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terça-feira, 30 de outubro de 2012

Ganga bruta (Guido Bilharinho)



A Obra-Prima de Humberto Mauro


                           Se de filme para filme amplia-se e solidifica-se o domínio de Humberto Mauro (Volta Grande/MG, 18971983) sobre o entender e o fazer cinematográfico, em Ganga Bruta (1932) esse aprimoramento atinge sua plenitude, revelando cineasta perfeitamente consciente do fenômeno cinematográfico.
                       
                                À semelhança de Machado de Assis, não é só sob o aspecto técnico-formal e nem poderia sê-lo sob pena de não se perfazer que abarca os recursos mecânicos da câmera, a elaboração estética da imagem e a percepção das possibilidades oferecidas pela montagem, que Mauro apresenta aperfeiçoamento constante até alcançar o clímax desse processo.
                        Essa trajetória ascensional também ocorre na compreensão da natureza humana e na filigranagem significativa de suas manifestações e no conteúdo e modos do inter-relacionamento entre os indivíduos.
                        Como sua temática essencial (e única) centra-se até então em torno do relacionamento amoroso de personagens na faixa etária de sua eclosão e resolução, esse específico (e especial) modo de união entre as pessoas é não só revelado em algumas de suas variações como, principalmente, mais aprofundado e até mesmo tragicizado.
                             A linha evolutiva do conhecimento e das concepções de Mauro sobre o mundo caracteriza-se, pois, por enfeixar todo o complexo fílmico-ficcional, conquanto, como acontece com qualquer outro criador, balizada e condicionada pelos elementos culturais (em seu amplo e abrangente sentido), temporais e espaciais, que informam e moldam seu entendimento das coisas e do mundo.
                        Em Ganga Bruta, como nos filmes que o antecedem, também surgem obstáculos ao comércio sentimental, interrompendo sua espontânea manifestação. Contudo, a diferença é não só de natureza como de intensidade e gravidade. Por primeiro, esse óbice é íntimo num dos parceiros, traumatizado por anterior comoção.
                                 Essa tecla é trabalhada pelo cineasta tanto ao nível do significante quanto do significado, do conteúdo e sua exteriorização, quanto do modo de conduzi-los narrativa e imageticamente.
                        As notas, soantes e dissonantes, e a tessitura relacional daí decorrentes constroem-se e fluem sob condução segura e visualmente requintada.
                        A imagem cinematográfica e sua montagem atingem sofisticada elaboração estética e perfeita concatenação dialética, em que a ação provoca não simples reações, mas, consequências que se articulam num encadeamento ininterrupto.
                        Pode-se afirmar que isso é o que normal e naturalmente deve ocorrer nas construções artísticas ficcionais e estar-se-á enunciando verdade axiomática.
                        Todavia, em poucas obras consegue-se imantar, articular e conduzir seus componentes com a argúcia e a pragmática demonstradas em Ganga Bruta, mormente a partir de elementos triviais, dos quais se extrai a natureza íntima, imprimindo-lhe concomitantemente beleza estética, que a transmuda, valoriza e universaliza.
                        Tirante algumas cenas cinematograficamente pouco expressivas, o filme é um continuum de sofisticadas construções imagéticas, em que se fundem o olhar (as possibilidades fotográficas e angulares da câmera) e a imagem dele resultante.
                        Esse olhar ultrapassa a direta (e altamente complexa) visualização da matéria que enfoca para mostrá-la simultaneamente como se apresenta em sua solidez e concretude e também e, no caso, principalmente em sua beleza, quase sempre imperceptível à verificação meramente mecânica e/ou orgânica.
                   Ganga Bruta é, pois, resultante da observação e percepção de estético e dialético olhar do artista no processamento da transfusão de matéria e ideia, ação e contemplação, visão e beleza.
                        Suas imagens mais elaboradas e a sutileza relacional que estabelece entre os protagonistas, notadamente na série (e variabilidade) expressional da heroína, antecedem os grandes cineastas europeus dos anos cinquenta que dilataram seu alcance e profundidade.
                        As cenas iniciais do filme transcorridas no âmbito do palacete residencial, palco da tragédia, por sua vez antecipam (e são de igual nível) às de Orson Welles nove anos depois, em Soberba (The Magnificent Ambersons, EE.UU., 1942).

(do livro Seis Cineastas Brasileiros editado pelo Instituto Triangulino de Cultura em 2012-www.institutotriangulino.wordpress.com)
Foto da capa do livro em anexo.
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Guido Bilharinho é advogado atuante em Uberaba e editor da revista internacional de poesia Dimensão de 1980 a 2000, sendo ainda autor de livros de literatura, cinema e história regional e nacional.
(Publicação autorizada pelo autor)

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