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quinta-feira, 30 de agosto de 2012

O diarista Saramago (Franklin Jorge)



 
José Saramago consigna os dias de sua vida em Cadernos de Lanzarote [Caminho, Lisboa, 1994], que Luis Carlos Guimarães ofereceu-me em dois volumes com uma bela dedicatória.

Caudatário de infinitas leituras e de uma longa e rica experiência humana, Saramago faz o que quer com as palavras — à serviço de idéias e reflexões — que põem em evidência o diarista, ainda mergulhado na circunstância, em busca da transcendência que vai muito além da urgência de dizer, nítida em seus diários, pois nele é forte o tom da voz do homem que conversa consigo mesmo, em linguagem elevada e culta, ajustada aos seus íntimos pensamentos.

Há, nele, como que invisível e indivisível feitiço, a vocação do homem rural para a teima, para não deixar nada sem resposta, num exercício de franqueza e inteligência que anima as letras portuguesas, ao longo dessas páginas, em sentenças nascidas da indignação e da altivez de um pensador capaz de perceber e analisar o fenômeno humano em confronto com a vida sujeita à banalidade dos políticos que só pensam em aproveitar dos seus mandatos em causa própria.

Desse Saramago não concordo, todavia, da simpatia que demonstra por grandes demagogos elevados à chefia de governos, nos quais entram de cambulhada os mais diversos e especiosos apetites, de ditadores como Fidel a civis como Lula, Luis Inácio Lula da Silva, uma forma de equivoco que se repete em escritores que se forçam a intervir politicamente, através de apoios que a decência arroga para si, como um dever de justiça – defender o pobre que venceu forças poderosas contra ricos naturalmente maus –, mesmo quando seria mais justo calar ou expressar apoio somente depois de uma longa e cuidadosa reflexão dos fatos. Saramago, num lapso de lucidez, incensa Fidel e Lula com igual irresponsabilidade. Logo incensará Chavez e seu factótum boliviano…

Rebaixado por essa simpatia instintiva — em seu melhor aspecto alienada –, contudo, indefensável e periculosa para a saúde da civil, sempre à mercê de vontades excepcionais em constante e invisível confronto com a liberdade de expressão e o estado de direito. Saramago, como observador privilegiado, registra tudo, participa de tudo, como uma grande personalidade das letras, em obsequiosa peregrinação pelo mundo, aplaudindo e admoestando, incentivando, decepcionando-nos em alguns momentos com suas opiniões, conquistando admirações e antipatias, do alto de sua cátedra nobelina.

Aprecio nessas anotações cheias de verve a presença dum ranço lusitano de tom pitoresco, presente no português que dominou a colônia, perdendo tempo com picuinhas provincianas. Como brigam e pelejam entre si os literatos portugueses do passado e do presente. Por dá-cá-aquela-palha estão sempre se engalfinhando e perdendo e as estribeiras. E como se entregam ao turismo cultural, participando de todas as feiras de livros, de todos os colóquios, reuniões que sempre fomentam a animosidade e a discórdia presente na massa do sangue desses intelectuais que mal conseguem revigorar a prosa contemporânea mais aclamada em Portugal.

Saramago tem cultura, talento e estilo. É um criador que se renova a cada empreendimento literário. Como um daqueles antigos navegadores que se lançavam ao mar, sem salva-vidas, sem GPS nem mecanismos de alta precisão para acudir-lhe, assim enfrenta Saramago o desafio da criação, sem lembra essa intemerata gente portuguesa que ficou desocupada e sem ter o que fazer, como diria Pessoa, após o ciclo de descobertas que deu aos lusitanos uma espécie de glória antes atribuída aos romanos dos quais em parte descende.

Escritor a quem apetece mandar, ocasionalmente, trinta páginas de vingativas respostas a um bilhete de três linhas, Saramago destila seu humor em sentenças de grande sutileza, como refinado artífice que é, especialmente quando se volta para a própria análise de sua personalidade e de seus defeitos; que jamais esconde, nem mesmo em coisa pequena, como abusar de arrebiques da sinalética gramatical, ao reincidir no uso das reticências…

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