura das Cartas Chilenas, dos Sermões, do padre Antônio Vieira (1608-1697), de Memórias de um sargento de milícias, de Manuel Antônio de Almeida (1831-1861), ou de relatos de viajantes pode revelar com maior nitidez a corrupção e a face conservadora dos magistrados e seus subordinados do que os papéis dos arquivos.

A frase de Critilo, alter ego de Gonzaga, ouvidor em Vila Rica de 1782 a 1788, está por trás até mesmo da motivação da conjuração mineira de 1789, embora isto ninguém goste de dizer, até porque tiraria a aura romântica do movimento – e nação nenhuma vive sem o culto a heróis. Em outras palavras: quem se dispuser a ler os versos de 146 a 167 da Carta 8ª vai perceber muito bem como funcionava a Justiça (a maiúscula está aqui só por costume) naquele tempo: os grandes contratadores, aqueles que arrematavam os contratos e arrecadavam os impostos em nome da Coroa, costumavam embolsar boa parte da arrecadação, sem repassá-la ao erário régio, aplicando os recursos em escravos, minas e propriedades particulares.

Obviamente, faziam isso com a conivência do governador e capitão-general (e, às vezes, do ouvidor e outras altas autoridades), repartindo com eles “os cabedais que seriam do reino”. Assim, esses grossos devedores podiam rolar as dívidas, que iam pagando “sem soldados à porta, com sossego”, como observava Critilo. Já o pobre, se furtasse uma galinha, podia mofar anos a fio na enxovia. Era assim há dois séculos e meio. E hoje? Mudou muito? O atilado leitor já deve ter a resposta na ponta da língua.

Mas, a bem da verdade, é preciso reconhecer que na documentação da época pode-se também localizar um ou outro remediado que tenha ido parar na cadeia, talvez porque seu cabedal não fosse suficiente para contratar um rábula mais preparado ou para “convencer” as autoridades de sua inocência. Coitado de quem viesse a ser acusado de algum crime, fosse inocente ou não: seria comido pelo meirinho, pelo carcereiro, pelo escrivão, pelo solicitador, pelo advogado, pelo inquiridor, pela testemunha, pelo julgador. “Ainda não está sentenciado, já está comido. São piores os homens que os corvos”, dizia Vieira.

E o que a conjuração de 1789 tem com isso? Ora, como se sabe, uma revolução ou um golpe de Estado só se faz com ricos que tenham tido seus interesses contrariados. Até porque o pobre só serve para bucha de canhão. E para colorir com o seu sangue alguma epopeia. No caso, os grossos devedores mineiros – leia-se João Rodrigues de Macedo e Joaquim Silvério dos Reis Montenegro – é que iriam financiar a revolta, já que não haviam chegado a um “acordo” com o novo governador, o visconde de Barbacena, para rolar mais suas dívidas. Afinal, só eles e mais um ou outro grande proprietário poderiam fornecer os escravos e a pólvora necessários para fazer explodir a revolta.

Não que Barbacena fosse diferente dos governadores anteriores, mas é que, ao contrário de seus antecessores, já viera de Lisboa com ordens expressas para não negociar com os grossos devedores em hipótese alguma. Portanto, só com uma revolução é que aqueles grossos devedores poderiam ter suas dívidas perdoadas. Aliás, os revoltosos de 1789 só não derrubaram o poder régio em Minas porque entraram em divergências antes. Afinal, Barbacena, isolado no Palácio de Cachoeira do Campo, só poderia contar com o fraco socorro de seus ajudantes-de-ordens, “sem um barril de pólvora”. Como o que queria mesmo era se livrar das dívidas, Silvério, então, foi ao vice-rei no Rio de Janeiro e pulou para o outro lado, delatando seus companheiros de conjura.

II

A que vêm estas reminiscências históricas? É para dizer que o leitor interessado em saber como a Justiça (não) funcionava no Brasil colonial não pode deixar de ler Direitos e Justiças no Brasil: ensaios de História Social, de Silvia Hunold Lara e Joseli Maria Nunes Mendonça, organizadoras (Campinas: Editora da Unicamp, 2006), que reúne artigos que constituem exemplos significativos do novo modo de tratar a história social do Direito e da Justiça, que, a rigor, teve início por aqui nos anos 80.

Em “Senhores da régia jurisdição: o particular e o público na vila de São Salvador dos Campos dos Goitacases na segunda metade do século XVIII”, Silvia Hunold Lara, professora do Departamento de História da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), observa que as elites coloniais operavam por meio de uma complexa política de alianças, lutando ao mesmo tempo por privilégios e cargos. Era a “economia do dom”, ou seja, redes clientelares em que os parentescos entre os membros das casas comerciais impunham regras e controlavam setores do comércio, tanto à época da colônia como do império. Em nome do bem comum, as câmaras concediam privilégios e mercês, que funcionavam do mesmo modo que as concedidas diretamente pelo monarca. Assim, dificilmente, alguém nascido pobre conseguia ascender na escala social.

A Justiça funcionava assim também: as penas variavam conforme a qualidade da vítima e dos réus, além de depender das circunstâncias. “Os privilégios atribuídos a cada condição social ou a determinadas posições e cargos estipulavam tratamentos diferenciados”, diz a historiadora. Dessa maneira, o exercício da justiça, antes de buscar aquilo que seria o ideal da verdade, servia para reforçar a escala hierárquica em que se organizava a sociedade.

Tal mentalidade ficou profundamente enraizada no processo de apropriação de terras na América portuguesa e continuou a valer por todo o Brasil Império e Republicano, chegando até os dias de hoje. Basta ver que os posseiros ricos sempre foram identificados como desbravadores e tomados como cúmplices do enriquecimento das províncias – muitos deles dão nomes a ruas, avenidas e rodovias ainda hoje –, o que, entre outras coisas, era o resultado de sua proximidade com o Estado e da sustentação que davam ao governo em troca de benefícios camuflados, como a arrematação de contratos dados pelas câmaras (de carne, aferição e estanques). Já os lavradores pobres que ousassem tomar um palmo de terra eram apontados como “invasores” ou “intrusos”. Ainda hoje é assim.

III

O artigo de Silvia Hunold Lara se aproxima do de Patrícia Melo Sampaio, doutora em História pela Universidade Federal Fluminense e professora do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas, “Viver em aldeamentos: encontros e confrontos nas povoações da Amazônia portuguesa, século XVIII”, que examina o papel das lideranças indígenas nas aldeias administradas conforme as regras estabelecidas pelo diretório pombalino e o modo como as reivindicações indígenas se inseriam na rede burocrática do Império português.

Outro artigo a destacar é o de Márcia Motta, doutora em História pela Unicamp e professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense, “Feliciana e a botica: transmissão de patrimônio e legitimidade do direito à terra na região de Maricá (segunda metade do século XIX)”, que discute a ausência de uma legislação capaz de assegurar a propriedade territorial no Brasil, o que permitia decisões arbitrárias, impostas por aqueles que mandavam mais. Até porque a integração da magistratura com a elite econômica e a elite governamental facilitava a corrupção, permitindo que a justiça viesse a ser manipulada por interesses particulares. Não raro, juízes usavam o Direito para interpretar cartas de doação, revogação de sesmarias, sucessões e desmembramentos de propriedades de acordo com os interesses dos poderosos locais.

Em outro artigo, “Territórios de confronto: uma história da luta pela terra nas Ligas Camponesas”, Maria do Socorro Rangel, professora do Departamento de Geografia e História da Universidade Federal do Piauí, mostra como noções díspares sobre o direito à terra conviveram e se debateram nos conflitos que colocaram de um lado grandes proprietários e, de outro, lavradores organizados pelas Ligas Camponeses nos anos 50 e 60 do século XX. Ao contrário do que ocorria em outros séculos, no século XX as disputas pela terra deixaram a área civil para se transformar em processos criminais, o que se acentuou a partir do golpe militar de 1964.

Como dizem as organizadoras na apresentação, todas essas análises evidenciam que, em determinados momentos, os recursos ao Judiciário e aos princípios do direito foram reconhecidos como estratégias privilegiadas na luta política. “Mas indicam também que o recurso aos artefatos legais não encobria as relações conflituosas entre o exercício da violência e o domínio da lei”, acrescentam.

Para as organizadoras, as histórias reunidas nos 14 artigos deste livro mostram que é impossível pensar numa história “do direito” ou “da justiça”, pois cada uma dessas noções tem significados tão distintos ao longo do tempo e tão contraditórios numa mesma sociedade que essas palavras, no singular, se tornam quase vazias de sentido. Ainda mais num país que se formou a partir da violência dos mais afortunados sobre os que nada possuíam. E que ainda hoje é vergonhosamente tido como um dos mais injustos em termos de distribuição de renda, ainda que seja a sexta maior economia do mundo, segundo o Center for Economics and Business Research, de Londres.
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DIREITOS E JUSTIÇAS NO BRASIL: ENSAIOS DE HISTÓRIA SOCIAL, de Silvia Hunold Lara e Joseli Maria Nunes Mendonça (orgs.). Campinas: Editora Unicamp, 544 págs., R$ 41,50, 2006. E-mail: vendas@editora.unicamp.br Site: www.editora.unicamp.com.br
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(*) Adelto Gonçalves é doutor em Literatura Portuguesa pela Universidade de São Paulo e autor de Gonzaga, um Poeta do Iluminismo (Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1999), Barcelona Brasileira (Lisboa, Nova Arrancada, 1999; São Paulo, Publisher Brasil, 2002) e Bocage – o Perfil Perdido (Lisboa, Caminho, 2003). E-mail: marilizadelto@uol.com.br
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