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segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Uns sujeitos na praça (Nilto Maciel)



Sentou-se um sujeito num banco de praça. Tanto à frente, como atrás e aos lados havia casas de fachadas bonitas e antigas. Viam-se cornijas na parte superior de portas e janelas; canos, em forma de jacaré, no alto, por onde escorria a água da chuva. Ao centro do largo, uma estátua em homenagem ao fundador da cidade. Nome pomposo e nobre (conde fulano de tal, barão disso e daquilo), datas de nascimento e morte. Havia um bigode enorme na cara da figura. O homem vestia paletó sem data, eterno. Passou um cão, que olhou de soslaio para ele e seguiu no rumo do vento. Talvez andasse à cata de comida ou de cadela. Ou apenas andasse, como qualquer andarilho. Mais adiante, um garoto saltitava, corria, gritava, sob os olhares da mãe. Sim, da mãe, pois o pequeno de vez em quando clamava: “Olha, mãe, como sei pular”. Noutro momento, uma garota sentou-se num banco defronte ao do cidadão. Trajava saia colorida, blusa listrada, ora cantarolava, ora afundava os dedos nos cabelos longos e loiros. Certamente pensava no valete de ouro, imaginava beijos e abraços e uma noite cheia de suspiros, bolos, amêndoas. Uma carroça estacionou numa das vias. O carroceiro deixou o animal amarrado ao tronco de uma árvore e se retirou. O cavalo abaixou a cabeça e se pôs a lamber o chão. Teria fome ou seria apenas hábito aquele gesto de fuçar o solo? Um casal de velhinhos apareceu à esquerda do isolado pensador, a caminhar lentamente diante de seus olhos. Falavam da necessidade de estarem de volta ao lar, antes do anoitecer. Que teriam a fazer de tão importante em casa? Por que não passeavam mais, de mãos dadas, antes que fosse tarde demais? Uma fileira de formigas se formou aos pés do indivíduo. Quem as comandava? O que pretendiam? Certamente construíam uma cidade debaixo daquela praça antiga. As árvores esverdeavam os olhos das pessoas e os vidros. Mais um ou dois meses e estariam ressecadas, amareladas, estioladas. Não fazia muito calor. Nem frio. Parecia agradável a animais e humanos a tarde. A praça aparentava tranquilidade, como no dia anterior, no mês anterior, no ano anterior, nos anos idos.

Outros sujeitos solitários, em dias e horas diferentes, também estiveram naquela praça, cujo nome nada significa. E “viram” (ou não viram, porque não quiseram ver ou por outro motivo) o cachorro vadio, o garoto saltitante, a menina vaidosa, a carroça, o carroceiro e o cavalo, o casal de idosos, as formigas em fila, as árvores verdes, o chão batido, as casas com seus jacarés inofensivos, a estátua e seu bigode sem data. Um dos homens disse não ter visto o garoto e, muito menos, os velhinhos. Não sabia o nome da praça, nem queria saber quem representava aquele busto sujo de excremento de pombo. O segundo informou ter visto quase tudo, mas não se interessou por nada. Preferia se interessar pelos viadutos das metrópoles. Queria ser arquiteto, engenheiro ou construtor de “obras faraônicas” ou “torres de Babel”. Não guardou na memória uma só daquelas cenas.

Entre os que se sentiam atraídos por pergaminhos, papiros, tabuletas, alfabetos e outras escritas, apresentou-se um poeta. Por horas seguidas, encheu um caderno de rabiscos e letras. Tudo sem nenhum sentido. Irritado, jogou as folhas sujas ao lixo. E comprou outro caderno. Findo um ano ou mais de sonhos, decidiu ser funcionário público, para carimbar papéis e ler portarias. E nunca mais tentou escrever nada. Outro, mais persistente, elaborou uma crônica ou um conto. Referiu-se ao cavalo como “pobre e triste animal”. Os velhinhos chamou de “caminhantes da tarde”. E assim forjou mais umas cem crônicas, que reuniu em livro e vendeu na noite de autógrafos a amigos e parentes. Um sucesso! Até os jornais mais conceituados lhe deram vez.

Daqueles visitantes da praça, um se dizia contista de peso. E também isto diziam dele. Lapidou uma narrativa, sem pé nem cabeça, que lhe rendeu um prêmio polpudo e nacional: “A tarde morria feito pangaré em beira de estrada”. Um de seus concorrentes compôs uma fábula com pés e cabeças. Muito bem escrita, sem um só erro gramatical. Porém, faltou talvez a ideia de se construir uma torre muito elevada. Também fez jus a muitos aplausos e até o chamaram de “grande revelação da literatura nacional, próximo de Machado, Graciliano e Rosa”.

Respeitado (milionário) advogado engenhou um relato muito interessante, em vernáculo sem manchas, e o estampou na revista da academia. Aquilo, porém, não foi novidade para ele e para ninguém de sua laia. Todo ano ele publicava relatos interessantes, estudos de praças, ensaios dos mais variados temas. Houve quem redigisse artigo perfeito e o imprimisse no jornal de maior circulação. Contos foram vários.  Reuniram-se em “antologia”, com prefácio do mais conhecido contista do país. Historietas de variados feitios: umas curtas, outras grossas; umas cheias de graça, outras molhadas em sangue; umas lineares, outras tortas. Todas muito cheias de pompa.

Entretanto, um dos sujeitos em visita àquela pracinha (nem se sabe direito se esteve mesmo por lá) inventou uma peça muito esquisita. Inicia-se assim: Anfangs war beim babylonischen Turmbau alles in leidlicher Ordnung; ja, die Ordnung war vielleicht zu groß, man dachte zu sehr an Wegweiser, Dolmetscher, Arbeiterunterkünfte und Verbindungswege, so als habe man Jahrhunderte freier Arbeitsmöglichkeit vor sich”. Uma tradução para o português é esta: “No início da construção da torre de Babel tudo estava razoavelmente em ordem, sim, talvez a ordem fosse até grande demais, pensava-se muito em tabuletas com direções, intérpretes, alojamento para os trabalhadores e caminhos de ligação, como se estivessem ainda por vir séculos e séculos para trabalhar à vontade”. Mostrei o inteiro teor da obra àquelas pessoas que estiveram na praça: “Isto é um louco”.

Fortaleza, 9 de janeiro de 2013.

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