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terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

Americanos (Paulo Lima)




Para Karen Gadient

As casas, uma pequena fileira de cinco ou seis, eram brancas, feitas de madeira e rodeadas por cercas baixas – também de madeira. As portas e janelas tinham telas de proteção contra mosquitos, e abriam para fora.

Ficavam no alto de um conjunto de dunas a caminho da praia. A brancura das dunas ajudava a realçar a solidão daquelas casas, em vez de ocultá-las.

A gente observava de longe, como se fosse uma aparição do outro mundo. E era de fato de um outro mundo.

– São americanos! – meu pai explicava, com uma pontinha de admiração e respeito.

Os americanos. Eu tinha visto na televisão os astronautas passeando na lua pela primeira vez. Eram americanos. Aquelas manchas brancas se moviam lentamente na escuridão. Seriam mesmo astronautas? E aquilo lá era a lua? Às vezes a imagem ficava tão ruim que eu chegava a duvidar. E então as manchas brancas voltavam a se mover mais uma vez.

As pessoas se aglomeravam em frente ao único televisor da rua pra ver os americanos realizarem a conquista da lua.

Quanto a mim, abandonei a cena e subi a rua correndo pra comprar pão. Mas tomei cuidado com o cachorro da esquina. Por que diabos eles adoram perseguir crianças?

Aqueles americanos que moravam naquelas casas de madeira eram astronautas? Todos os americanos eram astronautas? Achei que talvez fossem todos cowboys. Ou Tarzans. E todos deviam ser muito altos e louros. E suas mulheres eram altas e louras e tinham os lábios com um batom de um vermelho forte e vivaz.

Eu via no cinema.

Um dia, no cinema, deram coca-cola de graça pra gente. Diziam que era invenção americana. Aquilo descia pela garganta sufocando e ardendo. A gente sentia vontade de tossir. E os olhos se enchiam de água. Mas era bom. Era muito bom.

Então os americanos bebiam aquilo?

Nos fins de semana a gente ia pra a praia. Mas não era a praia que me atraia. Era a chance de ver as tais casas de perto. Aquelas casas dos americanos, tão diferentes das nossas casas. A gente passava a uma certa distância delas. Os pés afundavam na areia das dunas. Os dedos se enroscavam na vegetação rasteira. Eu esticava o pescoço pra ver melhor as casas.

Eu ficava esperando que alguém aparecesse na porta de uma delas. Um americano. E dissesse alô pra a gente. Mas se ele surgisse de algum lugar é bem provável que eu tivesse medo e ficasse calado. Eu me esconderia atrás do meu pai e deixaria que ele respondesse ao alô, como fazem os adultos.

Um dia meu pai chegou com várias caixas de leite em pó. Ele explicou que eram distribuídas pelos americanos da Aliança para o Progresso. Eu não sabia o que era Aliança, nem o que era Progresso. As caixas eram brancas com letras azuis. Tinham o desenho de uma águia. Minha intuição de criança entendeu que recebíamos ajuda porque éramos muito pobres. E eles, os americanos, eram muito ricos.

Eu tinha visto no cinema uma cidade dos americanos. A cidade era Los Angeles, com muitos viadutos, muitos carros, muitos ônibus e muitas pessoas nas ruas. Havia prédios muito altos. A minha cidade, ao contrário, era atravessada por sítios e terrenos baldios. Quando queríamos ir a algum lugar distante, íamos a pé. Às vezes a gente entrava num sítio e roubava caju. Mas a gente sentia medo, pois se o dono nos visse dava um tiro de sal. Não matava, mas dizem que doía bastante. E, além disso, havia o medo de que fôssemos chamados de ladrão, uma palavra tão feia.

Algumas vezes eu ouvia o pai ou a mãe cochichando segredos. – Você sabia que o filho de fulano é ladrão? Ou pior ainda. – Você sabia que a filha de sicrano é safada? E um silêncio grave se instalava no meio deles.

Os americanos eram muito ricos. E nós, muito pobres. Entre eles não havia filhos ladrões nem filhas safadas.

Eu ficava olhando as casas ao longe, tentando decifrar sua rotina, o movimento dos americanos dentro delas, suas conversas, suas brigas. Eu queria ter super poderes pra perscrutar melhor aquelas casas. Como o Super Homem, Fantasma, Capitão Marvel.

Eu sei, porque lia nas revistas de quadrinhos.

Mas eu não sabia que esses heróis eram americanos. Eu pensava que eles eram meus amigos, somente isso.

E se eu fosse invisível? Se eu fosse invisível eu ia entrar na casa dos americanos, sentar com eles à mesa, comer a comida deles, andar na bicicleta do filho deles e quem sabe dar um beijo na filha deles.

Eu tinha visto no cinema. As filhas dos americanos têm nomes curtos, como Mary ou Joan, têm cabelos loiros e bem lisos, tomam sorvete, mascam chiclete e vão para a colônia de férias.

Os filhos dos americanos têm nomes também curtos, como John ou Peter, têm cabelos loiros e lisos, mascam chicletes, andam de bicicleta, vão para a colônia de férias e adoram brigar entre eles. Os mais velhos pedem o carro dos pais emprestados e saem com suas namoradas.

Isso eu vi no cinema.

Os pais e as mães americanos deixam os filhos dormindo com a baby-sitter e vão ao ball dançar com os amigos. Lá eles enchem a cara, falam de negócios, fumam seus cigarros, e às vezes provocam uma briga em que podem praticar um pouco de box.


Depois os homens voltam pra casa pressionando um pouco de gelo contra o olho machucado, e confiam os volantes às suas mulheres, a quem chamam de honey e darling.

Um dia quis saber de meu pai:

– Como é que falam os americanos?

Hoje à noite você vai saber, ele disse. E quando a noite chegou, ele pôs seu velho rádio sobre a mesa, girou uns botões e de dentro dele saiu uma voz forte e metálica com uns ruídos estranhos, como se fritassem algo na frigideira.

This is voice of America.

Tornei-me um ouvinte cativo da Voz da América, serviço radiofônico que durante décadas funcionou como um dos emissários da política americana para a América Latina.

Não entendia uma palavra, mas pontualmente, no mesmo horário, eu aguardava meu pai girar uns botões do seu velho rádio pra sintonizar mais uma vez a Voz da América.

This is voice of America.

A gente ia pra a praia nos fins de semana, e meu interesse era bisbilhotar aquelas casas. Meus pés afundavam na areia, se enroscavam na grama rasteira, eu esticava o pescoço e olhava sobre o ombro. Dali de uma daquelas casas deveria sair algum americano e dizer alô. Eu sentiria medo, e esperaria que meu pai respondesse ao alô, como fazem os adultos.

Mas, pra falar a verdade, eu nunca vi nenhum americano sair de uma daquelas casas. Soube muito tempo depois que eram missionários mórmons, mas houve quem dissesse que eram famílias de engenheiros contratados para auxiliar a Petrobras em trabalhos de prospecção de petróleo por estas bandas.

Meu pai ligava seu velho rádio sempre à mesma hora da noite, girava alguns botões e dele saía, em ondas, uma voz metálica e forte, cheia de ruídos.

This is voice of America.

Décadas depois fui ser estudante em Moscou. Só pra você ter ideia de como são as coisas.

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