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segunda-feira, 2 de abril de 2012

José Alcides Pinto: a face do enigma (Nilto Maciel)


(José Alcides Pinto)

Concluí a leitura de A Face do Enigma, de Dimas Macedo, pouco antes da hora do almoço. A caminho do restaurante, planejei escrever uma resenha dele ou mesmo uma crônica. Faria isto à tarde, logo após a sonequinha de praxe. Certamente não conseguiria consumar a tarefa no mesmo dia. Não fazia mal. Levaria dois ou mais dias a arrumar as frases. Nada de pressa. Afinal, Dimas Macedo e Alcides Pinto merecem o melhor. No meio do repasto, lembrei-me de umas contas a pagar. Ora, não poderia tirar a costumeira soneca e, muito menos, iniciar a modelagem do texto naquela tarde. Almocei devagar, pensei nas dívidas e programei a ida ao banco. De volta ao lar, liguei a televisão e me pus a ver bandidos de todo tipo: fulano superfaturou a construção do metrô; beltrano gastou milhões na campanha eleitoral, com dinheiro doado por fulano; sicrano abençoou a placa de bronze do metrô e seus realizadores; outro fulano de paletó e gravata pedia aos fiéis uma moedinha (o troco do bilhete do metrô) para a ereção do templo do salvador do universo em expansão. Irritei-me, desliguei o aparelho e cochilei no sofá. Minutos depois (certamente mais de trinta), a sirene do telefone me despertou. Calcei os chinelos e mudei o tom da voz: Sapataria do charco, boa tarde! Todo dia invento frases desse tipo, para me livrar de cobradores, vendedores de apólices, prometedores de paraísos e outros adoradores de bezerros de ouro. Muitas vezes me dou mal e peço mil desculpas.
A voz suave de Mirna Rosa pretendia falar com um amigo. Desculpasse o engano. Mandei a saparia se calar, pedi silêncio à pataria e me pus de joelhos. Pode vir agora mesmo. Não tenho nada a fazer. Pensava exatamente em você. Desisti de pagar as contas e o sono desapareceu por completo. Fui ao banheiro, tomei banho, passei a lâmina na cara e me cobri de perfume. Vesti-me como um paxá e fiz algumas anotações para o escrito de mais tarde. Antes de receber a menina, precisava me ocupar. Se perguntasse: Que o senhor estava fazendo? Vim atrapalhar?, eu teria resposta pronta, sem necessidade de mentir: Estava dando as primeiras pinceladas numa resenha. De que livro? Da mais nova publicação do meu amigo Dimas Macedo. Já ouvi falar dele e já li uns poemas dele. Quais? O Rumor e a Concha. Gostou? Adorei. Ofereci-lhe água, refrigerante, suco. Aceitou a primeira.

Enquanto a aluna saboreava meu líquido, eu falava de A Face do Enigma: Trata-se de “esboço literário de Alcides Pinto”, um ensaio da vida e da obra do grande escritor cearense, cujo corpo “arrefeceu o passo, rendeu-se” no dia 2 de junho de 2008. É uma homenagem poética. O tomo está dividido em cinco partes, sendo mais alentadas as duas primeiras: “Roteiro Biográfico de Alcides Pinto” e “A Obra Literária de Alcides Pinto”. Na primeira, o biógrafo dá uma volta comprida no tempo e alcança os pais do escritor. Essa descida ao poço das eras se aprofunda nas páginas seguintes. Ao narrar a juventude do vate, suas andanças por Pernambuco e Rio de Janeiro, os primeiros anos do exercício no jornalismo, o autor de Liturgia do Caos pinta o bardo de volta ao Ceará (1968) e o encontra no sertão, à cata de histórias e personagens familiares: “Nos domínios do lugarejo Morro das Almas, acha-se encravado o antigo cemitério de São Francisco do Estreito, cujos escombros e inscrições tumulares o poeta vasculhou em busca de suas origens, guardando em seu poder lápide referente à memória do seu trisavô paterno, Antônio José Nunes, o garanhão luso que aplaca o cio das fêmeas na ribeira do Acaraú, de forma sempre insaciável, enquanto personagem de Os Verdes Abutres da Colina”.

O ilustre filho de Lavras da Mangabeira retrata a infância do velho trovador assim: “O menino José Alcides puxara ao pai: magro, briguento, comprido e desengonçado. Costumava passar as tardes em cima de uma pedra ou correndo pelos cercados como os bezerros ariscos”. Mirna riu muito dessa descrição. E mais riu quando li: “Tinha a mania de andar nu e sem chapéu em pleno sol do meio dia, aquele que no sertão racha os miolos de qualquer vivente”. Humano como a criatura que me ouvia, eu também ria das peripécias do jogral ou da arte narrativa de Dimas Macedo: “Gostava também de atirar pedras nos urubus, os quais encangava e andava com eles pelo povoado do Alto dos Angicos”.

Rosto molhado de tanto rir, pedi licença à estudante e me dirigi à pia, para me purificar. De regresso à sala, encontrei a visitante em estado de encantação. O que você está sentindo? Nada. Talvez a sensação de que Alcides Pinto anda encantado por aí.

O monumento literário d’O Criador de Demônios não é tão grandioso (em extensão), se comparado ao de escritores cearenses mais prolixos, como José de Alencar, Gustavo Barroso e Eduardo Campos. No entanto, seus títulos são muitos, como se pode verificar na bibliografia inscrita nas páginas 57/61 deste estudo. O biógrafo se refere a “cinquenta e cinco livros editados ou reeditados” e percorre um a um, em breves análises (A Face do Enigma não é crítica literária, mas um esboço biográfico). São analisados o poeta, o contista, o romancista, o crítico literário, o ensaísta, como se pode ler aqui e ali. Vejam uma dessas sínteses: “Trilogia da Maldição vale, fundamentalmente, como instância da representação da nossa prosa poética, porém impõe-se, sobretudo, pela estilização e o recorte fantástico com que as suas personagens são apresentadas. A literatura do maravilhoso, a herança do romance latino-americano e a vertente da obra literária que vem de Dostoiévski, que passa por Rimbaud e Baudelaire, que incorpora o símbolo e a metáfora e os dilemas existenciais e humanos que ressoam da obra de Albert Camus e de Kafka, encontram com certeza em Alcides Pinto um intérprete privilegiado”. E há outros instantes de plena análise. Entretanto, Dimas Macedo teve mais o propósito de “mostrar” o ser humano chamado José Alcides Pinto, que viveu durante oitenta e cinco anos para a literatura e para os amigos, do que o de elaborar exegese literária.

Mirna Rosa olhava para mim, admirada, como se estivesse diante de um conhecedor do menestrel da ribeira do Acaraú. O senhor chegou a conhecê-lo? Um pouco. Esteve com ele alguma vez? Visitei-o, em três ou quatro ocasiões, na pequena casa da Vila Cordeiro, encravada na Avenida Tristão Gonçalves. E como ele era? Muito engraçado. Mas, um enigma, como toda pessoa. O senhor me acha enigmática? Mais do que esperava. Deixamos de lado o autor de O Dragão, bem como Dimas Macedo, e passamos o resto da tarde a versar sobre desejos, pecados e outros mistérios carnais.

Fortaleza, 1º de abril de 2012.

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