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segunda-feira, 14 de janeiro de 2013

Rês ligeira, vaqueiro bem montado (Nilto Maciel)





Imprimi uma relação de nomes e pus a folha sobre a mesa. Só de estudantes que me visitam com frequência ou participam das aulas em minha oficina. Precisava de três deles para um serviço: ler três publicações novas de prosa de ficção. De olhos fechados, apontei o dedo para os nomes. O primeiro escolhido foi Luciano de Barros, a quem coube Entre o elevador e a praça, de Fáttima Britto. A Camila Peçanha ofereci A arte de afinar o silêncio, de Mariel Reis. Para Simone Farias reservei A menina das flores, de Arine de Mello Jr. Eles sabiam o que fazer: ler, com olho crítico, e, em dia com eles marcado, comentar comigo as obras lidas. Ontem se realizou a sabatina. Chegaram cedo, logo após o almoço. Eu examinava a primeira edição de Mundinha Panchico e o resto do pessoal, de Juarez Barroso. O rapaz se interessou pelo impresso: “Já li e ouvi comentários a ele, mas nunca o vi”. Podia levar, se quisesse. Porém, devolvesse logo, que tenho muito ciúme das minhas pérolas. Camila quis se exibir: “Um dos melhores contistas cearenses do século XX. Não é verdade, professor?” Dei opinião: Um dos melhores contistas brasileiros. Simone não quis ficar para trás: “Melhor do que este aí é Joaquinho Gato. Virou-se para mim, em busca de aprovação: “Ou não é?” Dei resposta vaga.  Deveríamos nos dedicar aos escritores do dia.  


Dei a palavra ao jovem e me ajeitei na cadeira de balanço. Começou a exposição pela ausência de diálogos em Fáttima Britto. “Não se vê um travessão. Também não encontrei aspas e, muito menos, verbos declarativos”. Lembrei-lhe o início de “Voz de soltura” (sem travessão, sem aspas, sem verbos de elocução): “Cala a boca, filho da puta, que eu não nasci pra escutar desaforo de filhinho de papai cheirando a leite de mamãe. É isso aí, ô panaca, você foi pego”. E opinei: “A prosa de Fáttima segue uma linha nova (talvez não tão nova assim) da arte literária. Evita os cacoetes herdados da novelística mais antiga e, especialmente, do século XIX, excessivamente descritiva e repleta de lero-lero”.  

Passados uns vinte minutos, interrompi o discurso de Luciano. Necessitava ouvir Camila Peçanha e vê-la folhear o caderninho de apontamentos. “Também fiz algumas observações a esse respeito, quer dizer, a respeito de conversação de personagens. Mariel segue rumo diverso do percorrido por Fáttima, pois, embora não use os antiquados travessões, ainda chama a atenção do leitor para as vozes dos seres fictícios, com aspas e verbos dicendi. Como em “A mensagem”. Um trecho: “Gritava: ‘Aparece, filho da puta, aparece pra ver’. A advertência dizia: ‘Maurinho, de hoje você não passa’”. (Aqui são usadas aspas simples, porque entre aspas duplas).  

A preocupação de Luciano e Camila com aspectos secundários da dicção dos contistas me deixava inquieto. Fazia-se indispensável analisar a maneira de dizer de cada um, de modo mais abrangente. Deixei a exibida menina divagar por mais uns minutos, até me exasperar: “Agora é a vez de Simone”. O rapaz se encolheu no sofá, como se a ele eu tivesse me dirigido. A protegida de Batista de Lima não se mostrou intimidada. Fechou o caderninho e fez deslizar a rubra língua nos escarlates lábios. Senti um calafrio, mas me contive: “Simone, fique à vontade”. Levantou a capa: “Vejam a dedicatória do autor: ‘Com admiração ao grande Nilto Maciel, neste meu livro, a saga de Leontina e seu cão Alfredo. Do amigo e leitor Arine de Mello Jr’. Muito chique”. Impossível não persistir no tema da cavaqueira (vozes) em ficção. Pois Caio Porfírio Carneiro, um dos mestres do conto brasileiro, assim se manifesta nas primeiras linhas da apresentação: “A originalidade primeira deste livro nasce no plano formal. Quase todo o texto é transposto para o campo das falas. O descritivo é mínimo, e o narrativo se processa e segue em dialogação continuada”.  

Depois de meia hora de lengalenga, bati palmas e fiz o convite mais esperado de minhas aulas: “Vamos merendar?” Os três se alegraram. Chamei Alice, ao vê-la de relance entre a cozinha e a sala de refeições. “Que temos hoje?” “Torta de marmelada e sucos de pêra e melancia”. Sentamo-nos à mesa. Simone tornou a se exprimir: “Não sei se disse: A menina das flores é romance”. Atulhamo-nos de bolo durante uns quinze minutos, ora calados, ora em breves dizeres: “Está uma delícia”; “Quem fez?”; “Alice, você tem mãos de fada”. De regresso à sala de conversação, encontrei Juarez Barroso a nos espiar. Tive a impressão de entrever um risinho de galhofa no canto da página.  

Voltemos aos convidados de hoje. “Luciano, fale mais das composições de Fáttima Britto”. O jovem deixou de lado o colóquio e alcançou o assunto dos relatos: “As criaturas de O elevador e a praça são gente de hoje, da cidade grande, da metrópole. Trabalhadores e vagabundos ou excluídos da sociedade. Os chamados cachorros miúdos, os vira-latas. Seus sofrimentos, seus vícios, seus dramas individuais, associados aos grandes dramas sociais. Passadores de maconha e crack, putas finas, velhinhos safados, entes em solidão, sofridos”. Pedi-lhe o volume e li, como ilustração: “Um dia dei-lhe um tapa. Saiu seco, cortando meus olhos vermelhos de erva. Logo no dia da erva? Não combinava. Erva na combinava com bater em velho indefeso, meio meu pai, meio meu vô, meio meu amigo, meio meu filho, meio meu amante meio meu eu meio”. Fiz uma pausa: “Realismo puro, porém sem o uso do dialeto chulo de alguns prosadores de hoje”. 

Observei os números do relógio. Obrigava-me a dar a palavra a Camila. “Tem meia hora para arrasar Mariel Reis. Ou para colocá-lo no pedestal dos grandes contistas”. Riu: “Seguirei o conselho de meu professor Batista de Lima”. Passou as folhas de Arte de afinar o silêncio. “E qual é o conselho dele?” “O senhor sabe”. “Pois então o siga”. E se pôs a gesticular: “A coleção de Mariel pode ser vista como um polígono regular de muitos lados. Talvez um icoságono. Suas tragédias têm formas diversas e tratam de temas variados. Vai ao morro carioca (realismo urbano), recorda a infância e a adolescência (de personagens), chafurda no cotidiano das pessoas simples. Ora semelham crônicas (“O santo”), ora são recriações de vultos da nossa literatura (Lima Barreto, Marques Rebelo) e da estrangeira (Francis Ponge, Eliot, Valéry, Rimbaud), ora tramas de variadas acepções (“Meu tio, o encantado”). Escritor multívago e competente”. 

A tarde descambava no horizonte. (Se era assim, não sei, pois, da sala onde estávamos, eu só via a fachada de um edifício de 15 andares). Apressei Camila e convoquei Simone a se pronunciar. Fosse concisa. E foi: “O romance de Arine é do tipo descritivo-narrativo, entremeado de longas conversas. O primeiro a aparecer é Juvenal. Na verdade, apenas o corpo ou o cadáver. O segundo é o delegado Juca Rato. O terceiro é Leontina, a viúva. O palco da cena é um cemitério. E assim vai o narrador enredando (engolindo) o leitor, feito cobra. A linguagem (e não apenas a dos diálogos) se apresenta de forma rudimentar, arremedo da expressão plebeia dos brasileiros. Com todas as trivialidades da conversação de rua. Isto é bom para a preservação da língua. Além do mais, qualquer leitor (ou ouvinte) entenderá a história. Não há firulas de estilo”.
             
Não dispúnhamos de mais tempo. Sobre a mesinha, Juarez Barroso me fez lembrar (não sei explicar a razão disso) “Joaquim Bralhador”, uma das mais belas páginas da literatura brasileira: “Não tem rês ligeira para vaqueiro bom e bem montado”. Não recitei a frase; apenas avisei: “Por hoje é só”. Simone fez correr a língua ardente (como saberei disso?) nos lábios de mel (devem ser doces como os de Iracema) e me pareceu insatisfeita.
             
Fortaleza, 8 de janeiro de 2013.