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sábado, 15 de dezembro de 2012

A cartomante (Paulo Lima)





MADAME EVA
CARTAS, BÚZIOS, TARÔS
SOLUÇÃO PARA MALES AMOROSOS
E FINANCEIROS
RUA SÃO CRISTÓVÃO, 999

Um anúncio como esse corre o risco de cair no ridículo hoje em dia. A busca da solução miraculosa para os problemas pessoais parece residir nos templos evangélicos que se espalham pela cidade. E também nas filas que se formam nas Casas Lotéricas, especialmente na véspera de prêmios polpudos acumulados. Isso se o assunto em questão for dinheiro, dívidas e derivados.
           
Mas não era assim na década de 70. Não para o meu pai. Não para um funcionário público boquirroto. Que ele era. Que vivia atormentado por dívidas. Que já havia esgotado todos os expedientes para conseguir dinheiro extra. Agiotas, pequenos empréstimos dos amigos e de parentes um pouco mais afortunados. Quase todos.

E palpites fervorosos nos jogos da loteria esportiva, na época a grande esperança dos brasileiros de deixar para trás a pobreza de uma forma fácil e rápida.

Ele jamais chegou perto de acertar os resultados. Rasgava o bilhete num silêncio resignado depois de constatar mais um fracasso. E na semana seguinte se repetia o mesmo ritual de fé e derrota.

Foi num desses momentos que Madame Eva entrou em sua vida. Como um bote salva-vidas que é lançado a um náufrago.  O estímulo partiu de uma vizinha que vivia igual situação de penúria. Ela convenceu minha mãe a respeito dos dotes de Madame Eva. Minha mãe conseguiu dobrar a resistência cética do meu pai.

Foram uma tarde ver Madame Eva. Fomos, pois eu os acompanhei.

A casa de Madame Eva era humilde. Fiquei esperando numa espécie de ante-sala enquanto meus pais se enfurnavam por um corredor. O lugar cheirava a incenso. O silêncio era quebrado vez por outra por algum carro que descia a rua. A cidade, tão diferente do rio de tráfego que viria se transformar, estava mais para uma aldeia pacata.

A TV em cores engatinhava no país.
Os militares estavam no poder.
Vivíamos a euforia de termos conquistado o tri-campeonato de futebol no México.

A consulta com Madame Eva demorou uma eternidade para a minha noção de tempo. Senti um desafogo quando vi por fim pai e mãe saírem pelo mesmo corredor onde haviam se perdido. Ambos exibiam um sorriso confiante. Algo havia funcionado no contato com Madame Eva.

Em casa os segredos entre meus pais jamais nos eram revelados. Eram mantidos entre eles, como a senha de uma seita secreta. Deduzíamos que as coisas não iam bem pelas mudanças abruptas de humor. Em minha mãe, pela exacerbação da violência, quando ela nos atingia com qualquer objeto que tivesse nas mãos. Em meu pai, pelo aumento no ensimesmamento; pelo mergulho em si mesmo e pelo isolamento.

Mas aqueles dias que se sucederam ao encontro com Madame Eva foram de relativa felicidade para os pais. Era visível a alegria revelada nos pequenos atos, no trato ameno comigo e com meu irmão. Notava-se na nossa casa um pequeno halo de bem-estar, o que era um fato incomum.

Nas conversas entreouvidas, eu captei trechos do segredo. Madame Eva assegurara que o pai ia ganhar um prêmio na loteria federal. A sorte parecia mudar de rumo. Não era mais depositar a esperança na loteria esportiva. A chave da fortuna mudara.

Madame Eva não dera garantias de prazo. O pai ia ganhar um prêmio. E pronto. Ele devia tornar a visitá-la para outras consultas.

Foram dias felizes, uma felicidade arrancada do futuro, de um futuro em que íamos ganhar um prêmio, e seríamos ricos, e poderíamos comprar tudo que nos faltava, e deixaríamos para trás os dias de penúria.

Eu sonhava com uma casa espaçosa. E só nossa. Eu teria uma bicicleta. E não sei quantos brinquedos. E iríamos conhecer São Paulo. E eu poderia comer todos os bolos e doces que desejasse. Eu poderia comprar o que quisesse no supermercado.

Meu pai comprou o bilhete da loteria federal. Fomos para a segunda consulta com Madame Eva. Fiquei na ante-sala, como da vez anterior. Havia um cheiro de incenso empestando o ar. O clima de mistério, o insondável, me deixava assustado. Eu acreditava no sobrenatural com a mesma força com que o refutava. É assim até hoje.

Meu pai e minha mãe sumiram pelo mesmo corredor.  O que conversavam com Madame Eva, eu jamais pude saber. Podia deduzir o teor do que haviam discutido quando batesse os olhos no pai e na mãe. Suas reações, seus semblantes, seriam o meu termômetro: as coisas iam bem ou mal.
Mal não iam. O pai deixou a casa de Madame Eva com o mesmo ar de autoconfiança da vez passada. Íamos mesmo ganhar o prêmio. Era apenas uma questão de tempo.

Os dias se passavam e eu multiplicava meus planos. Agora queria uma casa com jardim e piscina. Queria um avião com controle remoto. E um autorama. Em pouco tempo eu havia me transformado numa criança ambiciosa.

Às vezes eu tinha vontade de pedir ao pai para dar uma olhada no bilhete. Nosso passaporte para o sagrado, para a opulência. Não tinha coragem. Confiava no pai que as coisas se resolveriam, e ficaríamos ricos. Era só uma questão de tempo.
E o pai confiava em Madame Eva.

O bilhete da loteria federal correu num domingo e não ganhamos.  Esse infortúnio não me foi relevado, nem a mim, nem a meu irmão, mas eu pude ouvir entre os cochichos do pai e da mãe.

Fomos para a terceira consulta com Madame Eva. Tudo indica que alguma coisa havia falhado na leitura que ela fizera do futuro do meu pai. Do nosso futuro. Mas Madame Eva era uma vidente tenaz. Assegurou que o prêmio viria, era só uma questão de tempo. Seria preciso, porém, pagar mais pela consulta, de modo a fortalecer as chances do meu pai.

Meu pai comprou um novo bilhete.
Aguardávamos o momento iminente, quando a sorte bateria à nossa porta. Era uma questão de tempo, para que nos despedíssemos da pobreza.

A convicção parecia dominar meu pai e minha mãe. Um dia ela não se conteve e, longe das vistas do meu pai, veio confidenciar.
Seu pai vai ganhar um prêmio.

Pelo tom de sussurro estava claro que eu deveria guardar segredo.
Um prêmio?
Banquei o desentendido.
Sim, um prêmio.
Minha mãe reafirmou com confiança.

Multipliquei meus desejos. Estávamos todos enfeitiçados pela perspectiva de ganhar o prêmio. Madame Eva tinha garantido. Era só questão de tempo.

O segundo bilhete correu e meu pai não ganhou.
Fomos eu, meu pai e minha mãe ter com Madame Eva. Notei uma pequena rachadura na autoconfiança do meu pai. Mas Madame Eva explicaria tudo.  O prêmio viria, era apenas tempo.

Chegamos à casa de Madame Eva, que estava estranhamente fechada. Meu pai bateu palmas e chamou. Silêncio. Um vizinho deu a notícia.  

Madame Eva foi embora ontem à noite. Voltou para a terra dela em Alagoas. Vocês não sabiam?
Não, não sabíamos.

Voltamos para casa em silêncio. Minha mãe foi para a cozinha. Eu fui fazer o dever da escola. Meu pai ficou na sala lendo um jornal.

Alguns dias se passaram. Hoje o domingo foi muito quente. Daqui a pouco vão anunciar o resultado da loteria esportiva. Meu pai já está com a caneta e o bilhete na mão. Um dia ele vai ganhar o prêmio. É só uma questão de tempo.

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