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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Os números (João Soares Neto)




Ao ser libertado do campo de concentração de Dachau fez três juras a si mesmo. A primeira: nunca mais falaria uma só palavra de alemão. A segunda: sairia o mais rapidamente da Alemanha. A terceira: nunca esqueceria, ao ler os números marcados em seu braço, as atrocidades sofridas.

Esquálido, esgueirou-se por entre os soldados aliados e conseguiu esconder-se em um caminhão carregado de mantimentos. Viu-se, após algum tempo, no porto de Hamburgo. Esperou a noite escura se fazer e, apurando a vista, divisou o grande navio americano ancorado. Cauteloso, mas decidido, aguardou o sentinela abraçar a loura junto ao poste. Subiu com o resto das forças possuídas e descansou sob o bote emborcado no tombadilho.

Agora, era 2001. Conseguira a cidadania americana. Tinha filhos, netos e uma bisneta mestiça que puxara à graça de sua mulher, bonita negra do Harlem com quem aprendera os segredos da vida e a falar inglês. Não fizera fortuna, mas seu emprego de mecânico dera o sustento a todos e ainda tinha boa reserva no banco.

Hoje, cansado, não deixava de olhar por trás de suas grossas lentes, os números tatuados em seu braço: 9112001. Sabia-os de cor, sonhara com eles tantas vezes e ainda lembrava o dia em que havia sido marcado, como se fora gado.

De repente, um pressentimento estranho veio à sua mente. Aqueles números pareciam estar formando uma data próxima: 11 de setembro de 2001. O que isto significaria? Não poderia ser coisa boa, pois aquelas marcas nunca lhe deram alegria e o obrigaram sempre a usar camisas de mangas longas. No seu quarto de viúvo solitário, pensou à exaustão. Alguma coisa ruim iria acontecer no dia 11 de setembro de 2001, concluiu. Resolveu tudo só: marcou uma reunião de família para a manhã do dia 11 de setembro, todos deveriam comparecer, ainda sabia a força que tinha. Houve resmungos, pois seria uma terça-feira, dia normal de trabalho, mas concordaram com o capricho estranho do velho e querido chefe da família. O que seria?

Chegaram todos. Até o neto prodígio que trabalhava arduamente naquela corretora judia no prédio mais famoso da cidade. Outro neto, bombeiro municipal, chegou fardado trazendo nos braços a bisneta querida. Eram 9.00 horas da manhã e a farta mesa estava disposta no jardim do quintal onde tantos churrascos aconteceram. Parecia a festa do Dia de Ação de Graças, mas não era.

O velho chefe da família olhou para todos com os olhos cheios de lágrimas. Estava alegre por tê-los a seu lado, mas triste, por não saber explicar a razão daquele encontro na velha casa do Harlem. Ria e chorava. Ria e chorava, enquanto lembrava o que intuiu ser uma data fatídica em seu braço.

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